segunda-feira, 9 de maio de 2016

GUGA, UM BRASILEIRO

Tem um grupo de esportistas e personalidades que eu denomino “Os Caras”. Apesar de ser um substantivo masculino, pode incluir tanto homens quanto mulheres. São pessoas as quais admiro não somente pelos resultados alcançados em termos profissionais nas carreiras que abraçam, mas também pela atitude perante a vida e pelo lado humano que fazem questão de expor.

Um dos “caras” mais conhecido é fácil de se enquadrar na categoria a qual me referi acima para criar o tal “grupo” ou “referência”: Guga Kuerten, o nosso tricampeão de Roland Garros, um dos quatro principais torneios de tênis no mundo. O torneio francês, juntamente com Winbledon, o Aberto de Tênis dos Estados Unidos (US Open) e o Aberto de Tênis da Austrália (o Australian Open) formam o que é conhecido como Grand Slam.

A importância de Guga para o tênis nacional pode ser medida da seguinte forma: desde os anos 60 não temos alguém, neste esporte, que se apresentasse de maneira tão dominante perante os demais competidores de nível mundial, em sua maioria europeus e norte-americanos. Maria Esther Bueno, multicampeã de tênis, pouco conhecida pela grande maioria da população nacional atual, por ser uma estrela pré-mídia de massa – aí incluídos internet e a televisão nos seus mais diversos meios – e também uma das “Caras”, brilhou naquela década ganhando mais títulos que o próprio Guga.

Porém, do lado masculino, no tênis tivemos poucos brilhos, para não dizer nenhum, com tanta intensidade quanto o do “manezinho” da ilha, alcunha pela qual os jovens habitantes da ilha de Florianópolis são reconhecidos. Guga com isso quebrou uma barreira que se imaginava inalcançável até então. Restava a ele, após tantas conquistas tanto dentro quanto fora das quadras, relatar como se deu essa trajetória, registrar para a história as dificuldades, medos e agruras enfrentados, que serviram de base para os grandes saltos que o elevaram ao panteão dos grandes do tênis internacional.

Porém, o livro “Guga, um brasileiro” – Ed. Sextante – Rio de Janeiro – 2014 – 384 págs – faz jus não somente ao Guga tenista, mas também ao Gustavo Kuerten pessoa humana, cidadão consciente de que levar uma vida na simplicidade o faz maior ainda aos olhos de todos. Guga sempre foi um personagem de sorriso fácil, de se aproximar das pessoas não se importando com a classe social a que esta pertencia, olhando para o outro como um ser humano deve vislumbrar o seu próximo, um igual.



Na obra fica claro como essa personalidade foi moldada, a partir de um seio familiar sólido, no qual tais princípios o foram estabelecidos desde a sua mais tenra idade. Além disso, a tenacidade, a competitividade, também ali estavam presentes, fazendo com o que o jovem Kuerten trouxessem o inconformismo com a sua performance, e posteriormente já adulto, com o estado de coisas que o circundava, como mais um traço que o favoreceria para cada uma das etapas de sua vida.

Bom filho, bom irmão, bom amigo, bom marido, bom pai, como não se orgulhar de um brasileiro assim? Diria a vocês que é impossível. Da escrita do livro em si, auxiliado que foi pelo alter ego Luís Colombini, a quem prestou o depoimento em primeira pessoa que se vê refletido nas páginas do livro, fica uma curiosidade: como teriam pensado os adversários do Guga no decorrer das partidas? Será que foi exatamente como ele próprio imaginou? Essa pergunta emerge, pois o livro é estruturado entremeando a narração de sua trajetória enquanto tenista com os fatos marcantes de sua vida particular, inclusive com o registro fotográfico, mas naqueles capítulos em que ele narra as principais partidas que enfrentou por diversos momentos ele coloca “Fulano pensou / imaginou / agiu”. Seria interessante se tivesse um trabalho complementar com estes outros atores. Fica, talvez, para uma próxima edição.

Esse pequeno detalhe não desmerece em nada o trabalho feito. Ficam como ensinamentos, num livro de auto-ajuda criado sem esta intenção, somente pelas passagens e pensamentos daquele que estará, para sempre, marcado como um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Exagero? Para um esportista como eu, não. Os ensinamentos de um grande personagem sempre nos servirão de exemplo para nossas vidas.

Allez Guga!

