sexta-feira, 15 de abril de 2016

Um Lugar Chamado Liberdade

Moleque, quando eu ouvia a música “Lêlê, lêlê, lêlê, lêlê, lêlê, lêlê, lêlê / Lêlê, lêlê, lêlê, lêlê, lêlê, lêlê, lêlê / Vida de nêgo é difícil, é difícil como quê / vida de nêgo é difícil, é difícil como quê” na voz de Dorival Caymmi, sabia que a novela Escrava Isaura (1), de 1976, entraria no ar. Nela, a personagem-título interpretada por Lucélia Santos passava o pão que o diabo amassou até ter o seu maior desejo conquistado: liberdade!

Dizem que as telenovelas têm algumas fórmulas, métricas mesmo, para garantir o sucesso. Nada tão diferente, provavelmente, dos folhetins que eram publicados nos jornais durante o século XIX e boa parte da primeira metade do século XX. Ou ainda do que se cravou como sucesso absoluto na história da literatura brasileira via José de Alencar, com os romances “O Guarani” (1857), “Iracema” (1865) ou “Lucíola” (1862), por exemplo (2).

Pois bem. Se tem um autor que em suas obras mais recentes nos leva a rememorar tais caminhos, pela lógica da construção da narrativa e, obviamente, com um linguajar mais moderno, este seria Ken Follet. Neste mesmo blog tivemos a oportunidade de analisar seu último tour de force, a trilogia “Queda de Gigantes”, que além do primeiro livro homônimo teve ainda como segundo e terceiro volumes, respectivamente, “Inverno do Mundo” e a “Eternidade por Um Fio”. Nestes ele segue a trajetória de cinco famílias em diferentes países, que têm suas vidas cruzadas em função de estarem no centro das ações das grandes potências globais, geradoras de duas Guerras Mundiais e um ambiente de Guerra Fria.

Acredito que, fruto do esforço de pesquisa para a escrita das obras acima citadas, Follet ainda teria ficado com o que poderíamos chamar de “rescaldo”. Enquanto em “Queda de Gigantes”, a origem de uma das famílias que teve sua trajetória seguida eram as minas no País de Gales, em “Um Lugar Chamado Liberdade” – Ed. Arqueiro (a mesma da trilogia com a qual comparamos) – São Paulo – 2014 – 400 páginas – ele remonta aos mineiros de carvão localizados na Escócia no século XVIII.


Vocês poderiam alegar que aí existe um ligeiro desvio temporal, dado que em “Queda de Gigantes” o autor em questão traçou sua rota a partir do final do século XIX. Porém, todos os elementos que constavam numa obra se encontram na outra, sendo feitos os devidos ajustes pela diferença no tempo – o amor não correspondido (3); a luta pela sobrevivência em condições desumanas; senhores de escravos, credores de gente de bem, mas ignorantes de seus direitos, etc. A própria sentença, introdutória ao título, diz muita coisa: “Separados pela Diferença Social, unidos pela Busca por (...)”.

Em “Um Lugar Chamado Liberdade”, Mack MacAsh, logo no início, mineiro subordinado à família Jamisson, descobre que pela legislação britânica teria direito à liberdade desde que não completasse, após a maioridade, 1 ano e 1 dia de trabalho nas minas. Tal ato jurídico era de desconhecimento total das famílias lá instaladas, que ofereciam seus rebentos para os Jamisson automaticamente, desde o batizado. Estamos em tempos de que os EUA ainda eram colônia da Inglaterra, e os debates em torno da liberdade do país americano começavam a ganhar força pelos lados de cá do Atlântico. Ou seja, ideias libertárias vagavam pelo mundo, e estas moveram MacAsh em busca de seu intento.

Ken Follet
O livro em si prende, como todo bom folhetim, mas fica aquela sensação de que já vimos isso antes, de que já sabemos o final dessa estória – aquele pensamento que nos rondava (ronda!?) quando começamos a acompanhar uma novela: sabemos que o mocinho fica com a bela moça no final, mas queremos acompanhar assim mesmo seu duro trajeto até que consiga seu objetivo (4). Mas ninguém, nenhum leitor pode dizer que foi pego desavisado. Follet entrega o que promete. Uma boa estória, ambientada num passado em que as emoções não eram expostas em mídias sociais, mas no relacionamento direto entre diferentes classes sociais em busca de uma resposta própria do que deveria ser o mundo, ou como seria um mundo ainda melhor.

