Quando
ganhei de aniversário, em 2012, da minha querida amiga Lúcia Motta o livro “Justiça:
o que é fazer a coisa certa” – Michael J. Sandel – Ed. Civilização Brasileira –
2011 – 349 págs. – me veio logo à mente o intuito ou mensagem que ela estava
querendo passar: se eu deveria labutar o meu senso de justiça na qualidade de
gestor? Ou se ela me achava uma pessoa justa? Ou ainda, pelo fato de ser um
livro baseado no curso de Harvard, homônimo, conduzido pelo autor, e ela me
considerava apto o suficiente para absorver os ensinamentos e aplicá-los? E
poderia ser tudo isso junto também.
Demorei
muito tempo para abordá-lo. Dois anos se passaram, dois anos em que muita coisa
aconteceu na minha vida. Mais do que nunca percebo hoje como a experiência no
ensina a tomar decisões, algumas sábias, outras nem tanto, e o livro de Sandel
trafega justamente sobre essa linha. Os seus alunos, confrontados com dilemas
de princípios, são levados a raciocinar sobre qual melhor atitude tomar diante das
encruzilhadas que se oferecem em seu caminho.
Sandel
inicia sua jornada sublinhando os conceitos de justiça e as premissas que
conduziram o leitor em sua jornada: “Se você prestar atenção ao debate, notará
que os argumentos (...) giram em torno de três idéias: aumentar o bem-estar,
respeitar a liberdade e promover a virtude. Cada uma dessas idéias aponta para
uma forma diferente de pensar sobre justiça” – pág. 14.
Com
o decorrer da leitura percebemos que estes conceitos não são necessariamente
excludentes, porém interagem entre si, algumas vezes reforçando um determinado
aspecto. O problema é que a outra abordagem pode se ressentir de um
enfraquecimento. Por exemplo, uma atitude pode aumentar o bem-estar dentro de um
grupo, mas isso não quer dizer que se respeite a liberdade – qual é o sentimento,
por exemplo, dos americanos quando se prendem terroristas na base de Guantánamo?
Difícil, não.
Para saber se uma sociedade é justa, basta perguntar
como ela distribui as coisas que valoriza – renda e riqueza, deveres e
direitos, poderes e oportunidades, cargos e honrarias. Uma sociedade justa
distribui esses bens da maneira correta; ela dá a cada indivíduo o que lhe é
devido. As perguntas difíceis começam quando indagamos o que é devido às
pessoas e por quê. – pág. 28
O
dilema do respeito à liberdade se mostra particularmente difícil, pois ele cria
dois grupos que acabam se inserindo em pólos opostos a partir do momento em que
passam a usar argumentos extremistas em favor dos seus conceitos. Em tempos de
eleição isso fica muito claro. “Liderando o campo do laissez-faire estão os
libertários do livre mercado que acreditam que a justiça consiste em respeitar
e preservar as escolhas feitas por adultos conscientes. No campo da
equanimidade estão os teóricos de tendência mais igualitária. Eles argumentam
que os mercados sem restrições não são justos nem livres” – pág. 29.
O
caminho do equilíbrio, de se observar as boas práticas em ambos os lados e
buscar utilizá-las em favor de um sistema misto seria o ideal. Mas para isso o
senso de justiça também é necessário, pois há que se saber ponderar a
porcentagem de uso de uma determinada prática em detrimento de uma menor
implantação de outra. Para um curso de filosofia, este é um maná dos céus, pois
alunos e professores não são donos da verdade e estão ali para debater, o que
não significa que vão chegar a uma conclusão de consenso. Na verdade, cada um
sai enriquecido com um maior poder de argumentação, criando seus próprios
conceitos do que pensa ser justiça e em como aplicá-la.
O
autor, partindo dessas dificuldades de análise do tema, além de tantas outras
que ele se auto-impõe e expõe aos seus alunos, passa então a discorrer como
este assunto foi tratado por outros filósofos no decorrer do tempo. Um dos que
foi citado é John Rawls (1). No livro “Teoria da Justiça” ele faz uma
importante afirmação em torno da (in)justiça em termos da distribuição natural
de oportunidades entre os indivíduos numa sociedade: “A distribuição natural
não é justa nem injusta; tampouco é injusto que as pessoas nasçam em uma
determinada posição da sociedade. Esses fatos são simplesmente naturais. O que
é justo ou injusto é a maneira como as instituições lidam com esses fatos” –
pág. 204.
