Muito
se fala em como devemos encarar o “viver a vida” sem medo do porvir. Nesse
caso, o porvir é exatamente o ato final, a morte. Irvin D. Yalom, em sua obra
“O Enigma de Espinosa” – 2013 – Ed. Agir – Rio de Janeiro – 400 págs. – nos dá
algumas dicas. Para tanto ele segue duas linhas, ambas válidas, pois a cada um
de nós nos é fadado se deixar tocar pelo tema de diferentes formas.
Yalom,
americano nascido em 1931, psiquiatra e professor da Universidade de Stanford,
através de suas obras enquanto escritor vem aproveitando para deslindar para o
público em geral como a prática da psiquiatria pode auxiliar no enfrentamento
das dificuldades da vida. Nesta trajetória sua carreira se prestou, por
intermédio dos livros, a apresentar diferentes linhas filosóficas, auxiliadas
pela criação de uma ficção pródiga em sentimento e emoções, associada a
personagens históricos.
Desse
modo, numa forma que aparentemente deu certo, ele tem em seu currículo os
seguintes livros: “Quando Nietzsche Chorou”¹, “A Cura de Schopenhauer”, “O
Carrasco do Amor”, “De Frente para o Sol”, “Cada Dia Mais Perto”, entre outros.
“O Enigma de Espinosa” não foge desta trajetória. “Assim como havia feito com
Nietzsche e Schopenhauer, Yalom viu o personagem perfeito em Baruch Espinosa,
filósofo do século XVII responsável por obras que mudaram o curso da história e
revolucionaram o pensamento ocidental”².
Irvin D. Yalom
Espinosa
pautou sua vida pelo enfrentamento de questões tais como razão X emoção, Deus X
Natureza, morte, religião, entre outras. Por conta de suas afirmações, foi
expulso da comunidade judaica no século XVII, sendo reabilitado somente no
século XX – não sem controvérsias. Sua importância enquanto filósofo já vinha
num crescente pelo menos duzentos anos antes, influenciando outros grandes
pensadores e artistas. O gancho encontrado por Yalom, portanto, tinha todo esse
poderio. Mas faltava algo que desse peso. Esse algo ele aponta logo na
introdução de sua obra: porque este filósofo havia influenciado o pensamento
dos nazistas? Assim, o horror gerado pelo movimento nazista na primeira metade
do século XX continua como uma das maiores chagas da humanidade. Não há uma
única pessoa que não se sinta tocada ao saber das histórias vividas durante as
décadas de 30 e 40, permeadas pelo sem número de mortes geradas no seio da 2ª
Guerra Mundial. Aí estaria então o mote para gerar o interesse nos leitores.
Porém,
Yalom continuava também na sua cruzada para demonstrar o poder da psiquiatria
em auxiliar as pessoas (ou pelo menos tentar). Para tanto ele cria dois “ambientes”
de tratamento, digamos assim: um entre o próprio Espinosa e seu amigo fictício,
o judeu Franco Benitez. E outro entre Alfred Rosenberg, ideólogo nazista, e o
psiquiatra fictício, Friedrich Pfister. Ambos os diálogos separados por mais de
duzentos anos de história se desenrolam no decorrer do livro fazendo a ponte entre
os pensamentos e questionamentos os quais pautariam o debate sobre os temas
propostos pelo autor.
O
desenrolar dos diálogos entre essas duas duplas traz a bordo o enfrentamento de
algumas das questões apontadas acima, dilemas que acompanham a humanidade desde
sempre. Há, então, que se ler a obra de Yalom com a mente aberta para os
debates filosóficos, evitando-se radicalismos de interpretação. Um religioso,
qualquer que seja sua fé, não deixará de segui-la por ler esta obra. Eu mesmo
não encontrei nada que me demovesse do catolicismo, até pelo meu conhecimento
prévio de determinadas teses. Por mais fortes que sejam as afirmativas, nada
explica o que teria gerado o Big Bang, por exemplo. Somente uma força superior,
Deus, permanece como a única explicação plausível para mim em termos de
centelha criadora, o que me dá embasamento para minha fé – além da própria
clareza na pregação de Cristo. Porém, as colocações em termos da força do
simbolismo presente nos ritos das diversas religiões devem ser levadas em
conta. Para um religioso, compreende-se sua função enquanto unidade da
comunidade a que pertence. Mas, para aqueles que não conseguem se deixar de
afrontar por determinadas colocações contrárias aos seus pensamentos, talvez
não seja uma leitura fácil.
Vejamos,
abaixo, a título de exemplo, algumas das interessantes colocações feitas:
Metáforas
religiosas
“É
verdade que a Torá chama Adão de primeiro homem. E é verdade que ela diz que o
filho dele, Caim, se casou. Temos decerto o direito de fazer a pergunta óbvia:
se Adão foi o primeiro homem, como pode ter existido alguém com quem Caim viesse
a se casar? Essa questão, chamada teoria dos pré-adamitas, vem sendo discutida
há séculos pelos estudos bíblicos. Portanto, se você me perguntar se é uma
fábula, devo responder que sim, pois, evidentemente, a história não passa de
uma metáfora”. (pág. 50).
OBS: essa abordagem
já é aceita no meio católico, entendendo-se que Bíblia está repleta de relatos
que serviram aos seus autores para propagar o pensamento cristão em meio ao povo,
que necessitava de estórias que facilitassem o entendimento do que estava sendo
pregado.