Como curiosidade
uma versão em Inglês
do livro contendo na capa
a co-protagonista feminina.
(3)   “Durante uma visita dos Jamissons à propriedade, Mack acaba encontrando uma aliada incomum: Lizzie Hallim, uma jovem bela e bem-nascida, mas presa em seu inferno pessoal, numa sociedade em que as mulheres devem ser submissas e não têm vontade própria” – contra-capa.

(4)   Contrariamente do que está exposto na contra-capa do livro – “Ken Follet é um mestre absoluto em criar tramas complexas e emocionantes” – eu não diria que são complexas. Mas a emoção está sim, lá, presente.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O Último Trem de Hiroshima

A guerra é a situação extrema do ser humano. Nela, mais do que no nosso dia a dia, está latente a possibilidade de você morrer no segundo seguinte. O que esta noção provoca no ser humano? Que tipo de reação cada um de nós teria se vivesse tal situação? De que maneira podemos evitar chegar a tal ponto?

Charles Pellegrino, com o seu “O Último Trem de Hiroshima: os sobreviventes olham para trás” (Ed. Leya – São Paulo – 2010 – 432 págs) induz ao leitor tais reflexões. O autor, deste modo, responde a essas perguntas propondo-as no contexto de no que de pior a humanidade já fez a si própria – o lançamento das duas bombas atômicas ao final da Segunda Guerra Mundial sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Como se não bastassem os campos de concentração nazistas e todo o horror cometido no cotidiano de um enfrentamento bélico, optou-se pela “solução final” de modo a impor uma derrota ao adversário sem contestações.


Filosoficamente se poderia discutir se ceifar uma centena de milhar de vidas humanas não seria melhor do que dar continuidade a uma guerra de invasão – conforme previsto pelas Forças Armadas norte-americanas junto ao Japão naquele mesmo ano de 1945 – que poderia prolongar o conflito e trazer um número maior de baixas. Mas na verdade a pergunta crucial não é esta. A guerra em si carece de razoabilidade em existir. Mas o ser humano parece não entender este conceito cristalino, dado que em batalha estivemos desde o raiar da humanidade.

Pellegrino, desta forma, deixa com o seu trabalho o testemunho necessário desta irracionalidade que é a guerra, trazendo como argumentos a seu favor (ao nosso favor!!!) o impacto gerado com as imagens e histórias coletadas em quase 30 anos de pesquisa.
Charles Pellegrino
Autor dos livros que serviram a James Cameron como inspiração para Titanic e de pesquisas que impulsionaram o conceito em torno da série Jurassic Park, Pellegrino está em condições de levantar mais uma bandeira utilizando-se de sua influência perante os meios de comunicação de modo a que compreendamos de uma vez por todas que não existe outro caminho para a sobrevivência em paz no planeta Terra que não seja a cooperação entre todos, vizinhos, povos, cidades ou países. Para tanto ele navegou desde o pior que o ser humano pode representar, até chegar ao melhor que o homem pode fazer pelo seu próximo.

Orgulho, preconceito e cegueira – o pior do ser humano

Uma das primeiras imagens de como o homem pode ter sua ética e boa vontade deteriorada em favor do benefício próprio foi a identificação de que localidades próximas às duas cidades atingidas no início de agosto de 1945 impediam a migração dos sobreviventes para suas comunidades. “Na zona rural, durante o espaço de apenas algumas horas, os sobreviventes tinham sido convertidos em fugitivos, como as administrações locais faziam questão de deixar claro em anúncios feitos com megafones. Apelando para argumentações ou ocasionalmente apontando armas, as autoridades mandavam os andarilhos feridos de volta às piras e aos lugares onde a chuva negra caíra. Embora ainda não soubessem que tais venenos existiam, encaminhavam as pessoas à radiotividade” (pág. 60).

Essa é uma reação entre vizinhos, co-irmãos de uma mesma sociedade. Mas a humanidade infelizmente não se vê também como uma só. E quão mais distante se encontra do impacto gerado por suas ações, maior a probabilidade de atitudes selvagens para com o seu semelhante. “Uma solução que se ouvia com mais frequência era a de acabar com o Japão o mais rápido possível usando armas nucleares, e depois a Rússia, com a mesma força. A segunda bomba atômica ainda não tinha incendiado Nagasaki e diversos veteranos da primeira missão atômica já viam seus amigos lançarem o olhar para além do Japão, na direção da Rússia, e usar pela primeira vez a expressão ‘Nuke them’” (pág. 104) para expressar o desejo por um ataque atômico contra um inimigo.

