domingo, 13 de novembro de 2016

DE ZERO A UM

Se você inventou algo novo, mas não inventou uma forma eficaz de vendê-lo, possui um mal negócio – por melhor que seja o produto (pág. 138).

Em tempos da ditadura do politicamente correto o discurso empregado por Peter Thiel, um dos fundadores do Pay Pal, presente no livro escrito com a colaboração de Blake Masters, é de difícil deglutição. “De Zero a Um – O que aprender sobre empreendedorismo com o Vale do Silício” – Rio de Janeiro – Ed. Objetiva – 2014 – 215 págs. – é capitalismo na veia na sua forma mais radical. Porém, dado que tivemos recentemente a vitória de Donald Trump nas eleições americanas, pode ser que o público para este livro seja muito maior do que se imagina.


Na verdade o livro apresenta o pensamento do empreendedor nato, aquele que se joga de corpo e alma em busca do que imagina ser a nova empresa do século – a sua. Para se ter uma ideia, um dos pilares da argumentação de Thiel é a necessidade do monopólio para que o sistema capitalista funcione. Isso certamente provoca arrepios não somente nos quadros políticos associados à esquerda normalmente, mas também em toda uma lógica que pauta gerações de economistas que são doutrinados mundo afora a observar e buscar o mundo da concorrência perfeita como sendo o mais justo e necessário de todos.

Blake Masters (à esquerda) e Peter Thiel

Aqui obviamente ocorre uma clivagem entre os dois grupos por mim citados. Normalmente a esquerda tem outro objetivo. Indica que a presença do Governo como ente mantenedor do consumo equitativo na sociedade como sendo mais do que necessária. Já os economistas que apoiam “a mão livre do mercado” gerenciando o mundo em que vivemos aponta para o Estado mínimo como necessário neste aspecto.

Acontece que mesmo nesse último grupo existe o entendimento de que há necessidade de se evitar a presença de monopólios, por serem deletérios, em princípio, para o conjunto da sociedade. Ou seja, os únicos beneficiados com o monopólio seriam os seus detentores. Todos os demais, e principalmente os consumidores, seriam prejudicados.

O livro de Thiel vai na linha contrária. Até mesmo porque ele se localiza num contexto em que o monopólio é estabelecido per si como a cenoura que atrai o coelho rumo ao seu bem-estar máximo. “Todas empresas felizes são diferentes: cada uma conquista um monopólio ao solucionar um problema singular” (pág. 40). O Vale do Silício é a região nos Estados Unidos reconhecida por gerar grande parte das inovações que moldam o mundo hoje em dia, ou seja, soluções para problemas singulares. E todo inovador busca proteger seu investimento através de um monopólio temporário reconhecido pelo Estado – a patente.

Para um economista, todo monopólio parece igual, quer elimine desonestamente os rivais, obtenha uma licença do Estado ou abra caminho até o topo via inovação. Neste livro, não estamos interessados em empresas desonestas ou favorecidas por governos: por “monopólio” designamos o tipo de empresa que é tão boa no que faz que nenhuma outra consegue oferecer um substituto próximo. O Google é um bom exemplo de uma empresa que foi de 0 a 1: não tem concorrente em mecanismos de busca desde o início da década de 2000, quando definitivamente se distanciou de Microsoft e do Yahoo!

Os norte-americanos idealizam a concorrência e acham que é ela que nos salva da penúria socialista. Na verdade, capitalismo e concorrência são opostos. O capitalismo tem por premissa a acumulação de capital, mas sob concorrência perfeita todos os lucros desaparecem. A lição para os empreendedores é clara: se vocês querem criar e conquistar valor duradouro, não desenvolvam um negócio de produto indiferenciado. (págs. 30 e 31)

Na área da Propriedade Industrial é comum a definição de que patente é a barganha entre o inovador e o Estado pelo acesso à informação tecnológica gerada. O inovador recebe do Governo um monopólio temporário – a patente, válida por 20 anos – em troca de disponibilizar à sociedade todo o segredo de sua inovação, propiciando a oportunidade de um seguido desenvolvimento tecnológico a partir de sua criação. Outros inovadores, de posse desta informação, não partiriam assim do zero para produzirem novas criações tecnológicas, se baseando no conhecimento adquirido a partir da descrição da patente, que ora constitui a o estado da técnica naquele determinado setor.

