Estamos em Julho de
2013, às vésperas da Jornada Mundial da Juventude, um dos maiores eventos da
Igreja Católica. Desta feita, realizado no Rio de Janeiro, imagina-se que
reunirá em torno de 3 milhões de fiéis vindos dos mais diversos cantos do
mundo. Mas o que procura esta população, este rebanho?
Um novo papa foi
eleito este ano – Francisco é o seu nome. Veio com a mensagem de prevalência da
humildade no coração dos homens. E com uma alma guerreira moldada em debates
políticos dos quais participou em sua terra natal, Argentina. Em recente
entrevista indicou a participação política como uma obrigação de todo cristão,
como uma missão para a melhoria da vida em comunidade, ou seja, algo que poderia
ser amplificado para toda a humanidade.
No centro da fé
católica está o Livro Sagrado, a Bíblia. Em verdade, ela se constitui da junção
de um conjunto de livros que narra a história das origens do catolicismo, as
diretrizes que lhe dão base, tendo como ponto alto a vinda de Deus à Terra em
forma humana, na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo. Porém, mesmo uma obra deste
tipo, baseada na fé, na crença do que está ali exposto, sem se importar com
provas, não escaparia ao criticismo típico de nossos tempos.
Recentemente tive
contato com um livro que em muito auxilia a compreensão da mensagem ali
inserida. Ele se chama “A Bíblia: um Diário de Leitura”, de Luiz Paulo Horta,
publicado pela Ed. Zahar, no ano de 2011 – 248 págs. Horta, jornalista e
escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), já tendo ministrado
cursos sobre a Bíblia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de
Janeiro, preside o Centro Dom Vital, uma espécie de think tank católico. Um ótimo perfil, portanto, para ousar o desafio
de, como leigo, traduzir à comunidade o que está no cerne das páginas bíblicas.
Horta não teve temor
em enfrentar as grandes questões, em indicar caminhos e apontar soluções e
entendimentos para muitas das polêmicas que giram em torno das linhas traçadas
à 2 mil anos e que balizam a vida de milhões de católicos mundo afora. A
clareza em suas palavras, a facilidade na construção dos argumentos, obviamente
sedimentados a partir de um grande conhecimento acumulado e de uma cultura
geral vasta, facilitaram seu trabalho. Vamos expor abaixo apenas alguns
exemplos, para verificar se aguçam a sua curiosidade quanto a essa obra – e ao
livro que a inspirou que, independentemente de sua religião, poderá ser de
grande utilidade filosófica para o enfrentamento dos dilemas da vida.
A força das parábolas
Muitos se questionam
porque Cristo – e muitos dos demais autores e profetas relatados na Bíblia – se
utilizam amplamente das parábolas para retratar as lições a serem seguidas
pelos fiéis. Esse ponto é um dos de mais fácil explicação. “Se você teve um
avô, contador de histórias infantis, jamais as terá esquecido. E por quê? Não
será porque elas falavam ao coração? [...] Pensem no Cristo, na facilidade com
que ele desliza para a parábola – a dose de verdade/realidade que uma pessoa
comum pode assimilar” (pág. 24).
Em tempos em que a
educação era uma raridade restrita às elites, os religiosos que tinham o dom da
palavra, ou mesmo os políticos mais proeminentes, se utilizavam de parábolas
para exemplificar, ao homem comum, o que eles queriam dizer. Quando a mensagem
surgia com clareza ao coração do homem, este não tinha como não gravá-la. Este,
sem dúvida, é um dos segredos da Bíblia, um compêndio de maravilhosas
parábolas, a começar pela história de Adão e Eva e da criação do mundo.
O papel da mulher numa sociedade patriarcal
Um grande erro é a
leitura que se faz de que a Bíblia retrata a mulher sempre em segundo plano.
Muito pelo contrário, ela é o centro da ação por diversas vezes. Deve-se
compreender que a Bíblia não é uma obra dissociada do tempo em que foi redigida
e que retrata. Erros cometidos por figuras centrais o são sem distinção de
gênero, muitas vezes mais vinculadas à pouca experiência de alguns destes do
que ao sexo propriamente dito. Poderia isto, talvez, ser debitado à reverência
que se tinha aqueles tempos à experiência acumulada de anos de vida, algo tão
diferente da sociedade em que estamos inseridos.
Mas será
despropositada a cena do Gênesis, ao menos como recurso literário? A sedução da
mulher não depende, muitas vezes, da atitude que os franceses chamam de insouciance, uma
despreocupação que beira a frivolidade, uma conduta mais emotiva, mais
impulsiva, que a do homem? Sim, esses papéis podem se inverter. No correr da
vida não é a mulher que, tantas vezes, assume a chefia da casa, o senso de
realidade, enquanto o homem borboleteia?