O horror de tais medidas somente podem ser entendidas como a cegueira do ser humano em relação às consequências de seus próprios atos. A falta de compreensão do que ocorre no seu entorno, o orgulho ferido, acabam com a visão de que uma atitude deve ser tomada para evitar o pior. “Mesmo depois de o presidente norte-americano [Truman] revelar o segredo ao mundo, algumas horas mais tarde – O mundo verá que a primeira bomba atômica foi lançada sobre Hiroshima, uma base militar -, o ministro da Guerra [japonês, Anami] se recusava a aceitar” (pág. 88). Ao contrário, todos correm a favor do estímulo ao estabelecimento do inferno na Terra como se a única solução fosse destruir o outro (ou ter a capacidade de). Ou de que outra forma se entenderia a Guerra Fria e a corrida armamentista? Afinal, “(...) quando os norte-americanos começaram [com o desenvolvimento da bomba atômica], ninguém sabia que o problema poderia realmente ser solucionado. ‘Agora’, Stalin disse a Beria [Chefe da KGB], ‘o mundo sabe que isso pode ser feito. É a parte mais difícil do problema. Muito, muito mais importante de saber como pode ser feito, é saber que pode ser feito’” (pág. 100). Aqui vale aquela velha máxima: o pior cego é aquele que não quer ver. Talvez a única maneira de se fazer com que os olhos sejam abertos seria presenciando o horror gerado.

Horror

Quando o doutor Nishina levou um punhado de caninos e molares enegrecidos para perto do seu medidor Geiger, os inconfundíveis cliques lhe reveleram exatamente o que acontecera.
“Restos humanos geralmente não emitem radiação”, o físico disse a Arisue.
“Então o que é?”, perguntou o general. “Esses cliques aí mostram tudo?”
Ministro da Guerra japonês
Korechika Anami
“É isso mesmo”, disse o doutor Nishina. “Só esses cliques e acabou. Temos que fazer o ministro da Guerra Anami entender: se os norte-americanos tiverem muitas dessas armas, pode acreditar em minha palavra, general – não há defesa contra esse tipo de poder” (pág. 99).

Já vimos acima que a simples constatação de que o horror atômico estava próximo não foi o suficiente para um retrocesso no conflito imediatamente após ao lançamento da primeira bomba. Mesmo com técnicos já tendo identificado o que tinha ocorrido, o alto escalão militar japonês ainda não acreditava (ou não queria acreditar) na gravidade da questão que estavam enfrentando. Porém, aos poucos relatos – e fatos concretos – trouxeram à tona o que alguns não queriam ver. “Depois do pika (o clarão) e do don (a explosão), a grama no lado do vale (...), à sombra da montanha, permaneceu verde e praticamente inalterada. (...) Mas em pouco tempo seu casulo passaria por uma estranha chuva de óleo amarelo, e o córrego não teria águas claras por muito tempo” (pág. 175).

O impacto em si sobre a natureza e a devastação local, com o desaparecimento da maior parte das estruturas da cidade, não era nada comparado com os efeitos da bomba sobre os seres humanos. “Matéria cerebral vaporizada e sangue tentavam escapar pelas órbitas do crânio de uma mulher, como se fossem jatos de fumaça preta, mas o aumento súbito de pressão foi tão grande que o crânio explodiu por dentro” (pág. 185). Ou ainda havia os chamados homens-formiga, que caminhavam desolados, sobreviventes sem a noção do que havia ocorrido, andando ao esmo, em linhas uns atrás dos outros. Ou as pessoas-jacaré, que acorriam aos pequenos córregos e rios, na busca por saciar a sede gerada com perda de material humano gerada pela bomba. “As pessoas-jacaré não gritavam. Suas bocas não podiam articular sons, mas o ruído era pior que gritos. Emitiam um constante murmúrio – como o de cigarras numa noite de verão. Um homem, cambaleando sobre os cotos queimados em que se transformaram suas pernas, carregava um bebê morto de cabeça para baixo” (pág. 199). Se tais cenas não gerassem arrependimento, não saberíamos jamais o que poderia fazê-lo.

Arrependimento

Arrepender-se. Primeiro ato de uma possível redenção. Mesmo que alguns cegos, como dito acima, somente enxergassem a busca pelo poder supremo, ou pela destruição imediata do inimigo, seres humanos haviam lançado aquelas bombas sobre outros seres humanos. E em alguns casos sem a exata noção do que estavam fazendo. “Russell Gakensbach, no assento do navegador do Necessary Evil, investigava o dano e pensava o mesmo que Tibbets [piloto do Enola Gay, avião que lançou a bomba sobre Hiroshima] – há menos deles [japoneses] agora -, mas o copiloto de Tibbets [capitão Robert Lewis] tinha um pensamento muito diferente: ‘Olhando para baixo, a milhares de pés sobre Hiroshima, tudo o que eu podia pensar era: ‘Meu Deus, o que fizemos?’, ele contaria, mais tarde” (págs. 86-87). A bordo do terceiro avião B-29 daquela missão fatídica de 06 de Agosto, o Great Artiste, o piloto Charles Sweeney, ao saber que provavelmente teriam que fazer aquilo de novo, “saiu da base sem dizer mais nada. Ele pegou um jipe emprestado e o guiou para longe da própria ala de bombardeio, a do 509º, em direção ao capitão Downey, do 313º. O capelão que havida dado a benção às três tripulações de Hiroshima (...) era luterano. Sweeney era católico. Ele precisava encontrar um padre” (pág. 94).