Controle

“Para os melhores tenistas, é fundamental encontrar um jeito, um movimento, uma sequência de ações que traga conforto e concentração. Só com isso eles alcançam a sensação, a convicção de que têm o controle do jogo, do corpo e da mente, algo abstrato, imaginário, porém ao mesmo tempo real e fundamental. Sem controle, não se ganha nada. Não existe jogador bom que não crie ritual para si, embora nem sempre ele seja evidente. Há momentos, porém, quando já está mergulhado no jogo, em que não sente necessidade de fazer nada. Mas na maioria das vezes, precisa de um lembrete para se alinhar com seu interior e ativar o seu melhor. (...) Nadal é mais rebuscado. No banco, deixa duas garrafinhas de água alinhadas na diagonal. Dá um gole em uma, fecha a tampa, põe no chão e depois bebe da outra. Antes do saque, seja seu ou do adversário, encontra tempo para, numa sequência invariável: puxar o calção, coçar a bunda, afastar o cabelo da orelha direita, alisar o nariz, arrumar o cabelo na orelha esquerda, passar a mão de novo no nariz e mexer no calção mais uma vez. O povo acha graça, mas, na história do tênis, talvez nunca tenha havido outro tenista com o poder de concentração e o autocontrole de Nadal. Se o proibirem de fazer seu ritual, isso vai afetar o seu jogo. E pode estar certo de que ele vai criar outro” (grifo nosso) – págs. 59-60.

Humanidade

“Durante os dias úteis, também era agitado lá em casa. Ainda que o Gui [irmão mais novo do Guga, falecido há poucos anos em função de uma deficiência de nascença] fosse pequeno e a gente evitasse sair por qualquer coisa, isso não refreava o lado sociável do pai. Logo no café da manhã, já perguntava para a mãe quem eles iam chamar de noite. ‘Mas Aldo, sossega um pouco’, falava a mãe. Não adiantava. Na sequência, ele já estava sugerindo os nomes de pessoas que, no jantar, rachariam a pizza ou, se fosse o inverno, aproveitariam as castanhas cozidas com ponche preparados pela mãe. Os convidados tanto podiam ser sócios do clube como vizinhos que nunca tiveram dinheiro para frequentar um. Para o pai, jamais existiu esse negócio de rico e pobre, preto e branco, culto e semianalfabeto. Uma pessoa era uma pessoa e estamos conversados” (grifo nosso) – pág. 67.

Gentileza e Concentração

“Ao mesmo tempo que explorava os limites físicos, eu tentava domar o lado mental. Na maior parte do juvenil, eu tinha uma característica que não conseguia mudar. Era bonzinho demais na quadra, o que representava uma fragilidade emocional para mim e uma vantagem par ao adversário. Se estivesse ganhando de 5-0, às vezes acontecia de ficar com pena e relaxar. (...) Amolecia o jogo, o adversário virava e eu perdia. Era talvez uma herança da mãe, assistente social por vocação, que dizia que eu tinha que considerar todas as pessoas e ser gentil com todo mundo. Mas aquilo não combinava com a quadra de tênis, onde Larri [principal treinador da carreira de Guga] tentava me ensinar a ser matador. O fato é que, sem dominar a parte mental, não há chance de alguém se tornar campeão. Então, com a mesma determinação de me fazer mudar a esquerda, Larri trabalhava uma parte minha muito mais preciosa, delicada e intangível” (grifos nossos) – págs. 139-140.

Persistência

“Na base de tentativa e erro, derrapamos muito, mas sempre conseguimos voltar logo para o eixo. Em todos os momentos, tínhamos a certeza interior de que, mesmo batendo vinte vezes no muro, incidentes e acidentes faziam parte do percurso e do aprendizado. A gente só tinha que fazer nossa parte, cair, levantar, se sacudir, não ficar pensando no desastre e seguir adiante mirando no mais alto que desse” (grifo nosso) – pág. 143.

O bem que faz um apoio no momento certo

“Em três semanas, fomos do desespero ao alívio total. Os dois patrocínios possibilitavam que a gente jogasse os torneios grandes na Europa. Além da salvação financeira, os novos parceiros fizeram bem à alma. Eu não estava sozinho. Ainda apostavam em mim como tenista, acreditavam no meu jogo. Essa sensação era mais bem-vinda do que dinheiro” (grifo nosso) – págs. 177-178.

Consciência da própria grandeza, sem soberba

“Conversando com a equipe numa Copa Davis, Thomaz Koch falou que as pessoas que alcançam o sucesso precisam aceitar que merecem esse posto. O sucesso não é natural nem uma coisa simples para um brasileiro. Eu precisava me convencer diariamente de que era o melhor jogador de tênis do mundo. Tinha de construir isso todo dia na minha cabeça, aceitar os meus méritos, me permitir incorporar a ideia, me sentir confortável com isso. O disco rígido na minha mente não foi programado para isso. Por mais que minha família me incentivasse, a cultura jogava contra. (...) No Brasil, de maneira geral, convivemos com o hábito de depreciar nossa capacidade e nossos valores” (grifo nosso) – pág. 297.

