domingo, 3 de agosto de 2014

O Enigma de Espinosa

Muito se fala em como devemos encarar o “viver a vida” sem medo do porvir. Nesse caso, o porvir é exatamente o ato final, a morte. Irvin D. Yalom, em sua obra “O Enigma de Espinosa” – 2013 – Ed. Agir – Rio de Janeiro – 400 págs. – nos dá algumas dicas. Para tanto ele segue duas linhas, ambas válidas, pois a cada um de nós nos é fadado se deixar tocar pelo tema de diferentes formas.

Yalom, americano nascido em 1931, psiquiatra e professor da Universidade de Stanford, através de suas obras enquanto escritor vem aproveitando para deslindar para o público em geral como a prática da psiquiatria pode auxiliar no enfrentamento das dificuldades da vida. Nesta trajetória sua carreira se prestou, por intermédio dos livros, a apresentar diferentes linhas filosóficas, auxiliadas pela criação de uma ficção pródiga em sentimento e emoções, associada a personagens históricos.

Desse modo, numa forma que aparentemente deu certo, ele tem em seu currículo os seguintes livros: “Quando Nietzsche Chorou”¹, “A Cura de Schopenhauer”, “O Carrasco do Amor”, “De Frente para o Sol”, “Cada Dia Mais Perto”, entre outros. “O Enigma de Espinosa” não foge desta trajetória. “Assim como havia feito com Nietzsche e Schopenhauer, Yalom viu o personagem perfeito em Baruch Espinosa, filósofo do século XVII responsável por obras que mudaram o curso da história e revolucionaram o pensamento ocidental”².

Irvin D. Yalom

Espinosa pautou sua vida pelo enfrentamento de questões tais como razão X emoção, Deus X Natureza, morte, religião, entre outras. Por conta de suas afirmações, foi expulso da comunidade judaica no século XVII, sendo reabilitado somente no século XX – não sem controvérsias. Sua importância enquanto filósofo já vinha num crescente pelo menos duzentos anos antes, influenciando outros grandes pensadores e artistas. O gancho encontrado por Yalom, portanto, tinha todo esse poderio. Mas faltava algo que desse peso. Esse algo ele aponta logo na introdução de sua obra: porque este filósofo havia influenciado o pensamento dos nazistas? Assim, o horror gerado pelo movimento nazista na primeira metade do século XX continua como uma das maiores chagas da humanidade. Não há uma única pessoa que não se sinta tocada ao saber das histórias vividas durante as décadas de 30 e 40, permeadas pelo sem número de mortes geradas no seio da 2ª Guerra Mundial. Aí estaria então o mote para gerar o interesse nos leitores.

Porém, Yalom continuava também na sua cruzada para demonstrar o poder da psiquiatria em auxiliar as pessoas (ou pelo menos tentar). Para tanto ele cria dois “ambientes” de tratamento, digamos assim: um entre o próprio Espinosa e seu amigo fictício, o judeu Franco Benitez. E outro entre Alfred Rosenberg, ideólogo nazista, e o psiquiatra fictício, Friedrich Pfister. Ambos os diálogos separados por mais de duzentos anos de história se desenrolam no decorrer do livro fazendo a ponte entre os pensamentos e questionamentos os quais pautariam o debate sobre os temas propostos pelo autor.

O desenrolar dos diálogos entre essas duas duplas traz a bordo o enfrentamento de algumas das questões apontadas acima, dilemas que acompanham a humanidade desde sempre. Há, então, que se ler a obra de Yalom com a mente aberta para os debates filosóficos, evitando-se radicalismos de interpretação. Um religioso, qualquer que seja sua fé, não deixará de segui-la por ler esta obra. Eu mesmo não encontrei nada que me demovesse do catolicismo, até pelo meu conhecimento prévio de determinadas teses. Por mais fortes que sejam as afirmativas, nada explica o que teria gerado o Big Bang, por exemplo. Somente uma força superior, Deus, permanece como a única explicação plausível para mim em termos de centelha criadora, o que me dá embasamento para minha fé – além da própria clareza na pregação de Cristo. Porém, as colocações em termos da força do simbolismo presente nos ritos das diversas religiões devem ser levadas em conta. Para um religioso, compreende-se sua função enquanto unidade da comunidade a que pertence. Mas, para aqueles que não conseguem se deixar de afrontar por determinadas colocações contrárias aos seus pensamentos, talvez não seja uma leitura fácil.

Vejamos, abaixo, a título de exemplo, algumas das interessantes colocações feitas:

Metáforas religiosas

“É verdade que a Torá chama Adão de primeiro homem. E é verdade que ela diz que o filho dele, Caim, se casou. Temos decerto o direito de fazer a pergunta óbvia: se Adão foi o primeiro homem, como pode ter existido alguém com quem Caim viesse a se casar? Essa questão, chamada teoria dos pré-adamitas, vem sendo discutida há séculos pelos estudos bíblicos. Portanto, se você me perguntar se é uma fábula, devo responder que sim, pois, evidentemente, a história não passa de uma metáfora”. (pág. 50).

OBS: essa abordagem já é aceita no meio católico, entendendo-se que Bíblia está repleta de relatos que serviram aos seus autores para propagar o pensamento cristão em meio ao povo, que necessitava de estórias que facilitassem o entendimento do que estava sendo pregado.