O mais impressionante é que, voltando mais um pouco no tempo, talvez nada disso – as bombas, digo - fosse necessário. Pellegrino aponta o fato de Hitler ter escapado com vida de um atentado em Julho de 1944. Aproveita inclusive este fato para explicar a teoria sobre o “casulo” gerado a partir de uma mínima proteção próxima ao epicentro de uma explosão – nesse caso específico uma grossa perna de mesa serviu de anteparo para detonação, e acabaria salvando a vida do dirigente alemão -, tese esta importante para compreender como alguns dos sobreviventes escaparam às bombas atômicas. “Não fosse pelo casulo antichoque de Hitler, von Stulpnagel [o conspirador responsável pelo atentado] teria pedido, de seu posto avançado na França, um armistício imediato às forças aliadas em 20 de Julho de 1944 ou numa data próxima. O plano de Stulpnagel-Rommel pretendia colocar Ludwig Beck e Carl Goerdeler no poder como presidente e chanceler – com a condição de que a Alemanha se rendesse até a última semana de julho de 1944, em vez de 7 de maio de 1945. Se tivesse acontecido assim, os aliados não teriam se distraído do front do Pacífico pela batalha do Bulge em dezembro de 1944; tampouco de Dresden em fevereiro de 1945, ou de Berlim devido ao avanço russo em abril de 1945. Em vez disso, Okinawa não caíra com os fuzileiros navais e as Filipinas não foram liberadas até junho de 1945. Se um pedaço de madeira de carvalho não tivesse interferido em 20 de Julho de 1944, esses dois eventos-chave teriam ocorrido pelo menos seis meses antes – até janeiro de 1945, provavelmente em momento anterior a novembro de 1944” (pág. 374).

As forças armadas norte-americanas já vinham se preparando desde maio de 1945 para uma invasão ao Japão. Eram mais de 500 mil homens de prontidão para tal ato, com uma previsão de baixas caso fosse necessário em torno de 400 mil combatentes. “Todos esses eventos teriam ocorrido de seis a oito meses antes, não fosse pelo casulo antichoque de Hitler. A esquadra americana deveria ter invadido o território japonês em maio de 1945, possivelmente até março. Se isso tivesse acontecido, existiria uma probabilidade de mais de 50% de que a guerra terminasse até agosto. Se a invasão ocorresse em março, então o calendário de MacArthur encerraria a guerra quando a primeira bomba atômica foi testada na base de Trinity, em 16 de Julho de 1945. Hiroshima e Nagasaki nunca teriam acontecido” (pág. 375). E isso realmente importa – a linha tênue entre destino ou fatalidade? Como colocamos no início, qual é a verdadeira lição a ser aprendida?

O melhor do ser humano

As pequenas tragédias que vivemos no dia a dia, atualmente, nesse mundo de grande pressão por resultados imediatos, por ser bem sucedido, se transformam em gigantescas tempestades emocionais. As pessoas se tornam dependentes de questões supérfluas, à beira do colapso e da depressão. Mas estas somente ganham sua verdadeira dimensão quando confrontadas com as grandes e verdadeiras tragédias. Michie Maruta, uma garota do subúrbio de Urakami, principal local atingido pela bomba de Nagasaki, é o exemplo real de tal conceito. Observando os efeitos sobre a população atingida – vômitos dos próprios órgãos internos, pele se desfazendo, pilhas de cadáveres em chamas – ela mal podia acreditar que apenas uma semana antes tinha ficado horrorizada com um corte feito num dedo por uma folha de papel (pág. 252). A superficialidade da vida era assim, posta em cheque. Mas se uma experiência reversa mostrasse outro lado? Um padre católico, de nome Simcho, foi preso em 1942 por tropas do Eixo no Japão. Foi deportado para Auschwitz. Lá, se apresentou como culpado de roubo no lugar de outro detento. Tsutomu Yamaguchi, um dos chamados “duplo sobreviventes” e maior defensor da paz após às bombas atômicas, colocou da seguinte forma: “O padre Simcho tomou uma decisão notável (...). O homem acusado tinha uma família do lado de fora, em algum lugar além dos muros da prisão. Simcho não tinha família. Então ele confessou um roubo que não cometera para que uns filhos não fossem privados de um pai” (pág. 306).

