domingo, 12 de maio de 2013

O CEMITÉRIO DE PRAGA


Muito ruim! É isso mesmo que vocês estão lendo. Eu nunca pensei que fosse escrever sobre uma obra, ainda mais de Umberto Eco, um ícone após o célebre “O Nome da Rosa” (1980), que gerou um filme de igual sucesso, tal contundente opinião. Mas esta foi construída sob a árdua pena de ler a obra por inteiro.

A estória gira em torno de um personagem assaltado pela moléstia da dupla personalidade. Capitão Simonini / Abade Dalla Picolla são a dupla faceta de um tabelião que sobrevive do talento para ser falsário de documentos. Para completar a tríade narrativa, ainda existe um terceiro Narrador, com ‘N’ maiúsculo mesmo, agente externo para esclarecer o desenrolar do romance.

A criação deste terceiro ente me parece a prova mais cabal que o autor italiano se viu em determinado momento enredado na dificuldade de expor suas próprias idéias aos leitores. Talvez o tenha passado quando da revisão com o editor, não sei, mas que parece aquela situação esdrúxula pela qual muitos já passaram de ter que explicar a piada – e o bem sabem o quão ridículo e vexaminoso assim o é.

O autor e sua obra, com o título original, em italiano.

O que dizer em defesa de Umberto Eco? Talvez esta obra seja válida para o imaginário italiano, alcançando o coração de seus conterrâneos, uma vez que em sua primeira parte ambienta a narrativa durante o processo de construção da República da Itália. Tendo como argumento que os únicos personagens ficcionais seriam aqueles acima apontados, poderão aguçar a curiosidade daqueles que gostariam de se aprofundar na alma daquela época – que de um certo modo vêm a gerar a loucura política pela qual o país da bota passa desde a era Berlusconi até hoje.

Uma das características que o autor gosta de ilustrar para apontar como um traço relevante do perfil do italiano é sua paixão pela gastronomia. Sempre presente durante as páginas do livro, vira e mexe encontramos o receituário a ser seguido para se produzir uma iguaria culinária:

“Meus mestres gostavam de comer bem, (...). Eram necessários ao menos meio quilo de músculo de boi, um rabo, alcatra, salaminho, língua e cabeça de vitela, lingüiça, galinha, uma cebola, duas cenouras, dois talos de aipo e um punhado de salsa. Deixava-se cozinhar tudo por tempos diferentes, segundo o tipo de carne. Porém, como lembrava vovô, (...), assim que o cozido era colocado na travessa, para ser levado à mesa, era preciso espalhar um punhado de sal grosso sobre a carne e derramar nela algumas conchas de caldo fervente, para ressaltar o sabor. Poucos acompanhamentos, exceto umas batatas, mas eram fundamentais os molhos; podiam ser de mosto, de rabanete ou de frutas com mostarda, mas sobretudo (vovô não transigia) o molhinho verde: um punhado de salsa, quatro filés de anchova, miolo de um pãozinho, uma colher de alcaparras, um dente de alho, uma gema de ovo cozido. Tudo finalmente triturado, com azeite de oliva e vinagre” (págs. 74-75).

O volume de citações como as descritas acima é fora do normal. Aí lhes pergunto: se estivéssemos realmente interessados no tema, não seria mais adequado buscar os conselhos de alguém como Jamie Oliver?

Além desta linha de ataque – a produção em profusão de aspectos para qualificar um determinado povo (neste caso o italiano, mas a obra segue com a mesma volúpia em relação aos franceses, aos prussianos, aos russos e principalmente aos judeus, sempre de forma no mínimo jocosa, o que de certa forma mais uma vez enaltece o fato de que o autor tinha por objetivo, utilizando-se da ironia, em identificar como abjeto o modo de ver da direita radical tão em voga na Europa hoje em dia) – Umberto Eco também parte para traçar o contorno de determinadas profissões e suas dubiedades. Sobre o falsário, algo tão próximo do dilema advocatício, principalmente no campo criminal:

“- Que fique claro, caro Simone – explicava Rebaudengo [personagem que ensinou o ofício de falsário ao protagonista], passando ao você -, que não produzo falsificações, mas sim novas cópias de um documento autêntico (...). Mas, se um inimigo seu, digamos assim, aspirasse à sua herança e você soubesse que ele certamente não nasceu nem do seu pai nem da sua mãe (...) eu, por assim dizer, ajudaria a verdade, confirmaria aquilo que sabemos ser verdadeiro e não teria remorsos.
- Sim, mas como o senhor faria para saber de quem realmente nasceu o tal sujeito?
- Você mesmo me diria! Você que o conheceria bem.
- E o senhor confiaria em mim?
- Eu sempre confio nos meus clientes, porque só presto serviço a pessoas honradas.
- Mas, se, por acaso, o cliente tiver lhe mentido?
- Então foi ele quem cometeu o pecado, não eu. Se eu começar a pensar que o cliente pode me mentir, então não exerço mais esse ofício, que se baseia na confiança”. (págs. 98-99)

Em tempos de mensalão e do caso Bruno e Eliza Samúdio nada mais adequado.

A narrativa prossegue, saindo da Itália recém republicana para as convulsões numa França das comunas. Nesse cenário, Eco se aproveita para fazer uma crítica às pseudo-democracias, verdadeiras ditaduras que proliferam mundo afora. Aparentemente o alvo são Governos como por exemplo do falecido Hugo Chávez, ao discutir a possibilidade de usufruir de uma obra difamatória para manipular o povo:

“- Compreende? Conseguir realizar o despotismo graças ao sufrágio universal! O miserável [Napoleão III] de um golpe de Estado autoritário recorrendo à obediência bovina do povo! Está nos mostrando como será a democracia de amanhã” (pág. 195).


Por último, Eco ataca as raízes de uma sociedade em que cada vez mais existe o culto às celebridades instantâneas, à vida desenvolvida com base na esperteza e na futilidade, talvez proporcionada pelo advento do fenômeno da internet e a facilidade para a circulação da informação (sem o devido cuidado de se separar o joio do trigo – o tão propalado “lixo” existente na rede):

“O Narrador considera que Simonini se antecipava aos novos tempos: no fundo, com a difusão da imprensa livre e dos novos sistemas de informação, do telégrafo ao rádio já iminente, as notícias reservadas tornavam-se cada vez mais raras, [...] Melhor não possuir nenhum segredo, mas aparentar possuí-los. Era como viver de rendas ou gozar dos proventos de uma patente: você fica de papo para o ar, os outros se vangloriam de ter recebido de você revelações perturbadoras, sua fama se revigora e o dinheiro lhe chega com facilidade” (págs. 310-311).

Se a intenção do autor era fazer uma crítica social, me parece que a escolha de um romance histórico, como ele mesmo diz, “com tantos avanços e recuos, ou seja, aquilo que os cineastas chamam de flashback” (pág. 473), não foi a melhor estratégia. Ao final, o próprio prepara, como se fosse uma mea culpa, uma tabela explicativa, com três colunas, para melhor situar o leitor na seqüência dos fatos então narrados. Me parece que Eco produziu um livro para consumo interno, esquecendo-se de seu público universal, de enredo deveras complicado, com inúmeras passagens descartáveis (o último quarto do livro, no qual ele se perde em uma trama entrelaçando maçonaria, Igreja Católica e ocultismo é de uma falta de necessidade sem fim – ainda mais levando-se em conta que já teríamos ultrapassado, a duras penas, cerca de 300 páginas do total de 480). Pior, perdeu uma grande oportunidade de nos brindar com uma obra de não-ficção, em que colocaria os pingos nos i’s e nos deleitaria com sua grande erudição e conhecimento de causa a respeito da política e da sociedade atual, e mesmo assim de mais fácil leitura. Uma pena!

Ficha: “Cemitério de Praga” – ECO, Umberto – Ed. Record, 2011- 480 págs.