Este
é o tipo de conflito que vivemos a todo momento quando estamos numa posição
gerencial, por exemplo. Se você identifica um colega (ou subordinado) de grande
potencial, mas que o desperdiça por variáveis externas, algumas controláveis ou
não, você deveria dar a oportunidade de uma vaga para ele mesmo assim por conta
de seu talento futuro? Ou deveria priorizar aquele outro que se esforça, mas que
está perto do seu limite? Garantir o presente ou apostar no futuro? Como a
instituição – e você, gerente, por tabela – se beneficia de sua decisão?
Voltando
a questão anteriormente abordada, o autor enfatiza mais uma vez que se deve
evitar os extremos, buscar o caminho do meio, e a dificuldade em alcançá-lo de
maneira equilibrada. Para tanto cita Aristóteles (2), que em “Ética ao Nicômaco”
afirmou:
A única afirmação genérica que pode ser feita em
relação à virtude moral, diz Aristóteles, é que ela é um meio entre os
extremos. No entanto, ele se apressa em admitir que tal generalização não nos
leva muito longe, porque não é fácil distinguir o meio em qualquer situação. A
questão é fazer a coisa certa “para a pessoa certa, na dimensão certa,
no momento certo, pelo motivo certo e da maneira certa”. – pág. 246.
Com
o intuito de identificar aqueles mais capazes para assumir tal função, de
identificar a melhor ação, a mais justa em determinada circunstância,
Aristóteles teria indicado a necessidade da sabedoria prática. “Os indivíduos
com sabedoria prática são capazes de deliberar corretamente sobre o que é bom,
não apenas para si mesmos, mas também para seus concidadãos e para os seres
humanos em geral. (...) É algo orientado para a ação aqui e agora. (...)
Procura identificar o mais alto bem humano atingível em cada circunstância” –
pág. 246.
Após idas e vindas, distintos cenários criados, o autor chega a conclusão que não existe uma única resposta, a final, pronta, para deliberar o que é justo ou injusto. Existem escolhas que devem ser feitas, e devemos saber aprender a lidar com as conseqüências delas, estando abertos ao debate sobre as mesmas, para poder defendê-las ou até mesmo dar um passo atrás e refazer o que era antes uma convicção em prol de outra, que foi demonstrada ser mais acertada pelo seu “debatedor”. Sandel, enfim, preconiza que a base para uma sociedade justa é o que ele chama de “respeito mútuo” pelas diferentes idéias.
Um comprometimento
público maior com nossas divergências morais proporcionaria uma base para o
respeito mútuo mais forte, e não mais fraca. Em vez de evitar as convicções
morais e religiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública,
deveríamos nos dedicar a elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e
contestando-as, às vezes ouvindo-as e aprendendo com elas. Não há garantias de
que a deliberação pública sobre questões morais complexas possa levar, em
qualquer situação, a um acordo – ou mesmo à apreciação das concepções morais e
religiosas dos demais indivíduos. É sempre possível que aprender mais sobre uma
doutrina moral ou religiosa nos leve a gostar menos dela. Mas não saberemos
enquanto não tentarmos – pág. 330.
No
fim, espero que tenha estado à altura do desafio em termos de leitura que me
foi imposto. Via de regra gosto do debate, mas como a maioria dos seres
humanos, gosto mais ainda quando a minha tese prevalece. Resta saber se eu
aprendi a lidar com as derrotas, entendendo-as como justas em dado momento. Não
é fácil, mas quem disse que seria.
(1) John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político
norte-americano, falecido aos 81 anos, em 2002, é tido como o principal teórico
da democracia liberal dos dias de hoje.
(2)
O Filósofo grego Aristóteles nasceu em 384 a.C., na cidade antiga de
Estágira, e morreu em 322 a.C. Seus pensamentos filosóficos e idéias sobre a
humanidade tem influências significativas na educação e no pensamento ocidental
contemporâneo. Aristóteles é considerado o criador do pensamento lógico.