Porém a mesma superficialidade acima apontada é muito mais perversa, por compor aquele grupo de sentimentos que levam à ambição desmedida, ao preconceito, ao orgulho exagerado dos pequenos feitos, que por sua vez levam ao embate entre as pessoas, que no mais alto grau, devidos aos interesses envolvidos, geram as guerras. Tais sentimentos são muito mais facilmente cooptáveis pelos seres humanos, infelizmente. Atitudes como a do padre Simcho, de altruísmo extremo, são extremamente raras. Mas como reverter esse ciclo vicioso? Como transformá-lo num círculo virtuoso? A resposta a partir da experiência das bombas atômicas possui dois nomes: Nyokodo e Omoiyari.

Para entendermos Nyokodo temos que entender o Dr. Paul (Takashi) Nagai e Masahiro Sasaki. Nagai era paciente de câncer terminal em seu próprio hospital na época do bombardeio de Nagasaki. Após receber uma dose quase letal de radiação, seu câncer entrou em remissão temporária, e, apesar de ainda gravemente afetado, viveu tempo suficiente para se tornar um dos observadores mais poéticos e espirituais dos efeitos da bomba na mente e alma humanas. Nagai se tornou um dos principais conselheiros espirituais em Urakami e na Nagasaki pós-apocalipse (pág. 362).
Dr. Nagai e seus filhos em Nyokodo
Logo no primeiro outono depois da bomba, ele desceu o morro, adentrou a zona proibida, se converteu em rato de laboratório e deixou seu cabelo crescer à Einstein. Ele batizou sua cabana de Nyokodo – o eremitério “Como a ti mesmo” (pág. 299). Próximo à morte, após ter passado inúmeras lições de vida para os que o visitavam, Nagai, católico, resumia o seu princípio de vida em “Ame ao próximo como a si mesmo” (pág. 331).

Já Masahiro Sasaki tinha 5 anos no dia da queda da bomba. Ao crescer, propagou a mensagem da sua irmã – Sadako Sasaki, que aos 12 anos ainda vivia sob os efeitos colaterais da chuva negra, quando fez um pássaro de papel e escreveu nas asas: “Um dia você vai levar a paz voando ao redor do mundo” (pág. 363). Masahiro, estando nos Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001, colocou aos seus ouvintes um princípio similar que já estava ficando conhecido pela expressão “a corrente do bem” (1). O lema essencial passava por “assim como a ti mesmo” (ou Nyokodo) (...)
Masahiro Sasaki
Alguns sobreviventes do 11 de Setembro e suas famílias saíram do encontro com Masahiro com sua maneira de pensar transformada. Não muitos; porque as feridas ainda eram recentes para que a maioria fosse tocada por palavras. Apenas alguns foram tocados – só uns poucos, na verdade. Mas estes poucos já poderiam ser o suficiente (pág. 353).

E em relação a Omoiyari? Podemos dizer, grosso modo, que Nyokodo foi o meio, mas a verdadeira mensagem pode ser condensada em Omoiyari. Antes do falecimento de Sadako, Masahiro e a irmã estabeleceram um ditado que lhes dava força para continuar. E ele se resumia na palavra Omoiyari, que significava “Em seu coração, sempre pense na outra pessoa antes de você” (pág. 331).
Sadako Sasaki, em foto tirada por seu irmão, Masahiro
“Eu acho que Omoiyari é a melhor maneira de começar”, Masahiro Sasaki disse naquela ocasião, com os sobreviventes do 11 de Setembro. “A pior maneira de começar é nos chamarmos de vítimas. Para dizer ‘vítima’ é preciso haver vitimizador, e o vitimizador leva a culpa; e assim começa o ciclo de culpa. Por exemplo, se dissermos ‘vítima de Hiroshima’, a próxima frase que aparecer vai envolver Pearl Harbor e a cadeia de culpa fica presa em acontecimentos do passado” (...). Aos adultos na plateia, Masahiro explicou: “O que estou tentando dizer é que não importa quem lançou a bomba. Não é uma questão relevante. Nunca deveria ser, em nenhum país. É uma questão para toda a humanidade. A coisa importante é que eu e Sadako conhecíamos o sentimento de Omoiyari – e se esse princípio for ser seguido e passado adiante por apenas alguns de vocês presentes aqui nesta sala, hoje, com o tempo os perigos deste mundo poderão diminuir. Vocês precisam superar a tristeza e sair dela passando adiante esta simples filosofia para a nova geração” (págs. 352-354).