[Págs. 33/34]
O homem criado à imagem e semelhança de Deus
Algo que inquieta a
muitos é fato de que a noção do livre arbítrio seja um paradoxo em relação à
condução da vida terrena para o ser humano. Se Deus o quisesse como sendo
simplesmente o condutor de atos corretos, sem a mínima margem de erro, o teria
feito. Mas ele lhe dá a faculdade do livre arbítrio, como se quisesse valorizar
na sua própria criação o ferramental de construção da própria vida, algo que
não o é, por exemplo, destinado aos demais seres vivos, impulsionados que são
pela centelha do instinto, sem o mínimo raciocínio. “Dito de outra maneira: a
perfeição do homem é a perfeição de uma vocação e não de uma situação” (pág.
39). O homem tem a vocação para o bem, mas para alcançá-la necessita de Deus –
e de Sua mensagem – para fazer a ponte.
Fé
Não existe história
mais emblemática na Bíblia sobre força da fé do que a do quase sacrifício do
filho único Abraão, Isaac. Horta coloca que seu nascedouro talvez esteja
vinculado ao fato de que Abraão tenha tido a oportunidade de ter tido contato
direto com Deus. Porém, este é um fato para o qual não há explicação – quer
maior sentido para fé?!
Como pedir a
um pai que sacrifique o próprio filho? É um teste que ultrapassa todas as
medidas. Mas antes que isso acontecesse, ele tivera um contato igualmente excepcional
com a realidade divina. Ali, certamente, é que sua fé deitava raízes. Dali deve
ter vindo a força que, para nós, é incompreensível. Ficou o exemplo, envolvido
no mais denso mistério. Nunca saberemos como cada um de nós reagirá nos limites
da condição humana [pág. 52].
Em verdade, a fé é a
esperança de que iremos alcançar um algo melhor no futuro. Mas esse futuro é
construído no dia a dia, com cada uma das atitudes que tomamos em nossas vidas.
A Bíblia inserida no seu tempo
O aspecto já citado
acima de que a Bíblia não pode ser dissociada do tempo em que foi escrita, por
estar imersa numa cadeia de valores e características de uma sociedade
específica, volta a ser abordado pelo autor de maneira mais explícita. Quando
compreendemos esta característica da Bíblia histórica, podemos interpretar de
um melhor modo uma série de ensinamentos que se buscam passar, mesmo que se
observados com os olhos da sociedade atual pareçam um tanto quanto distorcidos:
Que moral é
essa? O filho engana o pai, ajudado pela mãe? [Rebeca, mulher de Isaac, ajuda Jacó a enganar o pai] É a moral – digamos, os costumes – de um
período que a Bíblia descreve, infinitamente remoto. A Revelação não atropela
as épocas, nem os costumes. Procede por etapas. Foi o que já vimos na história
de Abraão e Sara. Mas Rebeca enganando o marido! Diz uma senhora muito sábia,
minha conhecida: “Ela sabia que Esaú era um estouvado, que a liderança tinha
que passar por Jacó.” Pragmatismo feminino.
[Pág. 54]
Da mesma forma poderia
se entender, talvez, porque a ênfase no Antigo Testamento, às guerras
empreendidas em nome da religião. Não podemos dizer que esta não seja uma
realidade existente em nosso tempo, porém nos parece, olhando à distância, que
muito mais vezes hoje em dia a religião é utilizada de modo pernicioso para
justificar determinadas atitudes, enquanto naquela época era realmente um argumento
fático para se iniciar um conflito belicoso. Dessa forma, um Deus guerreiro não
seria de todo estranho aos seus fiéis, naquele tempo.
Um outro incômodo ao
leitor moderno, adjacente desta situação acima explanada – o Deus guerreiro – é
o Deus colérico, que pune seus fiéis. Tal discurso, aos ouvidos da sociedade,
soa como um paradoxo quando a religião católica prega o amor extremado para com
o próximo, inclusive para o com o inimigo. Porém, Horta é enfático em afirmar: “O
Criador tem direitos sobre a criatura, por mais que o homem moderno tenha se esquecido
disso. Isso não é uma diminuição da criatura – é um dado da realidade” [pág. 76].