(Medo da) Morte
“(...)
disse a mim mesmo que sou apenas humano e que os seres humanos têm uma
tendência inata a usar a distração como forma de se proteger. Andei pensando
nos motivos pelos quais não consigo me concentrar na morte do meu pai. Acho que
é porque isso me põe cara a cara com a minha própria morte, e essa perspectiva
é simplesmente assustadora demais para que eu possa agüentá-la”. (pág. 111); ou
ainda “Isso soa lógico, mas duvido que consiga acalmar alguém que, no meio da
noite, acorda com um pesadelo sobre a própria morte” (pág. 251).
Religião e
Comunidade
“Muitas
vezes, quando estou realizando minhas funções cerimoniais, desligo-me do
conteúdo das palavras, perco-me no ritual e na agradável onda de sentimentos
que toma conta de mim. Os cânticos me inspiram e me transportam. E adoro a
poesia dos salmos, todos os piyyut³.
Adoro a sua cadência, as aliterações, e fico muito tocado com os sentimentos
relacionados à idéia de envelhecer, de ver a morte chegando e de desejar a
salvação. (...) [Franco enfrenta Espinosa] Quanto a este aspecto, temos uma diferença
fundamental. Não concordo que todos os sentimentos tenham de ser subservientes
à razão. Existem alguns deles que merecem estatuto equivalente a ela. Pense na
saudade, por exemplo. Quando comando orações, eu me conecto ao meu passado, ao
meu pai e ao meu avô, e, ousaria até dizer que penso nos meus antepassados que,
há 2 mil anos, repetiam aquelas mesmas frases, entoavam as mesmas preces,
cantavam as mesmas melodias. Em todos esses momentos, perco a minha importância
enquanto indivíduo; perco a minha própria individualidade e me torno uma parte,
uma parte ínfima, de uma corrente comunitária ininterrupta. Essa noção me
proporciona algo que não tem preço. Como descrevê-lo? Uma conexão, uma união
com outros que é imensamente reconfortante. Preciso disso. Imagino que todos
precisemos” (págs. 362/363). Ainda mais em: “O que pretendo dizer, Bento
[Espinosa], é que se os rituais, as cerimônias e, por que não, também a
superstição estão tão profundamente entranhados na própria natureza dos seres
humanos, talvez seja legítimo concluir que nós, humanos, precisemos disso” (pág
367).
Poderíamos
ficar aqui elencando todos debates que o “O Enigma de Espinosa” nos traz. Porém
o enfrentamento da questão da razão da existência da religião em nossas vidas
me parece o mais relevante. Aqui retratamos apenas algumas das argumentações
apresentadas. O livro se presta, ainda, para que tenhamos uma introdução no
pensamento de Espinosa. Podemos discordar – como o próprio autor, por
intermédio do personagem de Franco Benitez o fez – da abordagem do filósofo
para tal tema, mas não podemos ignorar o fato de que suas teorias propiciaram a
centralização na razão como instrumento maior para o avanço da humanidade. E
que tal discurso teve serventia de algum modo para o desenvolvimento científico
trazido pelo Iluminismo, dando base para um salto tecnológico benéfico a todos.
O mau uso de suas teorias – pelo Nazismo, por exemplo, tão amplamente abordado
no livro – é o risco que qualquer intelectual corre quando expõe seus
pensamentos.
O
personagem histórico de Alfred Rosenberg, citado acima, mas por mim pouco explorado
neste post, é o retrato mais cabal do
que acabo de afirmar. Perdido em suas teorias antissemitas, serviu como
instrumento pelo autor para apontar de como a loucura do homem pode algumas
vezes ultrapassar a barreira da própria racionalidade, criando aberrações e
gerando a barbárie na humanidade. Seria, assim, o reconhecimento humilde de
Yalom que mesmo a psiquiatria, em que pese seu avanço, tem seus limites: “As
tentativas feitas por parte de Friedrich para estabelecer um processo
psicoterápico com Alfred Rosenberg baseiam-se na forma como eu, pessoalmente,
teria abordado a tarefa de trabalhar com um homem como ele” (pág. 390). Sempre
me perguntei o quão difícil deve ser para os terapeutas dialogar com seus
pacientes. Afinal, não se sabe, ao abrir a porta do consultório, que dilemas e
distúrbios estarão ali para serem apresentados (e enfrentados). Nas palavras de
Yalom, por intermédio de Friedrich: “Então, o que lhe pergunto é: como posso
atender um paciente que comete atos tão abomináveis? Sei que ele é perigoso”
(pág. 260). Serviria, assim, o livro também para humanizar a psiquiatria e
baixar do altar os terapeutas de plantão, demonstrando as dificuldades por eles
enfrentadas. Nada melhor do que colocar no divã, para exemplificar-las, um
expoente do Nazismo.
Em
resumo, para mim, a grande lição que fica desta obra é que não importa o meio,
seja ele religioso, seja ele por intermédio da racionalidade, o enfrentamento
direto de nossos medos e de nossas fragilidades de modo a que possamos
encontrar a alegria em nosso viver é o que deve nos mover. Somente nos
tornaremos pessoas melhores se encontrarmos o caminho, o nosso caminho, para
ajudarmos uns aos outros. Se gerarmos o bem em nossa comunidade, estaríamos assim
imunes a críticas de terceiros em relação ao meio que utilizamos. Sejamos felizes,
enfim, na pregação e no dia-a-dia, na teoria e na prática. Não é um livro fácil
como disse anteriormente, mas vale a pena pelo que proporciona de compreensão
do quão humanos somos.
(1)
Já
foi objeto de resenha por este que vos escreve no antigo blog Leopideas: http://leopideas.blogspot.com.br/2012/05/quando-nietzsche-chorou.html
;
(2) Apresentação
feita na orelha da obra;
(3) Piyyut = “a lyrical composition intended to embellish an obligatory
prayer or any other religious ceremony, communal or private”. Fonte:
http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0016_0_15840.html -
acessado em 03 de Agosto de 2014.