sábado, 19 de maio de 2018

O ÚLTIMO HOMEM BOM


Literatura escandinava, neste caso específico, de origem dinamarquesa. Para o leitor não tão acostumado a esta interface qual seria a primeira coisa que viria a cabeça? Asceticismo. Ser ascético é ter uma vida contemplativa. Quando pensamos nos países escandinavos, onde tudo parece seguir uma ordem perfeita, não há o que ser corrigido, seria natural ter esse sentimento. O que nos resta senão contemplar uma sociedade como esta?

Sabemos, porém, que mesmo nas sociedades ditas perfeitas behind the curtains segredos são guardados. No artigo denominado O grande paradoxo: índice de suicídios é maior nos países considerados ‘mais felizes’”, publicado pelo site Aleteia, em 17 de Março de 2016, temos uma pequena chave para desvendar esse mistério[1].

 

Citando universidades britânicas e norte-americanas como autoras da pesquisa que deu origem ao artigo é colocado que “o paradoxo tem a ver com uma comparação entre o nível de felicidade dos suicidas e o nível de felicidade dos outros: a felicidade alheia seria um fator de risco para as pessoas de baixa autoestima, descontentes por viver em lugares onde o resto dos indivíduos demonstra mais felicidade do que elas”.


Fonte:
https://www.saraiva.com.br
Desta feita temos um pequeno insight sobre o livro que vamos resenhar – “O Último Homem Bom”, de A. J. Kazinki, na verdade um codinome para a dupla de autores dinamarqueses que trabalha em conjunto – Anders R. Klarlund e Jacob Weinreich. Na busca por inputs para esta resenha fiquei curioso sobre como seria o método de escrita aplicado pelos dois autores para produzir uma obra em comum. Encontrei uma entrevista concedida por eles quando participaram da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2017[2].

Nesta ocasião eles não foram claros sobre a dinâmica de trabalho. Me chamou atenção particularmente as seguintes colocações:

Jacob: Sim, temos grandes pensamentos sobre nós às vezes, temos a ideia de que podemos fazer tudo e às vezes você precisa de outra pessoa para lhe dizer que não pode.
Anders: Para um homem, acho o mais importante, e eu disse ao meu filho o mesmo, é encontrar um parceiro que possa fazer as coisas que você não pode. E que você pode confiar.

Aparentemente existe um trabalho de revisão aí embutido. Minha curiosidade sobre a metodologia de trabalho se deu justamente por não perceber, ao ler o livro, uma variação de abordagens, o que seria natural, por exemplo, se eles optassem por cada um escrever uma parte do livro, dando continuidade ao que o outro já estivesse escrito. Durante a entrevista acima indicada, eles também citaram que ficaram 2 anos amadurecendo a ideia de como isso poderia funcionar. Lembram-se do aspecto contemplativo por mim citado anteriormente?

Ou seja, na verdade eles realmente escrevem em conjunto. Um deles deve escrever uma primeira massa, que é trabalhada pelo segundo de modo a receita ficar perfeita. Isso é o que intuo a partir do que foi exposto por ambos. Mas e a estória do livro em si? O que ela nos diz sobre sociedade dinamarquesa?

“O Último Homem Bom”, publicado pela Editora Tordesilhas (São Paulo) em 2013, possui 481 páginas e descreve a busca de 3 protagonistas – 1 policial italiano e 1 policial e uma pesquisadora em matemática dinamarqueses – pelos responsáveis pelos assassinatos daqueles que seriam conhecidos como os 36 “homens” bons que deveriam velar pela humanidade segundo um mito judaico. Estes estariam espalhados pelo mundo, porém às vésperas da Conferência do Clima em Copenhague a polícia dinamarquesa dá pouca atenção ao caso, preocupada com as atividades em torno da segurança dos Chefes de Estado que para lá se dirigem.

Assim sendo, levando-se em conta o perfil de cada um dos protagonistas – o italiano relegado a segundo plano pelos seus colegas; o policial dinamarquês maníaco depressivo que tem um fator limitante de não conseguir viajar (ou melhor, se afastar de seu local de vivência) e da pesquisadora afetada pelo suicídio do filho e o desligamento do marido, um Prêmio Nobel da Matemática – temos um retrato do que se pode encontrar no recôndito dos lares mais perfeitos do mundo.

A. R. Klarlund (à esquerda) + J. Weinreich = A. J. Kazinski
Fonte: www.vortexcultural.com.br
Mas as coisas nem sempre têm de parecer lógicas. Era isso que envenenava o trabalho do policial. As pessoas são mentirosas. A questão era descobrir qual mentira encobria não só um pecado mas um crime. (pág. 99)

Nélson Rodrigues, brilhante dramaturgo brasileiro, já havia escancarado a hipocrisia de nossa sociedade com seus romances durante as décadas de 50 e 60. Uma comunidade que não externa seus desvios está escondendo a portas fechadas seus problemas – ou suas verdadeiras características. Os escandinavos, por sua vez, se veem frente a frente com a ditadura da felicidade. Não ser feliz, não ser bom, pode ser um dilema e tanto. Um pano de fundo para o livro talvez seja justamente isso: o que significa ser bom? Seria não ter defeitos? Ou tê-los e saber superá-los? Ou como Anders Klarlund colocou – “(...) tem escrito tantos livros sobre encontrar o mal, mas nunca foi escrito uma história sobre encontrar o bem”. E que desafios isso nos traz, eu completaria.

Podem surgir situações em que fazer o mal é o certo. Mas aí você deixa de ser bom. É disso que o cristianismo trata: de podermos viver uns com os outros somente quando aceitamos o pecado como parte da condição humana. (pág. 99)

Quando os policiais e a pesquisadora partem para sua busca se veem com essa incógnita, pois têm que identificar as próximas vítimas. O leitor pouco a pouco percebe que um giro de 360º está sendo dado, como se eles voltassem para origem, ao buscar o fim. De todo modo, é um livro que prende. Mesmo que tenha descambado, ao final, para algo próximo ao realismo fantástico – o que me desagrada – traz interessantes reflexões sobre os limites com os quais convivemos e com a cobrança exagerada sobre nós mesmos e que nos auto-impomos. Relaxar, às vezes, é preciso.