ADICIONAIS

(1)   O filme “A Corrente do Bem” (2000) é o símbolo do movimento citado. Nele, um professor interpretado por Kevin Spacey instiga seus alunos da sétima série a propor um meio de transformar o mundo para melhor. Haley Joel Osmont, ator-mirim que ficou conhecido pela produção “O 6º Sentido”, faz o papel de Trevor Mckinsey. Ele propõe, então, que cada pessoa faça o bem para outras 3 pessoas, independentemente de qualquer desejo ou contrapartida. Essa pirâmide filosófica poderia alterar o mundo;
(2)   O livro possui um prefácio no qual o autor dá uma breve explicação sobre uma querela judicial no qual se envolveu, evitando desqualificar-se quanto a interlocutor para o tema. Certamente esta foi uma preocupação muito auto-centrada. O que eu quero dizer? Desconhecia tal fato e, para mim, era irrelevante para o livro em si. Mas como esta era uma reedição, entende-se a preocupação do autor;
(3)   Num livro cheio de nomes parecidos, extremamente importante foi a colocação de um capítulo, ao final, somente para identificar separadamente cada uma das pessoas ali citadas (págs. 355-365). Além disso, o índice remissivo também foi essencial para a redação, por exemplo, deste post;
(4)   O início do livro é dedicado às explicações técnico-médicas sobre as reações imediatas dos sobreviventes e como se deu a cadeia da explosão da bomba atômica de Hiroshima – replicado em menor medida quando da descrição da explosão de Nagasaki. Entendemos este trecho como relevante para a completa compreensão do leitor no tempo e no espaço do horror sofrido pelas vítimas. Mas devo confessar que foi cansativo. O livro ganha em dinâmica quando passam a ser retratados e inseridos no contexto a dinâmica da ação, e os sentimentos ali inscritos, das tripulações responsáveis pelo bombardeio;
(5)   Para os viciados em super-heróis e quadrinhos interessante mencionar que Stan Lee, mago da Marvel, então jornalista e conhecido como Stanley Lieber, tinha sido destacado como escriba militar. A mitologia atômica o envolveu de tal maneira que gerou sua imaginação abstrata para transformações radioativas, auxiliando a trazer à vida os heróis da supracitada editora. Basta dizer que naquela foi divulgada a possibilidade de picadas de aranhas gerarem algum desdobramento (Homem-Aranha); o impacto dos raios-gama sobre o homem (Hulk); as mutações gerando seres disformes e a doença atômica chamada de Doença X (X-men), entre outras coisas. Além disso, não exatamente vinculado à Stan Lee, mas parece pouco provável que ele não tenha tomado conhecimento posteriormente, a Hell’s Kitchen tão propagada em torno do personagem Demolidor, foi o local de guarda do urânio utilizado para as duas bombas atômicas. Ora, o dito personagem ganhou suas habilidades ao ser atropelado por um caminhão contendo produtos químicos... em Hell’s Kitchen! Para mais detalhes ver páginas 347 e 379; e

James Cameron
(6)   James Cameron teve contato com Tsutomu Yamaguchi, um dos duplos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, no final de sua vida, com 93 anos, no ano de 2009 – ele veio a falecer em 2010, ano de edição do livro.
Tsutomu Yamaguchi
Em Nagasaki, após depositar flores e ter tido contato com o japonês que se tornou um dos maiores defensores da paz no mundo, ele afirmou: “Yamaguchi-san disse algo muito interessante quando tomou nossas mãos – ele afirmou: ‘Meu dever foi cumprido’. (...) Passou a missão adiante. Agora cabe a nós fazer algo a respeito, e cabe a todas as pessoas de boa consciência fazer algo sobre isso” (pág. 383). Na capa do livro há outra afirmação dele: “Há anos desejo fazer um filme sobre os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki e este é um importante relato de um dos eventos mais marcantes do século XX”. Se Cameron cumprir com este desejo, estou certo que será um dos filmes mais marcantes da história da humanidade. O roteiro está pronto. Falta apenas rodar.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

MILLENIUM 2, 3 E... 4!?

No meu último aniversário ganhei como presente um vale para compras numa livraria. Perfeito. E lá fui eu... Levei 4 livros de uma tacada só. Nesta leva se encontravam as 3 últimas aventuras dos personagens Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander, da até então trilogia Millenium, do sueco Stieg Larsson – Os Homens que Não Amavam as Mulheres; A Menina que Brincava com Fogo; e A Rainha do Castelo de Ar. Só que eu não adquiri o primeiro deles. Peraí, mas existe uma confusão por aqui. Explicando...

