domingo, 27 de abril de 2014

BATTLE ROYALE

- Compreendo – Shogo murmurou, e olhou para baixo. – Bem, os bons nem sempre são salvos, e este jogo não é exceção. Mas tenho inveja daqueles que seguem sua consciência, mesmo cometendo erros e sendo rejeitado pelos outros. (pág. 200).

Quando Tarantino passou a chocar o mundo do cinema com sua leitura violenta do mundo que nos cerca, apresentada de maneira nua e crua na telona, muitos pensaram que seria mais um cineasta que se limitaria a poucos filmes, tal sua restrição em termos de visão. Porém, ele seguiu em frente, produzindo obras e mais obras que passaram a ter um público fiel. O sangue espirrando em seus roteiros, no que parecia ser apenas um retorno aos filmes típicos de Charles Bronson e Chuck Norris, na verdade sempre trouxe mensagens embutidas, escondidas aos olhos do espectador menos atento. A mais simples dela é justamente a ode a uma década por alguns considerada cafona, mas que marcou uma geração, como os anos 70.

Além disso tudo que citei acima, Tarantino passou a influenciar uma geração de artistas. Tive acesso recentemente a uma obra de ficção japonesa chamada Battle Royale, de Koushun Takami – Ed. Globo – 2014 – 663 págs. Nesta, um grupo de 42 estudantes, que vivem num país facista, chamado República da Grande Ásia Oriental – uma paródia ao Japão – participam de um programa que ocorre anualmente e que elege, de maneira aleatória, uma turma qualquer do 9º ano do ensino fundamental (estamos falando de adolescentes de 15 anos), para participar de uma espécie de jogo mortal, em que eles são confinados num determinado lugar, até que somente reste 1. Mas as eliminações não se dão como no Big Brother, por votação, mas sim pelo assassinato de seus oponentes.



Uma vez, disse Shuya Nanahara: “Vivemos sob um regime fascista bem-sucedido. Em que outra parte do mundo há algo tão malévolo?”. Ele tinha razão, o país era louco. Não apenas aquele jogo absurdo: qualquer um que mostrasse o menor sinal de resistência ao governo era eliminado na hora. O sistema não perdoava nem mesmo os inocentes. Por isso, todos continuavam intimidados pela sombra do governo, obedecendo totalmente às suas políticas, e viviam tendo como consolo somente as pequenas felicidades da vida diária. (pág. 214).

Antes que vocês cuspam no chão com asco de uma estória com essa proposta, devo sinalizar algumas coisas: primeiro, que o livro gera um enorme suspense, com recursos interessantes até mesmo em termos gráficos – a ilha onde se passa é dividida em quadrantes, que se tornam proibidos de transitar à medida que passa o jogo. Existe um mapa na contracapa para que os leitores mais desatentos possam acompanhar este desenvolvimento. O autor ainda coloca, ao final de cada capítulo, quantos estudantes restam, dando ritmo à narrativa. E existe ainda vilão detestável – o Sr. Sagamochi – que é quem conduz o programa. Todos os elementos, portanto, de um show que prende atenção estão ali colocados. Postos os preconceitos de lado, os mesmos que se vêem enredados por uma boa estória com espiões da Guerra Fria ficariam motivados a não largar o livro até a última página.



O leitor recebe uma série de avisos sobre o potencial explosivo da obra. O autor, Koushun Takami, é assim apresentado – “(...) nasceu em 10 de Janeiro de 1969 [meu contemporâneo, portanto]. (...) Formado em literatura pela Universidade de Osaka, trabalhou como repórter de política e economia. Deixou o jornalismo para se dedicar a literatura, mas não lançou nenhuma obra além de Battle Royale, que foi desclassificada na fase final do prêmio Japan Grand Prix Horror Novel pelo seu conteúdo polêmico” (grifo nosso). Apesar disso, foi um livro que vendeu mais de 1 milhão de exemplares no Japão e Tarantino “declarou que (...) é a história que ele sempre quis filmar” (1). Curiosa ainda é a dedicatória do autor: “Dedico este livro a todas as pessoas que amo. Embora duvide que elas me agradeçam por isso”.

Devo acrescentar, porém, que apesar de toda mídia girar, aparentemente, em torno da violência ali inserida – o que me parece um apelo muito fácil às mentes dos consumidores ávidos por este tipo de “entretenimento” – a obra apresenta outros aspectos que nos fazem refletir. Não se deve esquecer, por exemplo, que é um autor japonês, contemporâneo, buscando expor as mazelas da sociedade em que vive. Os estereótipos em torno dos japoneses e da juventude retratada nos mangás (2) se faz presente. “Eu sou quem eu sou. E você é você. Mesmo que eu seja bom no basquete ou com computadores, ou popular com as garotas, não é isso que determina o valor de uma pessoa” (pág. 253). Na verdade, no decorrer da leitura fica fácil imaginar os adolescentes japoneses, protagonistas, com seus risos de lado, aquele comportamento contido de algumas meninas. E como jovens do mundo inteiro, que têm também seus romances, desejos, expectativas, sonhos de uma vida sem fim, mas que de repente se vêem confrontados com o ponto final bem próximo. “Pensando nisso, uma sensação gélida lhe correu espinha abaixo. ‘Morrer? Eu? Eu vou morrer?’” (pág. 268).Como eles reagiriam sob pressão, estando tão despreparados para o que a vida lhes reserva?

