segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA – as práticas da política e a política das práticas


Em 2016 adquiri a obra “Política Externa Brasileira – as práticas da política e a política das práticas”, uma coletânea de artigos organizada pelos professores Letícia Pinheiro e Carlos S. R. Milani, pesquisadores do campo das Relações Internacionais, ela vinculada ao Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio)[1] e ele atualmente está como professor-adjunto do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)[2].

 Fonte: www.amazon.com.br

Editada pela Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro)[3] no ano de 2012, contendo 352 páginas, busca expor as diferentes facetas que a política externa brasileira adquiriu a partir da inserção de maneira intensa de novos atores na sua construção e condução, à parte o “monopólio” da inteligência egressa até então do Itamaraty. O livro é dividido em 5 partes temáticas – Direitos Humanos, Cultura, Educação, Saúde e Paradiplomacia – transitando ao que os organizadores entendem, aparentemente, ser os temas mais caros à sociedade e para os quais conseguiram identificar uma ação efetiva pela interferência nos rumos ambicionados pelos atores nacionais perante seus pares externos.

O livro me chamou atenção pelo fato de que, uma vez atuando na área internacional de uma autarquia federal, minha experiência profissional não deixa de ser um reflexo do fenômeno o qual desejam investigar. A estruturação e a iniciativa de instituições públicas, que não somente o Ministério das Relações Exteriores (MRE)[4], em construir uma expertise e a capacidade de influenciar nos rumos das negociações entre Governos, quer seja pelo lado de política e comércio exterior, quer seja pela ótica da identificação e geração de pontes entre entes homólogos viabilizando a cooperação internacional entre estes, está presente no contexto tratado[5].

Em termos literários, a obra está organizada de maneira adequada para um texto acadêmico, tendo prefácio e introdução antes dos capítulos “de trabalho”, seguidos uma conclusão escrita à quatro mãos pelos organizadores, buscando sumarizar os conceitos trabalhados e alguns insights alcançados a partir do esforço de pesquisa empreendido. Porém, deve-se destacar que os textos das partes IV (Saúde) e V (Paradiplomacia)[6] são repetitivos, trazendo preceitos similares pelos autores selecionados.

Prof. Carlos R. S. Milani
Um aspecto que poderia melhorar a qualidade do trabalho acadêmico seria, deste modo, mostrar diferentes pontos de vista sobre o mesmo tema. Os autores selecionados por cada uma das partes pareciam comungar das mesmas ideias, não produzindo um debate acadêmico entre si, mas somente consigo mesmo no decorrer do próprio texto – algo típico da construção argumentativa no meio educacional.

De todo modo, para iniciantes, a obra é importante por apresentar ao público leigo perspectivas que muitas vezes passam despercebidas. As diferentes correntes filosóficas pelas quais a diplomacia pode se caracterizar[7] e seu impacto sobre a chamada “Indústria Criativa”; no campo da saúde uma das maiores vitórias diplomáticas brasileiras neste início de século como a obtenção perante a Organização Mundial do Comércio (OMC) da Declaração de Doha sobre Propriedade Intelectual e Saúde Pública[8], êxito alcançado por uma articulação de múltiplas frentes – MRE, Ministério da Saúde (MS)[9] e organizações não-governamentais (ONG), nacionais e multinacionais; a atuação transversal da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), unidade interna ao Itamaraty[10] ora de maneira positiva, atuando como facilitadora para o alcance e vislumbre de oportunidades por demais entidades, ora como um entrave, pela falta de regulamentação da cooperação internacional descentralizada, por exemplo. Temos ainda os dois últimos capítulos tratando da paradiplomacia, campo pouco explorado até mesmo em termos de divulgação – e não somente em estudos acadêmicos no hemisfério Sul – e prática; e o papel dos novos tomadores de decisão enquanto indivíduos promotores de políticas públicas e agentes que influenciam sua condução muitas vezes atrelando-se a entendimentos e crenças pessoais, algo que escapa ao olhar externo.

