domingo, 14 de julho de 2013

A BÍBLIA: UM DIÁRIO DE LEITURA

Estamos em Julho de 2013, às vésperas da Jornada Mundial da Juventude, um dos maiores eventos da Igreja Católica. Desta feita, realizado no Rio de Janeiro, imagina-se que reunirá em torno de 3 milhões de fiéis vindos dos mais diversos cantos do mundo. Mas o que procura esta população, este rebanho?

Um novo papa foi eleito este ano – Francisco é o seu nome. Veio com a mensagem de prevalência da humildade no coração dos homens. E com uma alma guerreira moldada em debates políticos dos quais participou em sua terra natal, Argentina. Em recente entrevista indicou a participação política como uma obrigação de todo cristão, como uma missão para a melhoria da vida em comunidade, ou seja, algo que poderia ser amplificado para toda a humanidade.

No centro da fé católica está o Livro Sagrado, a Bíblia. Em verdade, ela se constitui da junção de um conjunto de livros que narra a história das origens do catolicismo, as diretrizes que lhe dão base, tendo como ponto alto a vinda de Deus à Terra em forma humana, na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo. Porém, mesmo uma obra deste tipo, baseada na fé, na crença do que está ali exposto, sem se importar com provas, não escaparia ao criticismo típico de nossos tempos.

Recentemente tive contato com um livro que em muito auxilia a compreensão da mensagem ali inserida. Ele se chama “A Bíblia: um Diário de Leitura”, de Luiz Paulo Horta, publicado pela Ed. Zahar, no ano de 2011 – 248 págs. Horta, jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), já tendo ministrado cursos sobre a Bíblia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, preside o Centro Dom Vital, uma espécie de think tank católico. Um ótimo perfil, portanto, para ousar o desafio de, como leigo, traduzir à comunidade o que está no cerne das páginas bíblicas.



Horta não teve temor em enfrentar as grandes questões, em indicar caminhos e apontar soluções e entendimentos para muitas das polêmicas que giram em torno das linhas traçadas à 2 mil anos e que balizam a vida de milhões de católicos mundo afora. A clareza em suas palavras, a facilidade na construção dos argumentos, obviamente sedimentados a partir de um grande conhecimento acumulado e de uma cultura geral vasta, facilitaram seu trabalho. Vamos expor abaixo apenas alguns exemplos, para verificar se aguçam a sua curiosidade quanto a essa obra – e ao livro que a inspirou que, independentemente de sua religião, poderá ser de grande utilidade filosófica para o enfrentamento dos dilemas da vida.

A força das parábolas

Muitos se questionam porque Cristo – e muitos dos demais autores e profetas relatados na Bíblia – se utilizam amplamente das parábolas para retratar as lições a serem seguidas pelos fiéis. Esse ponto é um dos de mais fácil explicação. “Se você teve um avô, contador de histórias infantis, jamais as terá esquecido. E por quê? Não será porque elas falavam ao coração? [...] Pensem no Cristo, na facilidade com que ele desliza para a parábola – a dose de verdade/realidade que uma pessoa comum pode assimilar” (pág. 24).

Em tempos em que a educação era uma raridade restrita às elites, os religiosos que tinham o dom da palavra, ou mesmo os políticos mais proeminentes, se utilizavam de parábolas para exemplificar, ao homem comum, o que eles queriam dizer. Quando a mensagem surgia com clareza ao coração do homem, este não tinha como não gravá-la. Este, sem dúvida, é um dos segredos da Bíblia, um compêndio de maravilhosas parábolas, a começar pela história de Adão e Eva e da criação do mundo.

O papel da mulher numa sociedade patriarcal

Um grande erro é a leitura que se faz de que a Bíblia retrata a mulher sempre em segundo plano. Muito pelo contrário, ela é o centro da ação por diversas vezes. Deve-se compreender que a Bíblia não é uma obra dissociada do tempo em que foi redigida e que retrata. Erros cometidos por figuras centrais o são sem distinção de gênero, muitas vezes mais vinculadas à pouca experiência de alguns destes do que ao sexo propriamente dito. Poderia isto, talvez, ser debitado à reverência que se tinha aqueles tempos à experiência acumulada de anos de vida, algo tão diferente da sociedade em que estamos inseridos.