No meu pacote constava, além dos dois últimos, o quarto livro da até então trilogia (!?). Entenderam? Pois é, foi lançada recentemente uma nova aventura da dupla de personagens escandinavos. Porém esta mais recente estória foi escrita por um autor diferente – claro, pois Larsson faleceu de ataque cardíaco logo após a entrega dos manuscritos dos três livros acima citados à editora.
Stieg Larsson
Dada a impossibilidade, foi alçado à empreitada o escritor e jornalista policial David Lagercrantz, que gerou a obra intitulada
A Garota na Teia de Aranha. Sueco, teve como principal obra, entre romances publicados, a biografia de Zlatan Ibrahimovic, polêmico jogador de futebol sueco, finalista de prêmios literários naquele país nórdico.
David Lagercrantz, autor do livro 4 da série Millenium
A Garota na Teia de Aranha
 E por que eu não comprei o primeiro livro da agora quadrilogia? Pelo simples fato de já ter assistido o filme gerado a partir da obra original. E para horror dos puristas, não, não assisti a versão sueca – a primeira a ser lançada e muito elogiada, assim como suas sequências. E sim a produção hollywoodiana que conta com os atores Daniel Craig (a atual James Bond) e Rooney Mara nos papéis principais. O filme me agradou muitíssimo, o que atiçou a minha curiosidade quanto à sequência da estória.


Desta forma, vou dividir este meu post em 3 partes, para que vocês possam ter uma melhor visão do todo em relação à análise crítica que pretendo empreender:

Primeira Parte – a preocupação pela perda de aspectos centrais da obra

Quando comecei a leitura do livro 2 – A Menina que Brincava com Fogo – estava na minha mente, o tempo todo, se eu não havia perdido algum aspecto relevante por não ter lido o primeiro volume da obra de Larsson – Os Homens que Não Amavam Mulheres. Algo que não tinha ficado claro para mim era o desfecho do relacionamento entre Blomkvist e Salander. O filme deixou algo subentendido, que talvez na versão literária tenha ficado mais clara. E esta explicação na verdade eu só vim a obter no final do livro 3 – A Rainha do Castelo de Ar.

A conclusão a que eu cheguei foi a confirmação de algo que sempre defendi, que é a leitura dos livros que dão origem às versões cinematográficas antes destas serem vistas. Muitas referências ficam mais claras, e algumas vezes os diretores se perdem, achando que estariam explicando o óbvio. Por outro lado, algumas as versões para a telona têm este objetivo mesmo, de deixar uma dúvida no ar para aguçar o interesse dos espectadores por sua continuidade.

Pelo que pude perceber, lendo o livro 2, os principais elementos da estória estavam presentes na adaptação cinematográfica. Um ou outro aspecto poderia ser mais detalhado no filme, mas provavelmente ele ficaria ou longo demais ou voltado para um cenário que talvez não fosse o elemento central buscado. Existe um entendimento pelo leitor que, como no meu caso, não tivesse lido o original. Mas fica aquele desconforto por não ter navegado antes pelas páginas, como se faltasse algo. De qualquer modo, não é um pecado mortal ou uma tarefa impossível de ser empreendida – ver o filme e começar a ler o restante da obra pelo volume 2, digo.

Segunda parte – Livros 2 e 3

Explicada a minha sensação de (meio) alívio em relação ao temor pela perda de conteúdo, pude apreciar ao ler A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar uma das melhores obras a que tive acesso nos últimos anos – e olha que eu leio muito, e sobre diversos temas. Ok, são voltadas para quem gosta de thrillers de suspense investigativo, para quem aprecia a ótica jornalística pela apuração dos fatos, para quem se espanta com a capacidade que um número superrestrito de pessoas possui hoje em dia para rastrear vidas alheias pela internet, para os que adoram observar com lupa como os relacionamentos humanos são frágeis se não forem baseados em confiança mútua, para se indignar com os abusos do poder entre as pessoas, etc. Ou seja, uma dinâmica forte e ágil de escrita, que te prende do início ao fim.