Pode-se dizer que a coletânea, assim, atinge seu objetivo ao jogar luz sobre a prática de política externa ocorrida “abaixo da linha do radar” exercida por elementos que não estão vinculados diretamente ao MRE e suas unidades. Tal tendência vem se tornando cada vez mais frequente no
Profª. Letícia Pinheiro
Fonte: https://neiarcadas.wordpress.com
mundo globalizado, dada a facilidade de comunicação entre diferentes elementos, muitas vezes servindo a propósitos de facilitação de entendimento das ambições por distintas partes, mas também como subterfúgio para escapar de canais formais mais adequados e hierarquicamente já estabelecidos. Porém, como os autores mesmo colocam, citando FRANÇA e SANCHEZ BADIN (2010)[11], “é no âmbito do Estado que as decisões são finalmente tomadas. O que mudou é que, se antes era possível falar de uma concentração desses assuntos na agenda do Ministério das Relações Exteriores, hoje os temas de política externa, por serem mais diversificados, povoam as atividades de outros ministérios e agências de governo, num novo arranjo institucional” (pág. 337).

Resta a eles, no entanto, buscar uma abrangência maior em termos políticos, pois selecionaram textos e contextos de autores que situaram sua análise entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Lula. Seria interessante, assim, ter um olhar mais amplo para verificar se os aspectos apontados são realmente estruturais ou conjunturais. Talvez a já mencionada possibilidade de identificar autores de diferentes correntes filosóficas para dissertarem sobre os mesmos temas suprisse essa lacuna.


[5] As partes II e IV, que correspondem respectivamente à Cultura e Saúde, estão vinculadas ao campo da Propriedade Intelectual via patentes e direitos autorais, principalmente.
[6] São sempre dois por cada parte. Deve-se destacar ainda o que é chamado de Paradiplomacia como sendo “o desenvolvimento de uma ação externa institucionalizada por parte de governos subnacionais [Estados, Municípios, etc] (...)”. A paradiplomacia também poderia se aplicar às áreas internacionais das autarquias federais.
[7] Capítulo 3 - “Entre o Palácio Itamaraty e o Palácio Capanema: perspectivas e desafios de uma diplomacia cultural no governo Lula” – págs. 95-120 – LESSA, Mônica L.; SARAIVA, Miriam G.; e MAPA, Dhiego de M..
[8] https://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min01_e/mindecl_trips_e.htm - in capítulo“Saúde pública, patentes e atores não estatais: a política externa do Brasil ante a epidemia de AIDS” – SOUZA, André de M. – págs. 203-240.
[11] FRANÇA, Cássio L. de; SANCHEZ BADIN, Michelle Ratton. A inserção internacional do Poder Executivo nacional brasileiro. Análises e Propostas, Friederich Ebert Stiftung, nº 40, ago. 2010.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

THE BEATLES: HISTÓRIA, DISCOGRAFIA, FOTOS


Dia 25 de Dezembro de 2018. Almoço de Natal em família. Após aproveitar os acepipes – em especial o empadão de camarão feito pela minha mãe – deixo a mesa ainda com muitos pratos a degustar e depois de um breve descanso repouso os meus olhos sobre um livro que busca dissecar – não tão detalhadamente quanto parece, mas muito mais do que eu havia feito até então – da trajetória deste ícone musical do século XX: a banda britânica The Beatles.