Mas será despropositada a cena do Gênesis, ao menos como recurso literário? A sedução da mulher não depende, muitas vezes, da atitude que os franceses chamam de insouciance, uma despreocupação que beira a frivolidade, uma conduta mais emotiva, mais impulsiva, que a do homem? Sim, esses papéis podem se inverter. No correr da vida não é a mulher que, tantas vezes, assume a chefia da casa, o senso de realidade, enquanto o homem borboleteia?
[Págs. 33/34]

O homem criado à imagem e semelhança de Deus

Algo que inquieta a muitos é fato de que a noção do livre arbítrio seja um paradoxo em relação à condução da vida terrena para o ser humano. Se Deus o quisesse como sendo simplesmente o condutor de atos corretos, sem a mínima margem de erro, o teria feito. Mas ele lhe dá a faculdade do livre arbítrio, como se quisesse valorizar na sua própria criação o ferramental de construção da própria vida, algo que não o é, por exemplo, destinado aos demais seres vivos, impulsionados que são pela centelha do instinto, sem o mínimo raciocínio. “Dito de outra maneira: a perfeição do homem é a perfeição de uma vocação e não de uma situação” (pág. 39). O homem tem a vocação para o bem, mas para alcançá-la necessita de Deus – e de Sua mensagem – para fazer a ponte.


Não existe história mais emblemática na Bíblia sobre força da fé do que a do quase sacrifício do filho único Abraão, Isaac. Horta coloca que seu nascedouro talvez esteja vinculado ao fato de que Abraão tenha tido a oportunidade de ter tido contato direto com Deus. Porém, este é um fato para o qual não há explicação – quer maior sentido para fé?!

Como pedir a um pai que sacrifique o próprio filho? É um teste que ultrapassa todas as medidas. Mas antes que isso acontecesse, ele tivera um contato igualmente excepcional com a realidade divina. Ali, certamente, é que sua fé deitava raízes. Dali deve ter vindo a força que, para nós, é incompreensível. Ficou o exemplo, envolvido no mais denso mistério. Nunca saberemos como cada um de nós reagirá nos limites da condição humana [pág. 52].

Em verdade, a fé é a esperança de que iremos alcançar um algo melhor no futuro. Mas esse futuro é construído no dia a dia, com cada uma das atitudes que tomamos em nossas vidas.

A Bíblia inserida no seu tempo

O aspecto já citado acima de que a Bíblia não pode ser dissociada do tempo em que foi escrita, por estar imersa numa cadeia de valores e características de uma sociedade específica, volta a ser abordado pelo autor de maneira mais explícita. Quando compreendemos esta característica da Bíblia histórica, podemos interpretar de um melhor modo uma série de ensinamentos que se buscam passar, mesmo que se observados com os olhos da sociedade atual pareçam um tanto quanto distorcidos:

Que moral é essa? O filho engana o pai, ajudado pela mãe? [Rebeca, mulher de Isaac, ajuda Jacó a enganar o pai] É a moral – digamos, os costumes – de um período que a Bíblia descreve, infinitamente remoto. A Revelação não atropela as épocas, nem os costumes. Procede por etapas. Foi o que já vimos na história de Abraão e Sara. Mas Rebeca enganando o marido! Diz uma senhora muito sábia, minha conhecida: “Ela sabia que Esaú era um estouvado, que a liderança tinha que passar por Jacó.” Pragmatismo feminino.
[Pág. 54]

Da mesma forma poderia se entender, talvez, porque a ênfase no Antigo Testamento, às guerras empreendidas em nome da religião. Não podemos dizer que esta não seja uma realidade existente em nosso tempo, porém nos parece, olhando à distância, que muito mais vezes hoje em dia a religião é utilizada de modo pernicioso para justificar determinadas atitudes, enquanto naquela época era realmente um argumento fático para se iniciar um conflito belicoso. Dessa forma, um Deus guerreiro não seria de todo estranho aos seus fiéis, naquele tempo.

Um outro incômodo ao leitor moderno, adjacente desta situação acima explanada – o Deus guerreiro – é o Deus colérico, que pune seus fiéis. Tal discurso, aos ouvidos da sociedade, soa como um paradoxo quando a religião católica prega o amor extremado para com o próximo, inclusive para o com o inimigo. Porém, Horta é enfático em afirmar: “O Criador tem direitos sobre a criatura, por mais que o homem moderno tenha se esquecido disso. Isso não é uma diminuição da criatura – é um dado da realidade” [pág. 76].