A meu ver fica nítido – até pela história real de entrega dos manuscritos – que os livros 2 e 3 foram escritos de uma tacada só, como se fossem uma única obra, tendo uma separação em relação ao 1, a qual a própria narrativa deixa explícita. A estória de A Menina que Brincava com Fogo se passa cerca de pouco mais de 1 ano depois dos desdobramentos de Os Homens que Não Amavam as Mulheres: “Um ano antes, ele [Blomkvist] vivera esse furo [caso Wennerström] com uma satisfação colossal” (pág. 19). Já A Rainha do Castelo de Ar inicia-se na sequência imediata da ação encerrada ao final do volume anterior. Ou seja, se Larsson quisesse ter publicado sua obra em dois volumes, assim o poderia ter feito. Porém, digamos que foi inteligente da parte da editora em dividi-la em 3. Até mesmo porque o segundo e terceiro livros já são colossais por si só – 607 e 685 páginas respectivamente – imaginem se fossem reunidos num único tomo!

De todo modo, devo aqui salientar que à parte a imensa quantidade de páginas, é praticamente impossível largá-las antes do fim. Eu li os dois volumes em 1 semana cada, levando durante o final de semana para onde ia – para desespero da minha esposa. Se vale uma crítica, diria que o final do volume 3 aparenta como se o autor tivesse se esquecido de um pequeno detalhe, e ao lembrá-lo (ou dar-se conta de que havia um ponto que ainda não estava bem resolvido) ele estende a obra por um epílogo (últimas 26 páginas) que pouco acrescenta à estória. Seriam as tais páginas “dispensáveis”. Mas sabe-se lá o que se passa na cabeça de um escritor quando está diante de sua obra-prima – ‘Ela tem que ser perfeita!’ / ‘Não posso deixar essas pontas soltas’ – devem ser pensamentos angustiantes.

Vencida esta etapa eu me encontrava na seguinte situação: iria partir para a leitura do volume 4 com a sensação de que ali iria encontrar um esforço da editora para chupar ao máximo o sumo de uma fruta que já se encontrava esgotada. E este medo me assombrava... Mas já que eu havia me proposto, por que não fazê-lo? Uma expectativa baixa pode trazer boas supresas.

Terceira parte – Livro 4

No meu último post tratei da obra Sr. Holmes, no qual o autor Mitch Cullins se aventura sobre um personagem clássico, mas retirando-o do seu ambiente usual e inserindo-o numa fase tardia da sua vida, totalmente diversa da que foi tratada pelo autor original, Sir. Connan Doyle. Já em A Garota na Teia de Aranha a proposta colocada pela editora, e aceita pelo autor - David Lagercrantz – era de dar continuidade à trajetória dos personagens centrais elaborados e desenvolvidos por Stieg Larsson, ou seja, um risco muito mais alto.


O sentimento em geral, ao ler o livro, é de um anticlímax. Contribui para isso a morte inesperada de Stieg Larsson ao entregar os originais dos 3 primeiros livros para publicação. O que resta ao leitor imaginar? Será que o autor já tinha fechado o ciclo de seus principais personagens? Ou será que ele imaginava uma continuação?

Tenho o palpite de que Larsson iria continuar escrevendo sobre as peripécias de Lisbeth Salander. Duas razões básicas me levam a essa conclusão. Ele deixou ganchos para uma continuidade do trabalho. Uma delas começou a ser tratada por Lagercrantz – a irmã da personagem principal, Camilla Salander, aparece como principal antagonista no 4º livro. Além disso, existe o apoio da família Larsson pela continuidade – Erland Larsson (pai) e Joakim Larsson (irmão) são citados nos agradecimentos ao final do livro. Claro que tal pode estar inserido num contexto financeiro de mais exploração do legado deixado. Mas acredito que o cuidado com as referências às estórias anteriores, e o zelo que os herdeiros devem ter tido em todo o processo transcende somente este aspecto.

Porém, a meu ver, houve uma escolha equivocada por parte de David Lagercrantz: o desaparecimento da personagem Rosa Figuerola, especialista da Säpo, que havia criado um forte laço com Mikael Blomkvist no livro 3. Havia um ótimo caminho por aí a ser explorado. Mas aparentemente Lagercrantz preferiu um reboot do jornalista, co-protagonista da série.


Em resumo, o livro 4 demora a envolver o leitor, e quando o faz existe uma aceleração na trama, que acaba ficando superficial em relação ao suspense dos 3 livros iniciais. Pode ser uma diferença de estilo, pode ser a preocupação em se priorizar a ação ao invés da trama, pois superar Larsson seria difícil nesse quesito (pode ser até que uma diferença de 200 páginas para menos no livro 4 tenha tido uma influência nesse aspecto), pode ser um processo de adaptação do novo autor a um universo alheio, podem ser diversas coisas, mas fato é que o leitor de Larsson esperava algo sublime, e acabou por receber um livro de ação simples, dois pontos abaixo pelo menos das obras originais. Enfim, tudo indica que a saga continuará. Vamos ver se a experiência e o aprendizado fazem com que ela volte ao nível esperado.