Se formos perceber
bem, o que foi dito a respeito da vocação para o bem – o homem à imagem e
semelhança de Deus – e sua associação com o livre arbítrio, Deus teria colocado
nas mãos dos homens todas as possibilidades do mundo. Porém isso não significa
dizer que ele não poderia tomar atitudes corretivas – e dá uma amostra,
inclusive, de que ouve a criatura, quando existe a interseção de diversos
profetas em favor de um povo, de que crê na força do diálogo e que se
utilizados os argumentos corretos uma decisão pode ser revogada. O autor cita
uma passagem da Bíblia na qual tal mensagem é praticamente literal, nas
palavras do próprio Senhor:
Casa de
Israel, não poderei fazer de vós o que faz este oleiro? – oráculo do Senhor. O
que é a argila em suas mãos, assim sois vós nas minhas, casa de Israel. Ora
anuncio a uma nação ou a um reino que vou arrancá-lo e destruí-lo. Mas se essa
nação contra a qual me pronunciei se afastar do mal que cometeu, arrependo-me
da punição com que resolvera castigá-la. Outras vezes, em relação a um povo ou
reino, resolvo edificá-lo e plantá-lo. Se, porém, tal nação proceder mal diante
de meus olhos e não escutar minhas palavras, recuarei do bem que lhe decidira
fazer [pág. 77].
O pecado original
Talvez o conceito
que englobe uma série dos artifícios aqui já mencionados – a prodigalidade no
uso de parábolas, a adaptação aos tempos para passar conceitos aos fiéis
envoltos numa sociedade constituída de valores distintos dos atuais, o livre
arbítrio, a inteligência como dádiva humana, etc – esteja mais bem resumida
quando tocamos no tema do pecado original. O pecado original deve ser entendido
como um conceito, uma metáfora para uma mensagem. Da mesma forma que o homem
tem a vocação para o bem, existe o outro lado da moeda, representado pelo
potencial para o pecado. Isto como uma alternativa equânime para todos, e não
para um só homem – creio que vocês já devem ter entendido que a estória de Adão
e Eva é uma alegoria, mais uma das parábolas da Bíblia. O pecado original não
seria, assim, um único ato, mas a potencialidade intrínseca na qual vivemos em
relação a ele e que, infelizmente, muitas vezes incorremos. Seria assim, uma
alegoria da falibilidade humana, e não um único ato de um único homem que nos
condenou.
Questão muitas vezes
resumida de forma errônea, o pecado original tem tal força enquanto base de entendimento
da religião católica que mereceu um capítulo inteiro (5) pelo autor na
tentativa de já preparar o terreno para algo que ele vem a retomar quando o
leitor já se encontra maduro na leitura de sua obra. Ele coloca assim a
questão, já na reta final do livro (pág. 228), citando o monge beneditino dom
Bede Griffiths:
Mas no ser
humano, a vida divina reflete-se numa consciência, numa inteligência semelhante
a ela. Essa energia é recebida por uma vontade, por uma capacidade de ação
iluminada pela inteligência e, portanto, livre. Podemos receber essa luz divina
e nossa dependência em relação ao Bem supremo. Mas também podemos nos apropriar
dessa luz divina, fazer de nós mesmos o juiz e o mestre, agir como se esse
poder viesse de nós mesmos. Esse é o pecado original, essa é a grande ilusão.
Conclusão
Ao terminar de ler
uma obra, muitas vezes nos perguntamos se o autor atingiu o seu objetivo. Numa
obra de ficção esta análise se vê facilitada, pois ao terminarmos – ou mesmo
antes, bem antes – já percebemos se fomos cooptados pela estória ao ponto de
não queremos largá-la.
O que Horta se
propôs foi abordar alguns dos pontos centrais da Bíblia – e de suas características
– de modo a facilitar a apreensão de sua mensagem. Obviamente ele não tinha
como intenção encerrar todas as polêmicas – por exemplo, ele não encontra uma
explicação, simplesmente constata que é intrínseca à obra a parcialidade aos
Israelitas em detrimento de outros povos. Mas talvez, mesmo essa, seja uma
característica comum ao nascedouro de toda e quaisquer religiões. Elas têm um
pilar central que surgiu de uma determinada camada da humanidade, e esta
parcela servirá como referência para o desenrolar dos acontecimentos e da
explicação dos conceitos.
Luiz Paulo Horta
De todo modo, fica
clara a linha central: a ênfase no fato de que o catolicismo está baseado no
poder do amor, que o amor deve ser o esteio principal das ações dos cristãos,
ferramenta primordial para construirmos um mundo melhor. O que foi explanado
durante todo o decorrer do livro – e da Bíblia – é a história da relação entre
os homens servindo como base para a construção de todo um arcabouço de
conceitos de modo a se tentar gerar uma sociedade melhor. A Santíssima Trindade
poderia ser entendida assim: três em um, a relação fortalecendo o amor, não
importando o seu formato – o instrumento não pode ser maior que a mensagem. “Que
Deus é o Ser absoluto, nenhum cristão poderá negar. Mas, diz o padre Bezançon,
a própria realidade do Cristo nos transporta da filosofia para a vida. Com o
Cristo, ficamos sabendo que Deus é relação” [pág. 242].