Os monopólios promovem o progresso porque a promessa de anos, ou mesmo décadas, de lucros monopolistas fornece um poderoso incentivo à inovação. Depois os monopólios podem continuar inovando porque os lucros permitem que façam planos de longo prazo e financiem projetos de pesquisa ambiciosos, com os quais as empresas prisioneiras da concorrência sequer podem sonhar (pág. 39).

Salvo no caso de uma licença negociada com seu criador, o objeto da patente não pode ser produzido ou comercializado por terceiros nos países em que se encontra devidamente depositada e protegida. Pois bem, o que Thiel enaltece em sua obra é justamente a capacidade do monopólio ser o fator gerador do bem-estar da sociedade por induzir o aprimoramento da sua tecnologia associada, o que acaba por impactar em inúmeras possibilidades para os consumidores.

O livro se apresenta como um guia para estes que se pretendem inovadores, empreendedores num mundo de selvagem concorrência, para aqueles que almejam deter um monopólio que os diferencie dos demais e gere ganhos exponenciais. Para tanto ele traça os perfis mais adequados para as chamadas startups tecnológicas, dando exemplos da história do meio empresarial norte-americano, alguns dos quais ele participou diretamente. Fala especificamente sobre a estrutura ideal, tanto em termos humanos quanto em lógica de trabalho.

Tecnologia nova tende a surgir de empreendimentos novos: startups (...), pequenos grupos de pessoas unidas por um sentido de missão têm mudado o mundo para melhor. (...) As startups operam baseadas no princípio de que você precisa interagir com outras pessoas para realizar as coisas, mas precisa também permanecer pequeno o suficiente para realmente conseguir realiza-las. Positivamente definida, uma startup é o maior grupo de pessoas que você consegue convencer a participar de um plano para construir um futuro diferente. (...) Porque é isto que uma startup precisa fazer: questionar ideias já reconhecidas e repensar os negócios do zero (pág. 16/17).

Passa ainda por uma avaliação crítica dos preconceitos existentes a partir daqueles que se acham detentores do conhecimento absoluto sobre a tecnologia – os nerds – em relação ao processo de vendas de suas criações e os responsáveis pelo mesmo – os vendedores por eles mesmos contratados por não dominarem esse mundo comercial! (1) “No Vale do Silício, os nerds desconfiam da publicidade, do marketing e das vendas porque parecem superficiais e irracionais. Mas propaganda importa porque funciona. Funciona com os nerds, e funciona com você. (...) É fácil resistir às campanhas de vendas mais óbvias, de modo que cultivamos uma falsa confiança em nossa independência mental. Mas a publicidade não existe para fazê-lo comprar um produto imediatamente. Ela existe para implantar impressões sutis que impelirão vendas mais tarde(pág. 135). Publicidade e distribuição são assim apontados como a base para o segredo do sucesso. Na verdade, isto está em linha com o conceito moderno de inovação. Um invento, mesmo que protegido por uma patente, não é uma inovação até o momento em que ele chegue ao mercado – e seja adotado por ele. Se ele não consegue fazer essa passagem, é somente um papel na prateleira gerador de custos.

Visão de parte do mapa da região conhecida como Vale do Silício, na Califórnia. Este mapa, na fonte original
e completa - www.siliconmaps.com - é interativo, indicando os endereços das diversas empresas ali listadas.

Antes de terminar, acaba enaltecendo a necessidade de se criar o próprio futuro – lugar comum, não é mesmo? – e indica uma receita de bolo. Thiel a denomina como as 7 perguntas (ver abaixo) que toda empresa deveria se fazer caso queira lançar-se num negócio (ou ainda, caso um empreendedor queira criar um negócio baseado num produto).