Se formos perceber bem, o que foi dito a respeito da vocação para o bem – o homem à imagem e semelhança de Deus – e sua associação com o livre arbítrio, Deus teria colocado nas mãos dos homens todas as possibilidades do mundo. Porém isso não significa dizer que ele não poderia tomar atitudes corretivas – e dá uma amostra, inclusive, de que ouve a criatura, quando existe a interseção de diversos profetas em favor de um povo, de que crê na força do diálogo e que se utilizados os argumentos corretos uma decisão pode ser revogada. O autor cita uma passagem da Bíblia na qual tal mensagem é praticamente literal, nas palavras do próprio Senhor:

Casa de Israel, não poderei fazer de vós o que faz este oleiro? – oráculo do Senhor. O que é a argila em suas mãos, assim sois vós nas minhas, casa de Israel. Ora anuncio a uma nação ou a um reino que vou arrancá-lo e destruí-lo. Mas se essa nação contra a qual me pronunciei se afastar do mal que cometeu, arrependo-me da punição com que resolvera castigá-la. Outras vezes, em relação a um povo ou reino, resolvo edificá-lo e plantá-lo. Se, porém, tal nação proceder mal diante de meus olhos e não escutar minhas palavras, recuarei do bem que lhe decidira fazer [pág. 77].

O pecado original

Talvez o conceito que englobe uma série dos artifícios aqui já mencionados – a prodigalidade no uso de parábolas, a adaptação aos tempos para passar conceitos aos fiéis envoltos numa sociedade constituída de valores distintos dos atuais, o livre arbítrio, a inteligência como dádiva humana, etc – esteja mais bem resumida quando tocamos no tema do pecado original. O pecado original deve ser entendido como um conceito, uma metáfora para uma mensagem. Da mesma forma que o homem tem a vocação para o bem, existe o outro lado da moeda, representado pelo potencial para o pecado. Isto como uma alternativa equânime para todos, e não para um só homem – creio que vocês já devem ter entendido que a estória de Adão e Eva é uma alegoria, mais uma das parábolas da Bíblia. O pecado original não seria, assim, um único ato, mas a potencialidade intrínseca na qual vivemos em relação a ele e que, infelizmente, muitas vezes incorremos. Seria assim, uma alegoria da falibilidade humana, e não um único ato de um único homem que nos condenou.

Questão muitas vezes resumida de forma errônea, o pecado original tem tal força enquanto base de entendimento da religião católica que mereceu um capítulo inteiro (5) pelo autor na tentativa de já preparar o terreno para algo que ele vem a retomar quando o leitor já se encontra maduro na leitura de sua obra. Ele coloca assim a questão, já na reta final do livro (pág. 228), citando o monge beneditino dom Bede Griffiths:

Mas no ser humano, a vida divina reflete-se numa consciência, numa inteligência semelhante a ela. Essa energia é recebida por uma vontade, por uma capacidade de ação iluminada pela inteligência e, portanto, livre. Podemos receber essa luz divina e nossa dependência em relação ao Bem supremo. Mas também podemos nos apropriar dessa luz divina, fazer de nós mesmos o juiz e o mestre, agir como se esse poder viesse de nós mesmos. Esse é o pecado original, essa é a grande ilusão.

Conclusão

Ao terminar de ler uma obra, muitas vezes nos perguntamos se o autor atingiu o seu objetivo. Numa obra de ficção esta análise se vê facilitada, pois ao terminarmos – ou mesmo antes, bem antes – já percebemos se fomos cooptados pela estória ao ponto de não queremos largá-la.

O que Horta se propôs foi abordar alguns dos pontos centrais da Bíblia – e de suas características – de modo a facilitar a apreensão de sua mensagem. Obviamente ele não tinha como intenção encerrar todas as polêmicas – por exemplo, ele não encontra uma explicação, simplesmente constata que é intrínseca à obra a parcialidade aos Israelitas em detrimento de outros povos. Mas talvez, mesmo essa, seja uma característica comum ao nascedouro de toda e quaisquer religiões. Elas têm um pilar central que surgiu de uma determinada camada da humanidade, e esta parcela servirá como referência para o desenrolar dos acontecimentos e da explicação dos conceitos.

 Luiz Paulo Horta


De todo modo, fica clara a linha central: a ênfase no fato de que o catolicismo está baseado no poder do amor, que o amor deve ser o esteio principal das ações dos cristãos, ferramenta primordial para construirmos um mundo melhor. O que foi explanado durante todo o decorrer do livro – e da Bíblia – é a história da relação entre os homens servindo como base para a construção de todo um arcabouço de conceitos de modo a se tentar gerar uma sociedade melhor. A Santíssima Trindade poderia ser entendida assim: três em um, a relação fortalecendo o amor, não importando o seu formato – o instrumento não pode ser maior que a mensagem. “Que Deus é o Ser absoluto, nenhum cristão poderá negar. Mas, diz o padre Bezançon, a própria realidade do Cristo nos transporta da filosofia para a vida. Com o Cristo, ficamos sabendo que Deus é relação” [pág. 242].