A obra que tive acesso – e que li inteira nesta mesma tarde - foi “The Beatles: História, Discografia, Fotos” – Terry Burrows (escritor e músico inglês) – Ed. Publifolha (SP) – edição de 2014 – 132 páginas – tem algumas qualidades e um defeito a ser ressaltar. Dentre as qualidades está o amplo arsenal de imagens retratando todas as épocas pelas quais a banda passou, desde a sua concepção, criação, formação final que a consagrou – John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, crise e derrocada final. Estas imagens não se circunscrevem apenas a fotos, mas incluem também reproduções de cartazes, ingressos, playlists para shows, autógrafos, etc.

https://www.cantodosclassicos.com/beatles-historia-discografia-fotos-e-documentos/

Agradável surpresa, logo nas partes iniciais do livro, quando cada um dos membros acima listados é apresentado, remete à origem familiar dos mesmos, seus pais e pessoas que os criaram e como se inseriam no meio escolar. Isto nos faz lembrar que àquela época – anos 60 – eram garotos (George Harrison se envolve com a banda aos 16 anos, quando foi para a turnê em Hamburgo – tendo sido deportado depois de volta à Inglaterra por ser menor de idade) ou jovens rapazes iniciando uma vida, que tinham em comum a paixão pela música e em especial o estilo que vinha crescendo – o rock’n roll.

Ultrapassada essa curiosidade antes não imaginada como sendo interessante – não me lembro de ter sequer uma vez me preocupado com sua origem familiar ao pensar ou discutir sobre os Beatles – os capítulos são divididos em épocas, algumas vezes saltando mais de 1 ano, mas em meio à década de 60 vai praticamente de ano em ano de modo a ser didático na evolução e influências sofridas pelos Fab Four. Os discos então produzidos são indicados igualmente, com sua discografia ora relatada ora reproduzida em boxes específicos. Sem dúvida um produto de grande porte – livro em capa dura, no formato de 28 x 31,8 cm, pesando mais de 2 kg, o chamado “livro de mesa” – tem quase como obrigação possuir um projeto gráfico de qualidade, e isso também é um ponto alto.

Fica claro para o leitor que alguns estereótipos estabelecidos não estão tão longe assim da realidade. A banda tinha como eixo criativo Paul e John, em menor medida George. Ringo acabou se destacando mais até nas produções cinematográficas do que pelo talento à bateria, mesmo tendo vindo de uma experiência bem sucedida numa banda anterior. Uma novidade para mim, pelo menos, é a informação de que muitas das músicas assinadas pelos dois primeiros, na verdade eram produção de um ou de outro, mas que se resolveu que assinariam conjuntamente talvez no intento – inferência minha – de evitar uma briga de vaidades entre os dois componentes mais criativos.

De todo modo, o próprio autor do livro, Burrows, colocou da seguinte forma a relação entre ambos e suas perspectivas, em entrevista dada ao jornal O Dia na época do lançamento do livro no Brasil – reproduzida aqui a partir do site www.osgarotosdeliverpool.com.br: “Não classificaria o Paul McCartney o beatle mais talentoso, mas certamente ele foi o mais entusiasmado, então acho que, mesmo se os Beatles nunca tivessem existido como grupo, ele ainda assim seria muito bem sucedido na música. John Lennon, por outro lado, suspeito que ficaria cansado de esperar o sucesso e teria seguido outra vertente artística. Quem sabe?”.

Não dá para escapar um sentimento de tristeza quando vai se aproximando o final do livro, dado que sua narrativa foi construída em forma cronológica. É a perspectiva de encerramento daquele sonho – e a visão de como as drogas (numa medida muito menor do que em relação a outros artistas contemporâneos deles naquela época), o dinheiro (ou não saber lidar com, após a morte do empresário Brian Epstein), a Sra. Yoko Ono (não foi central, mas teve sua parcela num momento em que Lennon estava aberto a sua influência por já estar com um sentimento de esgotamento com o restante do grupo e querer coisas novas) e o centralismo de McCartney na reta final - contribuíram para tal término. E ainda fica a sensação de que, mesmo com toda a qualidade da narrativa, esta poderia ser mais detalhada. O próprio Burrows, na entrevista acima citada, coloca que ainda acha que “Shout! The Beatles in Their Generation”, de Philip Norman, é melhor, sendo a publicação considerada como a “definitiva” biografia do grupo[1].

