Literatura
escandinava, neste caso específico, de origem dinamarquesa. Para o leitor não
tão acostumado a esta interface qual seria a primeira coisa que viria a cabeça?
Asceticismo. Ser ascético é ter uma vida contemplativa. Quando pensamos nos
países escandinavos, onde tudo parece seguir uma ordem perfeita, não há o que ser
corrigido, seria natural ter esse sentimento. O que nos resta senão contemplar
uma sociedade como esta?
Sabemos,
porém, que mesmo nas sociedades ditas perfeitas behind the curtains segredos são guardados. No artigo denominado “O grande paradoxo: índice de suicídios é maior nos países
considerados ‘mais felizes’”, publicado pelo site Aleteia, em 17 de Março de
2016, temos uma pequena chave para desvendar esse mistério[1].
Citando universidades
britânicas e norte-americanas como autoras da pesquisa que deu origem ao artigo
é colocado que “o paradoxo tem a ver com
uma comparação entre o nível de felicidade dos suicidas e o nível de felicidade
dos outros: a felicidade alheia seria um fator de risco para as pessoas de
baixa autoestima, descontentes por viver em lugares onde o resto dos indivíduos
demonstra mais felicidade do que elas”.
Fonte: https://www.saraiva.com.br |
Desta
feita temos um pequeno insight sobre
o livro que vamos resenhar – “O Último Homem Bom”, de A. J. Kazinki, na verdade
um codinome para a dupla de autores dinamarqueses que trabalha em conjunto –
Anders R. Klarlund e Jacob Weinreich. Na busca por inputs para esta resenha fiquei curioso sobre como seria o método
de escrita aplicado pelos dois autores para produzir uma obra em comum.
Encontrei uma entrevista concedida por eles quando participaram da Feira do
Livro de Porto Alegre, em 2017[2].
Nesta
ocasião eles não foram claros sobre a dinâmica de trabalho. Me chamou atenção
particularmente as seguintes colocações:
Jacob: Sim, temos grandes pensamentos sobre nós às vezes, temos a
ideia de que podemos fazer tudo e às vezes você precisa de outra pessoa para
lhe dizer que não pode.
Anders: Para um homem, acho o mais importante, e eu disse ao meu
filho o mesmo, é encontrar um parceiro que possa fazer as coisas que você não
pode. E que você pode confiar.
Aparentemente
existe um trabalho de revisão aí embutido. Minha curiosidade sobre a
metodologia de trabalho se deu justamente por não perceber, ao ler o livro, uma
variação de abordagens, o que seria natural, por exemplo, se eles optassem por
cada um escrever uma parte do livro, dando continuidade ao que o outro já estivesse
escrito. Durante a entrevista acima indicada, eles também citaram que ficaram 2
anos amadurecendo a ideia de como isso poderia funcionar. Lembram-se do aspecto
contemplativo por mim citado anteriormente?
Ou
seja, na verdade eles realmente escrevem em conjunto. Um deles deve escrever uma
primeira massa, que é trabalhada pelo segundo de modo a receita ficar perfeita.
Isso é o que intuo a partir do que foi exposto por ambos. Mas e a estória do
livro em si? O que ela nos diz sobre sociedade dinamarquesa?
“O
Último Homem Bom”, publicado pela Editora Tordesilhas (São Paulo) em 2013, possui
481 páginas e descreve a busca de 3 protagonistas – 1 policial italiano e 1
policial e uma pesquisadora em matemática dinamarqueses – pelos responsáveis
pelos assassinatos daqueles que seriam conhecidos como os 36 “homens” bons que
deveriam velar pela humanidade segundo um mito judaico. Estes estariam
espalhados pelo mundo, porém às vésperas da Conferência do Clima em Copenhague a
polícia dinamarquesa dá pouca atenção ao caso, preocupada com as atividades em
torno da segurança dos Chefes de Estado que para lá se dirigem.
Assim
sendo, levando-se em conta o perfil de cada um dos protagonistas – o italiano
relegado a segundo plano pelos seus colegas; o policial dinamarquês maníaco
depressivo que tem um fator limitante de não conseguir viajar (ou melhor, se
afastar de seu local de vivência) e da pesquisadora afetada pelo suicídio do
filho e o desligamento do marido, um Prêmio Nobel da Matemática – temos um retrato
do que se pode encontrar no recôndito dos lares mais perfeitos do mundo.
A. R. Klarlund (à esquerda) + J. Weinreich = A. J. Kazinski Fonte: www.vortexcultural.com.br |
Mas as coisas nem
sempre têm de parecer lógicas. Era isso que envenenava o trabalho do policial.
As pessoas são mentirosas. A questão era descobrir qual mentira encobria não só
um pecado mas um crime. (pág. 99)
Nélson
Rodrigues, brilhante dramaturgo brasileiro, já havia escancarado a hipocrisia de
nossa sociedade com seus romances durante as décadas de 50 e 60. Uma comunidade
que não externa seus desvios está escondendo a portas fechadas seus problemas –
ou suas verdadeiras características. Os escandinavos, por sua vez, se veem
frente a frente com a ditadura da felicidade. Não ser feliz, não ser bom, pode
ser um dilema e tanto. Um pano de fundo para o livro talvez seja justamente
isso: o que significa ser bom? Seria não ter defeitos? Ou tê-los e saber
superá-los? Ou como Anders Klarlund colocou – “(...) tem escrito tantos livros sobre encontrar o mal, mas nunca foi escrito
uma história sobre encontrar o bem”. E que desafios isso nos traz, eu
completaria.
Podem surgir
situações em que fazer o mal é o certo. Mas aí você deixa de ser bom. É disso
que o cristianismo trata: de podermos viver uns com os outros somente quando
aceitamos o pecado como parte da condição humana. (pág. 99)
Quando
os policiais e a pesquisadora partem para sua busca se veem com essa incógnita,
pois têm que identificar as próximas vítimas. O leitor pouco a pouco percebe
que um giro de 360º está sendo dado, como se eles voltassem para origem, ao
buscar o fim. De todo modo, é um livro que prende. Mesmo que tenha descambado,
ao final, para algo próximo ao realismo fantástico – o que me desagrada – traz interessantes
reflexões sobre os limites com os quais convivemos e com a cobrança exagerada
sobre nós mesmos e que nos auto-impomos. Relaxar, às vezes, é preciso.
[2] https://www.danishculture.org.br/entrevista-aj-kazinski/
- a tradução está malfeita nesta página. Há que se ter paciência.