A obra assim se apresenta como um manual para aqueles que desejam empreender tecnologicamente. Em termos literários não é um super livro. Inclusive o autor se vale de ilustrações dispensáveis em seu terço final, sinal talvez de que o seu discurso não fosse robusto o suficiente para gerar um livro inteiro. Por outro lado, dada sua ênfase em vendas, à importância da presença dos fundadores para inspirar as empresas – e para tanto não poderia deixar de citar Jobs e a Apple – mais parece um catálogo para vender sua própria expertise e gerar a possibilidade de ganhos com palestras do que qualquer outra coisa. Diria que ele não atingiu o objetivo a que se propôs no início – “o que se segue não é um manual ou um registro de conhecimentos, mas um exercício de pensamento” (pág. 17). Pois seu discurso de imposição aponta justamente para o caminho contrário.

Vale a pena ser lido? Vale, até por usar um linguajar fácil – precisa vender, lembrem-se! – e por ir na contracorrente do discurso disseminado. Aí está a sua força, o contraponto, associado ainda aos exemplos reais – muito elucidativo o caso da Tesla na área de tecnologias limpas, com posterior expansão para outros setores. Mas o leitor não deve se iludir: creio que experiências próprias é que contam, e os mercados, e o próprio capitalismo, se adaptam a diferentes contextos. Conhecer as experiências de terceiros é importante, para evitar erros já incorridos, mas se a essência de se empreender é realmente se arriscar, pode-se estar frente a um paradoxo. Neste aspecto, outro livro por nós aqui já resenhado – Criatividade S.A., de Ed Catmull (Pixar) – é muito superior, a  meu ver.

As 7 Perguntas (pág. 163)

A pergunta sobre a engenharia – Você consegue criar tecnologia revolucionária em vez de melhorias graduais?;

A pergunta sobre o momento certo – Agora é o momento certo para iniciar seu negócio específico?;

A pergunta sobre o monopólio – Você está começando com uma porção grande de um mercado pequeno?;

A pergunta sobre as pessoas – Você dispõe da equipe certa?;

A pergunta sobre distribuição – Você dispõe de um meio de não apenas criar, mas entregar seu produto?

A pergunta sobre a durabilidade – Sua posição no mercado será defensável em dez e vinte anos no futuro?; e

A pergunta sobre o segredo – Você identificou uma oportunidade única que os outros não veem?


(1)   Como na arte de atuar, as vendas funcionam melhor quando ocultas. Isso explica por que quase todos cujo trabalho envolva distribuição – quer estejam em vendas, marketing ou publicidade – ocupam cargos cujos nomes nada têm a ver com essas atividades. Pessoas que vendem publicidade são chamadas de “executivos de conta”. Pessoas que vendem clientes trabalham em “desenvolvimento de negócios”. Pessoas que vendem empresas são “banqueiros de investimentos”. E pessoas que vendem a si mesmas se chamam de “políticos”. Existe uma boa razão para essas redescrições: nenhum de nós quer ser lembrado de que estão nos vendendo algo (pág. 137).

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O Alfaiate Polonês

Esta talvez seja uma das resenhas mais difíceis que eu tenha enfrentado. A autora de O Alfaiate Polonês – Babilonia Cultura Editorial – 2016 – 180 págs., Débora Finkielsztejn, é uma amiga de longa data. Para ser mais específico, da turma de 1989 da Faculdade de Economia, na Universidade Federal Fluminense.


Débora trilhou caminhos diversos antes de aportar na epopeia de se tornar escritora. Talvez aquele que mais tenha lhe tocado sobre o mundo dos livros tenha sido sua jornada enquanto livreira – proprietária da Livraria Da Conde, como foi, durante 10 anos, não fosse ela de uma família sempre presente no meio artístico. Estar imersa a grandes autores deve ter aguçado sua curiosidade quanto a transpor a fronteira e ir para o outro lado, a ver o que impulsiona os escritores a colocar no papel ideias, estórias e histórias, e principalmente, sentimentos.