Outro aspecto é a caracterização e crítica da sociedade em que estamos inseridos. Existe até mesmo descrições, tanto do Japão quanto da China – esta última minha interpretação, pois no texto não são esses os países designados literalmente – que estão próximos, obviamente, do pensamento padrão ocidental. Exemplos:

  Ø  Japão – palavras de um dos protagonistas sobre a República da Grande Ásia Oriental: “Acho que o atual sistema praticado por este país cabe como uma luva aos seus cidadãos. Em outras palavras, sua subserviência aos superiores. Algo do tipo ‘maria vai com as outras’. Dependência de outros e mentalidade de grupo. Conservadorismo e passividade. Se lhe mostram algo que certamente é para o bem público, com motivo nobre, mesmo que seja delação, eles sentem que estão fazendo algo bom. (...) Ou seja, não há lugar para orgulho nem ética. E ninguém pensa por si. Seguimos ordens sem refletir. Isso me enoja” (pág. 245);
  Ø  China – o vilão descreve a República da Grande Ásia Oriental: “Este é um país maravilhoso. Não há no mundo nação mais próspera que a nossa. Bem, existem restrições a viagens ao exterior, mas nosso produtos industriais para exportação são insuperáveis. Nosso PIB per capita é o mais elevado do planeta e isso não é invenção da mídia governamental. E nossa prosperidade existe apenas em virtude de uma população unificada sob um governo central poderoso. Certo grau de controle sempre é necessário. De outra forma declinaríamos à categoria de nação de terceiro mundo, como o império americano. Você sabe disso, não? Aquele país está em turbulência por causa de muitos problemas, como drogas, violência e homossexualidade. Eles vivem de glórias passadas, mas é só uma questão de tempo até se esfalecerem” (pág. 643).

Dessa forma a República da Grande Ásia Oriental poderia ser qualquer país que tivesse tais características. Porém minha percepção se voltou para estes dois acima.

O anseio por fugir para os Estados Unidos também está lá, a terra onde tudo pode, num contraste com um país em que tudo é proibido. Ora, este não é o primeiro autor – e talvez com mais autoridade por ser nipônico – a afirmar que na sociedade japonesa se vive uma opressão latente, ainda mais sobre os jovens, que devem sempre buscar sua afirmação pela superioridade. Mas, lhes pergunto, isso seria uma característica exclusivamente oriental? Será que nós não estamos imersos na mesma roda-viva?

De todo modo, alguns de vocês já sabem que sou fã do Tarantino. Assim, é óbvio que para o meu gosto a obra satisfaz – o final poderia ser melhor, mas entendo que atingiu o objetivo de ser um tanto quanto diferenciado, como os filmes do cineasta americano tão citado nesta resenha. Mas tenho que ser sincero: há que ter estômago. E é como eu costumo dizer: vai encarar?

Battle Royale, o filme.

     (1)   “Em 2000 ganhou uma adaptação para o cinema com o ator Takeshi Kitano e a atriz Chiaki Kuriyama, de Kill Bill”. O livro é originalmente de 1999;
     
     A turma, em sua versão mangá



     (2)   A estagiária no meu trabalho mandou a curiosa mensagem ao meu telefone – “Eu li a versão mangá desse livro XD é muito bom!”. Ao que respondi: “Ainda tenho muito que aprender com a nova geração”.

domingo, 20 de abril de 2014

1565: ENQUANTO O BRASIL NASCIA


Ainda chove em fevereiro e março. Todos os anos.

Uma ode ao Rio de Janeiro. É isto que nos oferece que Pedro Doria em seu “1565 – Enquanto o Brasil Nascia”, Ed. Nova Fronteira – 2012 – 277 págs. Um exemplo disto, mais carioca impossível, é o dito que coloco na abertura desta resenha, exposto na página 137, mesma ponto em que ele indica se localizar o marco de criação da cidade: “Pelos cálculos de João da Costa Ferreira, em seu estudo do início do século XX sobre essa primeira distribuição de terras do Rio de Janeiro, a Casa de Pedra tem endereço. É no Flamengo, esquina das ruas Princesa Januária e Senador Eusébio”.

O Rio nasceu entre o Pão de Açúcar e o morro da Urca, e lá se isolaram os primeiros colonos. “Não há tempo nem oportunidade para recuarmos”, gritou Estácio de Sá aos homens em seu discurso de fundação que um notário registrou, “porque de um lado nos cercam estas penhas, e do outro, as águas do oceano; e pela direita e esquerda os inimigos, só podemos romper o cerco debandando-os.” (pág. 118).