Para mim, em particular, ainda teve um quê de maldade quando é exposta uma citação – agora não me lembro de exatamente qual dos 4 (talvez George Harrison) – teria colocado sobre a percepção da solidão e do peso daquele mundo do show business teria sobre os jovens, Elvis em particular, enquanto nos Beatles, pelo menos, tinham os 4 para dividir tal fardo e poderem usufruir do melhor que aquela vida poderia proporcionar. Como um grande admirador do Rei – talvez mais do que dos Beatles, aquilo calou fundo na alma. E aí, de repente, dá vontade cantar...

Help

I need somebody
(Help) not just anybody
(Help) you know I need someone
(Help)
so much younger than today
(I never needed) I never needed anybody's help in any way
(Now) but now these days are gone (these days are gone) I'm not so self-assured (and now I find)
Now I find I've changed my mind, I've opened up the doors
Help me if you can, I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please help me?
My independence seems to vanish in the haze
(But) but every now and then (now and then) I feel so insecure (I know that I)
I know that I just need you like I never done before
Help me if you can, I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please help me?
When I was younger, so much younger than today
I never needed anybody's help in any way
(Now) but now these days are gone (these days are gone) I'm not so self-assured (and now I find)
Now I find, I've changed my mind, I've opened up the doors
Help me if you can, I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please help me, help me, help me, ooh?

Compositores: John Lennon / Paul Mccartney
Letra de Help! © Sony/ATV Music Publishing LLC




[1] http://www.osgarotosdeliverpool.com.br/2014/03/livro-sobre-os-beatles-vem-recheado-com.html

sábado, 22 de dezembro de 2018

Tartarugas Até Lá Embaixo


Um dos autores mais cultuados do público infanto-juvenil hoje em dia será aquele que fechará a jornada dupla a que me propus realizar imergindo no universo de livros que minha filha de 14 anos recentemente teve acesso. Trata-se de não menos que John Green, o mesmo escritor que construiu duas obras que geraram blockbusters no cinema recentemente – A Culpa é das Estrelas e Cidades de Papel.

A obra que vamos resenhar chama-se Tartarugas Até Lá Embaixo – 1ª edição – Editora Intrínseca – 2017 – 272 págs. Para quem viu ou leu as duas obras acima citadas espera exatamente o quê? Finais inesperados e crises de consciência de adolescentes enfrentando seus típicos dilemas acrescidos que alguma temática que os força a amadurecer mais rapidamente. Isto é efetivamente entregue também neste livro. E por isso mesmo.... não surpreende e decepciona um pouco.

Fonte: www.amazon.com.br
Porém, a decepção não impede que o leitor fique preso à estória para saber seu final. A prosa de Green tem essa qualidade – escrita leve, com as passagens bem conectadas que vão levando os fãs a loucura para descobrir o que vem na próxima página. O desafio proposto pelo autor é interessante: uma adolescente que sofre de ansiedade extremada – ok, adolescentes hoje em dia em geral são ansiosos, mas estamos falando no nível doença – associada com crises de pânico ocasionais, ambas vinculadas a uma hipocondria grave. Esta heroína, que atende pelo nome de Aza Holmes, será responsável por desvendar o mistério por trás do desaparecimento de um empresário, pai de seu amigo Davis.

Esse gancho, que não fica tão claro assim para o leitor desavisado, acaba por atrair o público das estórias policiais. Se você é um deles, está entrando de gaiato. A principal preocupação de Green é observar, sempre, como um adolescente com características peculiares, lida com problemas tido como “mais graves”. A estória policial fica totalmente em segundo plano, emergindo vez ou outra como um subterfúgio para mais uma digressão da protagonista e seu alter ego com o qual dialoga. Voltaremos a este ponto mais adiante.

De modo a não ser negativo, devo dizer que Green faz isso com maestria. Podemos imaginar uma adolescente como Aza e seus coadjuvantes perfeitamente. Os vemos no dia a dia, nas ruas. E como coloquei no post anterior, um autor que se dedica a tal público não pode deixar de passar a febre das mensagens instantâneas e dos diálogos por eles gerados neste grupo. Vamos a um exemplo abaixo:

“Eu estava relendo [...] quando o meu telefone vibrou.

