Esta
semana o mundo do futebol foi tomado por um debate em torno da atitude de um
jogador. Rodrigo Caio, zagueiro do São Paulo, campeão olímpico ano passado, num
clássico contra o Corinthians pela semifinal do campeonato paulista, assumiu
ter pisado inadvertidamente no goleiro de sua própria equipe, fazendo com que o
árbitro voltasse atrás em sua decisão de advertir o centroavante adversário,
Jô, o qual ele, juiz da partida, havia imaginado ter sido o autor da suposta
agressão. Não fosse pelo simples fato de que o São Paulo perdia o jogo por 2 x
0, tal seria acrescido no sentido de que o cartão amarelo uma vez recebido
teria como punição imediata a suspensão do jogador corintiano da segunda
partida decisiva.
Este
ato de honestidade foi objeto de inúmeras avaliações, umas contra outras a
favor, estando às primeiras baseadas na percepção de que a extrema
competitividade vista nos campos profissionais não permitiria esta ação em
detrimento da derrota de sua própria equipe. O jogador, ao não estar
prejudicando o adversário, mesmo que de maneira desonesta, seria assim
entendido como estando automaticamente atuando contrariamente aos interesses da
sua própria equipe. Esta visão tem também o aspecto de colocar sob os holofotes
o entendimento de que o futebol seria um mundo à parte àquele em que vivemos,
onde as regras de comportamento entre os iguais seriam mais flexíveis em favor
do objetivo imediato.
Lendo
o livro do autor uruguaio Eduardo Galeano, “El Fútbol a Sol y Sombra”, numa
nova edição publicada antes da Copa de 2014 pela Siglo Veintiuno Editores, de
Buenos Aires (312 páginas), podemos perceber como os valores estão invertidos.
Galeano é um autor de matiz esquerdista, que ficou mais conhecido pelo célebre “As
Veias Abertas da América Latina”, que tem sido livro de cabeceira de inúmeros políticos
que se auto identificam nesta linha. Os pensamentos de Galeano ficam mais
evidentes nesse sentido por suas notas irônicas ao iniciar seções do livro “El
Fútbol...” contextualizando a chegada de cada um dos Mundiais anunciando que
àquela altura estava prevista a queda de Fidel Castro em Cuba, com praticamente
a mesma frase: “Como era costumbre, fuentes bien informadas de Miami anunciaban
la inminente caída de Fidel Castro, que iba a desplomarse en cuestión de horas”.
Além disso, sua revolta quanto aos maus condutos dos dirigentes da FIFA ficam
evidentes a todo momento, politicagem esta que hoje em dia é objeto de
investigação por autoridades de diversos países.
O
livro em si segue uma dinâmica clara. Tem em suas primeiras 60 páginas o que
seriam as definições do autor para os componentes do jogo – o futebol em si, o
jogador, o goleiro, o ídolo, o torcedor, e por aí vai... Passado esse período
introdutório ele passa a dissertar sobre suas impressões a respeito de cada um
dos Mundiais realizados, e os seus períodos intermédios, assim como dos
jogadores que se destacaram a cada época, com espaço para rememorar jogadas,
equipes e partidas fantásticas. Levando-se em conta que ele nasceu em 1940 e os
primeiros dois torneios ocorreram em 1930 e 1934, há aí um trabalho de pesquisa
inserido. Mas a partir de 1950 tais apontamentos já podem contar com seu
testemunho vivo. Nesta nova edição, infelizmente, não temos a análise pós Copa
de 2014. Como o autor veio a falecer em 2015, fica para a imaginação do leitor
qual seria a interpretação deste para a festa ocorrida no Brasil. Porém ele não
deixou de apontar os protestos que vinham ocorrendo em território nacional por
conta dos gastos incorridos com a realização do campeonato – “Y eso en un Brasil
donde están estallando los volcones de la indignación popular ante el derroche
de las construcciones faraónicas en contraste con los fondos destinados a la
salud pública y la enseñanza gratuita” (pág. 272).
A
parte o homem político, presente no peso de cada palavra colocada, Galeano faz
com maestria um paralelo entre o esporte em si e o seu impacto sobre os hábitos
da sociedade de cada época. Demonstra uma capacidade de pesquisa peculiar, pois
cita fatos futebolísticos que transcendem fronteiras, apontando para histórias
ocorridas na Argentina, no Uruguai, no Brasil, na Europa, etc. Como
comentarista demonstra ser mais apaixonado pelo esporte em si e por toda sua
teatralidade, como uma representatividade de uma cultura muito própria.
Um
livro saboroso, o qual tive o prazer de ler no seu idioma original, o que me
proporcionou o sentimento de proximidade com os pensamentos do autor uruguaio.
Meu único senão desportivo seria o da pouca importância que ele dá para a seleção
brasileira de 1982, preferindo exaltar naquele torneio em particular o meio de
campo do selecionado francês formado por Platini, Tigana, Genghini e Giresse
(pág. 185). Isso para mim é um pecado mortal, o que me colocou em dúvida sobre
sua percepção correta dos fatos. Ou estaria eu sendo patriótico demais sobre
este aspecto?
Para
encerrar, fico a me perguntar o que Galeano diria do ocorrido com Rodrigo Caio.
Exaltaria ele, pelo seu lado político, a honestidade demonstrada? Ou colocaria
em dúvida a necessidade de tal ato, pelo prazer da pseudo-cultura do futebol em
se buscar curvas onde deveríamos ter retas – dada a sinonímia entre honestidade
e retidão? Fintar as regras da convivência e do jogo faria parte do brilho e da
essência do futebol? Talvez uma rápida visão premonitória sobre este aspecto
seria o texto “Vale Todo” (págs. 203-206), não por acaso no intermédio entre os
Mundiais da Mão de Deus de Maradona (1986) e do tri da Alemanha num pênalti
duvidoso (1990). Ao constatar o vício de moral para o qual ele atribui ao
desenvolvimento do futebol dito profissional termina com a seguinte citação:
El escritor Albert Camus, que había sido arquero en Argelia, no se refería
al fútbol profesional cuando decía:
-
Todo lo que sé de moral se lo debo al fútbol.