“Para mim, ser campeão é uma mentalidade, um estado de espírito. O adversário pode até ser superior, mas o campeão entra em quadra sabendo que, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor grau de dificuldade, vai ficar com a taça. Mesmo derrotado, ele se sente imbatível. Sua aura vitoriosa é inabalável. Esse é o paradoxo do grande campeão” (grifos nossos) – pág. 368.

Ao retirar a pressão sobre si próprio, a tendência é o seu jogo aumentar de nível

“Desesperançado, ganhei o game seguinte e a partida ficou 5-3* para ele no terceiro set. Nada que mudasse o cenário. Russell [americano Michael Russell, 122º do ranking mundial na partida em que atravessou o caminho de Guga rumo ao tricampeonato de Roland Garros, nas oitavas de final] sacou e o game ficou em 40/30, o match point na mão dele. A essa altura, eu não me importava mais com o que ia acontecer. Como no jogo contra o Medvedev no Roland Garros de 1997 [ano do primeiro título naquele torneio], mandei tudo às favas e, para descontar a raiva, joguei o ponto de qualquer jeito. Num rali de mais de vinte bolas, eu batendo cada vez mais forte, acertei duas vezes a linha, e não é que ganhei o ponto? Empatei, 40 iguais” (grifos nossos) – página 305.

*Aqui cabem algumas explicações sobre o jogo de tênis. Esse é disputado em melhor de 3 ou 5 sets, dependendo do torneio. Para quem acompanha o voleibol, no esporte do Bernardinho – outro dos “Caras” - é disputado numa melhor de 5 sets, ou seja, quem ganha 3 sets primeiro vence. Em Roland Garros ocorre o mesmo. As partidas são em melhor de 5 sets. Sobre o jogo de tênis em si, cada set é composto por games – pequenas partidas em que o jogador deve vencer 4 pontos, numa sequência que vai de 15-30-40-ponto final. Caso empatem em 40 (os 40 iguais citados no livro), o vencedor deverá conquistar dois pontos seguidos para fechar o game. Para se ganhar um set é necessário que o jogador ganhe no mínimo 6 games, com uma diferença de dois games para o perdedor. Caso empatem em 6 games, é disputado um tie-break – um game especial com uma nova pontuação, em que cada ponto vale 1 simplesmente, ganhando aquele que atingir 7 pontos primeiro. Quando o jogador está prestes a fechar um game, ele tem o que se chama de game point. Para fechar um set, de set point. E para fechar uma partida (match), um match point. Para uma jogada ser considerada válida, a bola atirada pelo jogador deve cair dentro dos limites da quadra, considerando-se “dentro” se ela tocar o mínimo que seja uma das linhas que a delimitam, o que é uma jogada de extremo risco e dificuldade. Por isso a menção especial no trecho “acertei duas vezes na linha”, ressaltando o feito alcançado.

Obstinação

“Existe pouca coisa pior para um jogador do que duvidar de sua capacidade. Só os obstinados são campeões. Derrotas podem ser compreensíveis, às vezes inevitáveis, mas jamais aceitáveis. O tenista pode perder algumas vezes de um cara excelente, mas depois tem que ganhar, pois sempre existe um caminho para vitória e questão é encontrá-lo. É bobagem essa história de que é na derrota que se aprende a ganhar. Perder uma partida tem, sim, seus ensinamentos e lidar com a frustração é uma lição necessária para todo tenista. Mas, no dia em que um jogador se conforma com resultados desfavoráveis, já era, pode pendurar as chuteiras. O que ensina a ganhar é a soma das experiências, dos treinos, dos desafios, das derrotas e das vitórias, sendo que vencer tende a ensinar mais que perder. A vitória é o combustível do vencedor, seu alimento, o propulsor para triunfar cada vez mais” (grifos nossos) – pág. 329.

Ser brasileiro


“Nasci num país que me indicava o sentido oposto e, através de um caminho longo e repleto de obstáculos, construí uma carreira de sucesso. De longe parecia impossível, de perto a cada dia estávamos mais certos. Não era para passar de um sonho o que hoje brindamos como realidade. Com suor, sorrisos e lágrimas aconteceu comigo o que poderia acontecer com qualquer brasileiro” (grifo nosso) – pág. 372.