(Medo da) Morte

“(...) disse a mim mesmo que sou apenas humano e que os seres humanos têm uma tendência inata a usar a distração como forma de se proteger. Andei pensando nos motivos pelos quais não consigo me concentrar na morte do meu pai. Acho que é porque isso me põe cara a cara com a minha própria morte, e essa perspectiva é simplesmente assustadora demais para que eu possa agüentá-la”. (pág. 111); ou ainda “Isso soa lógico, mas duvido que consiga acalmar alguém que, no meio da noite, acorda com um pesadelo sobre a própria morte” (pág. 251).

Religião e Comunidade

“Muitas vezes, quando estou realizando minhas funções cerimoniais, desligo-me do conteúdo das palavras, perco-me no ritual e na agradável onda de sentimentos que toma conta de mim. Os cânticos me inspiram e me transportam. E adoro a poesia dos salmos, todos os piyyut³. Adoro a sua cadência, as aliterações, e fico muito tocado com os sentimentos relacionados à idéia de envelhecer, de ver a morte chegando e de desejar a salvação. (...) [Franco enfrenta Espinosa] Quanto a este aspecto, temos uma diferença fundamental. Não concordo que todos os sentimentos tenham de ser subservientes à razão. Existem alguns deles que merecem estatuto equivalente a ela. Pense na saudade, por exemplo. Quando comando orações, eu me conecto ao meu passado, ao meu pai e ao meu avô, e, ousaria até dizer que penso nos meus antepassados que, há 2 mil anos, repetiam aquelas mesmas frases, entoavam as mesmas preces, cantavam as mesmas melodias. Em todos esses momentos, perco a minha importância enquanto indivíduo; perco a minha própria individualidade e me torno uma parte, uma parte ínfima, de uma corrente comunitária ininterrupta. Essa noção me proporciona algo que não tem preço. Como descrevê-lo? Uma conexão, uma união com outros que é imensamente reconfortante. Preciso disso. Imagino que todos precisemos” (págs. 362/363). Ainda mais em: “O que pretendo dizer, Bento [Espinosa], é que se os rituais, as cerimônias e, por que não, também a superstição estão tão profundamente entranhados na própria natureza dos seres humanos, talvez seja legítimo concluir que nós, humanos, precisemos disso” (pág 367).

Poderíamos ficar aqui elencando todos debates que o “O Enigma de Espinosa” nos traz. Porém o enfrentamento da questão da razão da existência da religião em nossas vidas me parece o mais relevante. Aqui retratamos apenas algumas das argumentações apresentadas. O livro se presta, ainda, para que tenhamos uma introdução no pensamento de Espinosa. Podemos discordar – como o próprio autor, por intermédio do personagem de Franco Benitez o fez – da abordagem do filósofo para tal tema, mas não podemos ignorar o fato de que suas teorias propiciaram a centralização na razão como instrumento maior para o avanço da humanidade. E que tal discurso teve serventia de algum modo para o desenvolvimento científico trazido pelo Iluminismo, dando base para um salto tecnológico benéfico a todos. O mau uso de suas teorias – pelo Nazismo, por exemplo, tão amplamente abordado no livro – é o risco que qualquer intelectual corre quando expõe seus pensamentos.

O personagem histórico de Alfred Rosenberg, citado acima, mas por mim pouco explorado neste post, é o retrato mais cabal do que acabo de afirmar. Perdido em suas teorias antissemitas, serviu como instrumento pelo autor para apontar de como a loucura do homem pode algumas vezes ultrapassar a barreira da própria racionalidade, criando aberrações e gerando a barbárie na humanidade. Seria, assim, o reconhecimento humilde de Yalom que mesmo a psiquiatria, em que pese seu avanço, tem seus limites: “As tentativas feitas por parte de Friedrich para estabelecer um processo psicoterápico com Alfred Rosenberg baseiam-se na forma como eu, pessoalmente, teria abordado a tarefa de trabalhar com um homem como ele” (pág. 390). Sempre me perguntei o quão difícil deve ser para os terapeutas dialogar com seus pacientes. Afinal, não se sabe, ao abrir a porta do consultório, que dilemas e distúrbios estarão ali para serem apresentados (e enfrentados). Nas palavras de Yalom, por intermédio de Friedrich: “Então, o que lhe pergunto é: como posso atender um paciente que comete atos tão abomináveis? Sei que ele é perigoso” (pág. 260). Serviria, assim, o livro também para humanizar a psiquiatria e baixar do altar os terapeutas de plantão, demonstrando as dificuldades por eles enfrentadas. Nada melhor do que colocar no divã, para exemplificar-las, um expoente do Nazismo.

Em resumo, para mim, a grande lição que fica desta obra é que não importa o meio, seja ele religioso, seja ele por intermédio da racionalidade, o enfrentamento direto de nossos medos e de nossas fragilidades de modo a que possamos encontrar a alegria em nosso viver é o que deve nos mover. Somente nos tornaremos pessoas melhores se encontrarmos o caminho, o nosso caminho, para ajudarmos uns aos outros. Se gerarmos o bem em nossa comunidade, estaríamos assim imunes a críticas de terceiros em relação ao meio que utilizamos. Sejamos felizes, enfim, na pregação e no dia-a-dia, na teoria e na prática. Não é um livro fácil como disse anteriormente, mas vale a pena pelo que proporciona de compreensão do quão humanos somos.

 (1)   Já foi objeto de resenha por este que vos escreve no antigo blog Leopideas: http://leopideas.blogspot.com.br/2012/05/quando-nietzsche-chorou.html ;
         (2)  Apresentação feita na orelha da obra;
      (3) Piyyut = “a lyrical composition intended to embellish an obligatory prayer or any other religious ceremony, communal or private”. Fonte: http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0016_0_15840.html - acessado em 03 de Agosto de 2014.