Ele: Oi

Eu: Oi

Ele: Por acaso você está lendo meu blog neste exato momento?

Eu: ... Talvez. Tem problema?

Ele: Que bom que é você. O Analytics me informou que alguém de Indianápolis está na minha página há trinta minutos. Fiquei nervoso.

Eu: Por quê?

Ele: Não quero meus poemas horríveis saindo nos jornais.

[...]

Vi o ‘digitando...’, mas não recebi nada, então escrevi:

Eu: Quer falar pelo Facetime?

Ele: Claro.” (págs. 179-180)

É ou não é um exemplo clássico do que imaginamos e vivemos hoje em dia com nossos filhos, primos, sobrinhos – ou até mesmo nós mesmos? Esse tipo de transposição para o texto desta característica é o forte dos autores desta literatura “moderna”.

Porém existe um ponto angustiante nesta obra, algo que como leitores deixamos de lado a princípio – como uma coisa que incomoda e que imaginamos ser passageira, que irá se resolver em algum momento da narrativa – mas que depois percebemos ser o verdadeiro cerne da questão proposta. Como apontei anteriormente, trata-se do diálogo interno contínuo de Aza consigo mesmo e seus medos. Chega a um determinado ponto em que você passa a torcer desesperadamente para que aquilo pare, como se estivéssemos passando a ter consciência que não somente ela – um personagem – o faz, como todos nós que vivemos na sociedade acelerada e ansiosa por si mesmo, pelos resultados e pela imagem de perfeição buscada, sofremos.

John Green
Fonte: www.intrinseca.com.br
Este aspecto é a lição que John Green quer passar. Não importa o maior distúrbio emocional pelo qual estamos passando. É possível viver e sobreviver à isso, com o tratamento e o acompanhamento adequados, todos podem ser membros de uma sociedade que venham a contribuir com o seu bem, tanto em termos de relacionamentos com o próximo como também de maneira produtiva – Aza, apesar de todas as suas questões, é uma ótima aluna, by the way.

Assim sendo, posso dizer que Green passa o recado. O tiro dele é sutil, mas atinge o alvo. Ao ponto em que, tocados pela estória – mais uma vez de final inesperado – somente entendemos com clareza sua dimensão no final dos agradecimentos:

Por fim: a dra. Joellen e o dr. Sunil Patel tornaram minha vida imensuravelmente melhor ao me garantir tratamento de alta qualidade à saúde mental, o que, infelizmente, permanece fora do alcance de muitos. Minha família e eu somos gratos. Pode ser um caminho longo e difícil, mas os transtornos mentais são tratáveis. Há esperança, mesmo que seu cérebro lhe diga não. (págs. 268-269)

sábado, 15 de dezembro de 2018

O Ódio que Você Semeia


Com a obra de Angie Thomas – O Ódio que Você Semeia – Editora Galera Record, 6ª edição, 2018 – 376 páginas – inicio uma jornada dupla resenhando livros que minha filha, uma adolescente de 14 anos, leu recentemente. Desse modo, além de matar minha curiosidade pela literatura em si, fico mais próximo da linguagem que o mundo dos livros está oferecendo para o público infanto-juvenil. Ou seja, que ideias ela está tendo acesso.

Fonte: www.amazon.com.br
O livro gira em torno da estória da adolescente afrodescendente Starr. Frequentadora de uma escola do Ensino Médio em bairro distinto de onde vive, instituição esta de classe média na qual ela é uma das poucas exceções entre uma grande maioria de brancos, tem que saber conviver entre dois mundos distintos. Sua percepção disso se aguça ao ser testemunha, logo no início, do assassinato por um policial de um amigo de infância.