Pedro Doria, jornalista, em seu pósfácio descortina sua inquietude com a ausência de uma obra que apontasse para os primórdios de tão importante localidade, tal sua força enquanto referência do Brasil. Somos, então, a partir de seu trabalho, imersos numa época em que o Rio de Janeiro ainda se formava, não passava de uma vila, e aos poucos, pela força de “portugueses, franceses, índios e negros”, alcança sua singularidade enquanto parâmetro para o desenvolvimento daquele país tão recente em sua história oficial.

O autor, imagens de época, e a capa de sua obra

Para pessoas como eu, que vivem e convivem, caminham entre as ruas do Centro do Rio de Janeiro pelo menos 5 dias por semana, é de um sabor imenso imaginar como se deu sua evolução. “Há um desnível na pista que desce uns palmos numa ladeira ligeira para chegar ao Paço Imperial – onde a Presidente Antônio Carlos muda o nome para Primeiro de Março. Ali, no desnível, o motorista acaba de atravessar o membro desaparecido da cidade. (...) O morro do Castelo ocupou uma área de 184.000 metros quadrados, o equivalente a 18 quarteirões do Rio atual, delimitado em suas partes mais extremas pelas ruas São José, Santa Luzia, México e pelo largo da Misericórdia” (pág. 149). Ficamos a ler as páginas do livro com as cabeças naquele tempo, tentando vislumbrar como seriam ruas e seus passantes, o modo de viver de um povo que tentava se estabelecer em terras hostis. Hostilidade esta natural, para povos indígenas que viviam em guerra pelo seu território, sendo os colonos portugueses e os invasores franceses apenas grupos adicionais neste tabuleiro imenso pela sobrevivência.

Impressionante o retrato que se traça, desmistificando aquela imagem de sobrepujança, pelo menos em seus primeiros 200 anos, da cultura portuguesa. Na verdade existia uma mescla muito grande entre brancos e índios, gerando a mestiçagem necessária para que a coexistência fosse possível. O tupi muitas vezes sendo o idioma corrente, até pela caminhar do desbravamento via bandeiras, adentro do país, ferramenta de contato com outros indígenas.

Somos também levados a compreender como uma família – os Sá, de Estácio, Mém, Salvador (pai e filho) e Martim – predominaram na política do Rio de Janeiro, até que a corte portuguesa percebesse que era chegado o momento de uma virada. Eles, porém, não deixaram de ser a amálgama que uniu gerações e gerações de lutadores e índios, esta última pelo respeito alcançado na luta ombro a ombro contra franceses e holandeses pela proteção da Guanabara.

Eu, niteroiense como sou, ainda vislumbro como um personagem ora coadjuvante, ora de peso, Araribóia, indígena que recebeu as terras de São Lourenço – futura Niterói – como pagamento pelo apoio prestado nas lutas acima citadas. Elas são, portanto, enquadradas no sentido de que este personagem, tão identificado com este lado da baía, tendo sido na verdade mais um daqueles que lutou pela prevalência do comando local e português no Rio de Janeiro. Até mesmo por isso está a olhar para a cidade maravilhosa.

Araí-boia quer dizer cobra da tempestade, nome de uma serpente aquática verde-escura. Era o nome de um índio temiminó que a história lembraria por Arariboia. (...) Porque era fidelíssimo aos portugueses, também excepcional guerreiro – e porque conhecia muito bem o lugar -, Mem de Sá aconselhou Estácio a não partir para a guerra sem ter Arariboia ao seu lado. Quando deixaram a Guanabara, naquele 2 de abril em 1563, Arariboia seguiu para São Vicente, onde foi batizado Martim Afonso. (...) A expulsão dos tamoios teria para Arariboia um gosto muito particular: era o seu retorno, a vitória após a derrota – sempre os conflitos entre franceses e portugueses encontrando paralelos entre as cizânias tupis. Afinal, assim como a maioria dos tamoios era tupinambá, os temiminós eram aliados dos tupiniquins. (págs. 112-113).

Este é o tipo de ensino de História que não vemos nos colégios. Nestes, nossas crianças têm apenas uma pequena semente do que poderão vir a explorar no futuro se tiverem curiosidade – lacuna esta suprida a contento por esta obra que ora avalio e avalizo. São dados aos nossos filhos pequenos nacos de uma vivência muito mais rica, com tramas políticas e de brutalidade, algumas até engraçadas pela ingenuidade e pela inexperiência de muitos que aqui aportaram como encarregados desta terra, jovens recém-saídos da adolescência que de repente se viam à frente de homens para lutar por um Brasil que ainda não tinha sua noção de país, mas que já demonstrava o quão guerreiro – e hospitaleiro - seu povo iria se tornar. Leitura a qual recomendo.

OBS.: De tão gosto me peguei pela prosa de Pedro Doria que mal posso esperar por ler seu próximo livro, “1789”.


Imagens extraídas de http://botequimcultural.com.br/1565-enquanto-o-brasil-nascia/