Há
poucos dias de se iniciar os Jogos Olímpicos Rio 2016 terminei de ler o livro
da jornalista Juliet Macur, americana de origem polonesa, denominado “Circuito
de Mentiras – ascensão e queda de Lance Armstrong” – Ed. Intrínseca – Rio de
Janeiro – 416 páginas – 2014. Este livro destrincha as mazelas e o mau-caratismo
que estava (ou está¹) entranhado num dos esportes mais tradicionais existentes,
o ciclismo de estrada.
Juliet Macur e sua obra, com Armstrong na capa |
Para
tanto a jornalista traça um panorama de que foi a trajetória de um dos ícones na
passagem de século neste esporte, o norte-americano, do Texas, Lance Armstrong.
Antes de Armstrong, somente um americano havia vencido a mais tradicional das
provas, o Tour de France. Greg Lemond
é o seu nome, vitorioso em 1986, 1989 e 1990. Esta prova testa o limite dos
competidores por mais de 3000 km em duas semanas de competição, atravessando diversos
pontos do interior da França, entre planícies e montanhas.
Greg Lemond ao vencer o Tour de France em 1990 |
Armstrong,
inicialmente retratado como fenômeno das pistas, aos poucos têm sua face
alterada a partir do momento que se dá conta de que terá que praticar o doping sistemático caso queira sair-se
vencedor da prova francesa. Aparentemente dois fatores motivadores o
catapultaram para um degrau acima na sofisticação do sistema: o primeiro foi a
constatação de que o doping era
generalizado entre os principais ciclistas. Ou seja, um atleta, mesmo que de
alto nível, sem a dose extra de “apoio”, não teria condições de alcançar a
vitória perante os demais competidores.
O
segundo fator, por mais inverossímil que pareça, trata-se de um insight psicológico deduzido pela
autora. Armstrong, recém-recuperado de um câncer, teria trazido para sua vida a
máxima de que nada o impediria de alcançar a glória suprema. Ou seja, tudo é
válido para se ter sucesso na vida, pois esta pode ser mais curta do que
imaginamos. E mais, como ele havia vencido o câncer, se considerava invencível.
Estes
dois fatores teriam sido tão fortes que o levaram a conquistar sete títulos –
de 1999 a 2005, sete camisetas amarelas (vestimenta dada ao líder e vencedor da
prova) em sequência. Para aqueles que enaltecem, como eu, a honestidade das
competições esportivas, esta obra é um verdadeiro soco no estômago, tal é a
crueza e naturalidade com que são encaradas, pelos “atletas”, as trapaças
arquitetadas.
Como podemos torcer com dignidade por pessoas que estão nos
enganando a olhos vistos? Livro de uma clareza ímpar, com diversos depoimentos –
pena que muitos deles com as fontes protegidas, é uma obra para os fortes de
espírito. Isso porque aqueles que não suportarem os fatos ali apresentados
jamais voltarão a acreditar na dignidade humana e no ambiente esportivo, objeto
de lazer, quer seja como participantes, quer seja como meros espectadores, de bilhões
de pessoas mundo afora.
Armstrong, ao vencer o Tour pela sétima vez, em 2005 no pódio na Champs Elysées, com seu filho mais velho, Luke, e a pulseira amarela do instituto Livestrong |
Para
piorar a situação, o fato de Armstrong se utilizar de sua campanha em prol da
recuperação de pacientes de câncer como uma blindagem quanto aos
questionamentos em relação ao seu caráter fazem com que ele se apresente como o
pior dos seres humanos. Ele não é um assassino de pessoas, mas um assassino de
crenças². E perder a fé pode ser o pior dos fins para alguém que somente nela
se abraça quando encara o impossível.
Recentemente
a Agência Mundial de Antidoping (WADA - https://www.wada-ama.org/),
em conjunto com o Comitê Olímpico Internacional, utilizou amostras que estavam
armazenadas de exames realizados nas Olimpíadas de Pequim (2008) e Londres
(2012), encontrando uma grande quantidade de resultados positivos, somente
agora possíveis devido à evolução dos testes com o passar dos anos. Até quando
teremos que conviver com a desonestidade? Atletas pressionados pela obtenção da
fama e do dinheiro envolvidos nos esportes de alto rendimento, uma verdadeira
usina da indústria do entretenimento, não veem mais limites para tentar escapar
das garras daqueles que lutam contra o doping.
Essa é uma batalha em que parece que o lado do bem está sempre um passo atrás
do lado do mal. Mas, pelo menos, histórias como de Armstrong servem para que possamos
levantar e arregaçar as mangas para continuar apoiando a luta contra tais
atitudes. A justiça tarda, mas não falha. No caso de Armstrong, com o banimento
definitivo dos esportes olímpicos, quaisquer que sejam. Para alguém tão
competitivo como ele, foi a sentença de morte, mais do que perder os títulos e
dinheiro. Resta-nos esperar que um exemplo como o dele sirva de lição. Pelo
menos para alguns, senão para todos, que seja.
(1)
Recentemente o campeão brasileiro de 2015 de ciclismo de estrada, Everson de
Assis Camilo, foi pego num exame antidoping, testando positivo para 15
substâncias. Para mais detalhes ver http://esportes.estadao.com.br/noticias/jogos-olimpicos,campeao-brasileiro-de-ciclismo-e-pego-no-doping-por-15-substancias-proibidas,10000062433
;
(2)
Lembro-me que certa vez dei de presente para um professor de Educação Física, muito
amigo, o livro que descrevia o programa de treinamentos de Armstrong. A fé de
uma pessoa, solidificada pelo exemplo de recuperação de um terceiro, vai
literalmente para o lixo quando temos nossos olhos abertos para a desfaçatez
ali incutida.