Débora Finkielsztejn (à esquerda) ao lado da amiga
Viviane Aben-Athar, durante lançamento do livro,
na Livraria da Travessa, em Ipanema, no último dia
24 de Outubro.

Sim, porque a estória de O Alfaiate Polonês, essa pequena joia de estreia, gira em torno de sentimentos. A família Luittermann, judeus separados pela guerra, tem sua trajetória narrada, atravessando distintas gerações, até que surge a possibilidade da reunião. Como personagem central, Avraham, filho mais velho do núcleo central da narrativa. Ele tem a nobre companhia, como coadjuvante, de seu irmão, Shlomo, que nos guia no primeiro terço da obra.

Como algo a criar um laço afetivo com o leitor brasileiro, e o carioca em particular, tal qual Débora, a ambientação de parte da estória se passa no Rio de Janeiro, nos trazendo, de leve, as referências geográficas, mescladas, mais uma vez, aos sentimentos que evocam. Assim como somos assaltados por outros pensamentos e dizeres que nos vêm à boca em meio a dilemas ocorridos na Polônia, França, Israel, Canadá... Mesmo que nunca tenhamos tido a oportunidade de estar em tais países – ainda mais em difíceis épocas passadas – os problemas que os seres humanos enfrentam, superados ou não, se fazem presentes no esforço individual de cada personagem, criando uma conexão com a alma de quem estar por ler aquela trajetória. Como reagiríamos em tal situação? Será que a decisão por ele tomada foi a melhor de todas? Não haveria outras possibilidades para o eterno reconstruir da vida?

Durante o primeiro dos muitos eventos de lançamento do livro, fomos brindados com um debate na Livraria Da Vinci. Naquela ocasião, uma das perguntas foi sobre se o livro teria um público circunscrito à comunidade judaica, a partir do momento que tem como eixo central uma família seguidora da estrela de Davi. No mesmo instante pensei – e por obra de D’us tal aspecto foi abordado por um dos debatedores – que uma boa estória é uma boa estória e ponto. Ela pode ser de uma família italiana, africana, indiana, budista, hippie, ou qualquer outra religião professada. Ela irá singrar os mares da boa literatura, atraindo os leitores, independentemente de sua caracterização central. E assim é o que se passa com os Luittermann. Somos chamados a refletir sobre o que nos une, sobre laços familiares e de amizades construídas em meio às dificuldades. Tal tema é de um universalismo que independe de quaisquer outros aspectos.

Mas, para mim em particular, sair do macro e ir para o micro, a buscar aspectos que pudessem ser lidos somente por quem conhece a autora de perto, também se transformou numa deliciosa aventura. Esta expectativa, por assim dizer, de uma “investigação particular”, não é algo que fácil de partilhar. É como perguntar para o artilheiro qual é o sentimento quando se marca um gol. Somente ele saberá. E somente nós que convivemos com Débora poderemos empreender esta jornada específica.

Da minha parte ficou a impressão que uma personagem em particular representava a Débora em suas colocações, em sua visão de mundo. Trata-se de Rachel. E o mais interessante é que Rachel, com “ch”, também é uma de nossas amigas em comum, aquela com a qual Débora dividia sua angústia com aulas imersas entre Keynes, Marx, David Ricardo entre outros. Posso estar enganado? Posso, mas quem comanda o que a imaginação sugestiona?


Desta forma, mesmo que inconscientemente, todo um grupo foi homenageado. A Rachel/Débora representou, para esta pequena família formada na Rua Tiradentes, Ingá, em Niterói, a cereja do bolo de um presente que nos foi franqueado. Aos demais leitores fica a certeza de uma prazerosa leitura, daquelas para usufruir num final de tarde, no Arpoador, ou se tiver aquela chuvinha, debaixo dos lençóis. Shalom!