O título em português perde um pouco quando comparado ao original em Inglês, citado algumas vezes por seu vínculo com um conceito divulgado pelo rapper Tupac Shakur – The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody [sendo o trecho grifado o título supracitado] – assassinado em 1996[1], no qual se apresenta como a influência dos preconceitos passados de geração para geração afetam a incompreensão e geram o ódio racial existente – algo como “o ódio que você passa (semeia) para as criancinhas f... com todo mundo”. A expressão em inglês gera um acrônimo conhecido no meio do rap como “thug life”, no qual a princípio exemplificaria um “momento” em que alguém dominaria uma situação seguindo os preceitos de “curtir a vida”, zoando inclusive com a cara de terceiros que não teriam a mesma filosofia. Ou seja, gerando uma diferenciação do tipo “eu sou melhor que você”.

Se trataria assim de mais uma obra que faz o apelo aos jovens pela tolerância. A compreensão de que o diferente deve ser absorvido pela sociedade somente como mais um. Interessante que em determinado momento da trajetória da protagonista seu pai – um ex-presidiário regenerado e dono de um comércio chega a conclusão de que pode mudar a vida de seu bairro, mesmo não precisando morar nele. É a síntese do american way of life politicamente correto. Você pode progredir na vida, fruto de seu trabalho, e assim se mudar para uma localidade melhor estruturada – no caso do livro, o típico subúrbio das grandes cidades dos Estados Unidos – e ainda sim ter um trabalho proativo no sentido de apoiar uma comunidade mais carente.

Mas essa é uma nuance subsidiária em relação à narrativa central. O foco principal do livro de Angie Thomas é como uma adolescente lida com esse contexto de conflito racial, estando no centro de uma polêmica da qual foi testemunha, e ao mesmo tempo tem que gerenciar todos os demais dilemas típicos de sua idade – o namoro (nesse caso “agravado” por ser um rapaz branco, de posses); a convivência com as amigas mais próximas – uma patricinha estilo loira Beverly Hills e uma sino-americana; e o relacionamento com os demais parentes que vivem outra realidade em seu dia a dia.

O estilo da escrita é leve e ágil e personifica muito bem a rotina de uma adolescente. Se tornam presentes nos textos da nova geração, obviamente, as mensagens enviadas por celular tão típicas de nossos tempos. Um novo elemento que deve ser avaliado inclusive quanto ao peso que as ideias escritas assumem quando de um diálogo entre pessoas. Uma coisa era a antiga conversa fora que sempre podia ser contornada com o velho “Mas não foi exatamente isto que eu quis dizer...”, para algo que está escrito na tela de um pequeno aparelho ao qual você tem acesso instantaneamente. Palavra escrita é como flecha lançada, não volta mais.

Angie Thomas
Fonte: www.aescotilha.com.br
No sentido de apresentar esse cenário para os pais, é um livro interessante pois facilita nossa compreensão de como eles reagem – no caso específico deste livro é muito mais útil para pais de meninas. Porém acredito que ele se perde no seu trecho final, apesar de ser compreensível a reação exposta, quando dá um tom de normalidade para uma atitude extrema. Sendo um livro que se propõe atingir a faixa etária que alcança, tal mensagem poderia ser melhor dosada com um contraponto que não parece ser o interesse da autora. Talvez o cenário de revolta apresentado fosse desnecessário, ou poderia ser colocado de maneira mais sutil. A favor da autora está o fato de que, sendo também uma afrodescendente, possa vir a ter parâmetros distintos para lidar com o tema em relação a um leitor como eu, branco, que talvez não tenha sofrido os mesmos problemas vivenciados pela protagonista.

Resta-nos compreender que fazer o bem necessário, não importa a quem. E isso se vive no dia a dia, que para mim é muito mais forte do que movimentos grandiloquentes de revolução. Vamos ser revolucionários de nossas vidas. É assim que se constrói uma sociedade melhor.


[1] http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2018/07/05/tupac-assassinato-confissao/