domingo, 17 de fevereiro de 2019

#MadalenaSemFiltro


Fechando este tour pelas obras de Rodrigo Alvarez às quais tivemos acesso recentemente analisaremos hoje seu primeiro livro de ficção, em que pese ainda estar vinculado a figuras históricas da Igreja Católica. Chama-se #MadalenaSemFiltro – Editora LeYa, Rio de Janeiro – 2018 – 160 págs. Obra centrada na figura de Santa Maria Madalena, aquela que acompanhou Cristo desde que se juntou ao seu grupo até os últimos momentos, já na cruz. E ainda tendo o privilégio de ser a primeira a tê-lo visto ressuscitado.

Fonte: Twitter
O autor se propõe a buscar um testemunho da própria santa sobre sua trajetória. O sub-título aponta diretamente para isso – Memórias Póstumas da Apóstola de Jesus. Ainda é acrescentada na capa uma explicação didática – Uma narrativa baseada em fatos e documentos históricos. Para quem leu os posts anteriores sabe que um dos méritos de Alvarez é que, por sua formação jornalística, ser um profissional que busca basear suas afirmações em fontes. E em não tendo segurança, dá o benefício da dúvida e o expõe.

Sendo #MadalenaSemFiltro uma obra ficcional, isto fica mais velado ou escondido. E em alguns momentos até mesmo não percebido. Isto porque o autor prefere centrar forças em digressões a respeito do inconformismo da personagem central com relação à imagem que teria sido passada pelos evangelistas (e outros autores posteriormente) a seu respeito, como uma prostituta e aquela que se beneficiou, de uma certa forma, de uma proximidade com Cristo “indevida”.

Esse é o lado ficcional prevalecendo. Não temos certeza – e nunca saberemos – como era o relacionamento de Maria Madalena com os demais apóstolos. Se hoje ainda convivemos com uma insegurança nos relacionamentos em ambientes profissionais entre homens e mulheres e o incompreendido – dada a modernidade em que nos inserimos – desnível no reconhecimento da importância dos feitos da mulher em relação àqueles debitados aos homens, imagina naquela época, quando isso era muito mais explícito e fazia parte da cultura.

Maria Madalena é então, incensada pelo autor, como uma das primeiras feministas da História. Aquela em que num momento tão singular da humanidade teria, naturalmente, buscado ser um personagem relevante num meio totalmente dominado pelo ser masculino. O problema do livro, a meu ver, foi justamente essa escolha isolada. Isso acaba por cansar o leitor menos prevenido, que tinha curiosidade sobre a visão do autor a respeito de outras nuances da santa.

O título em si já remete para uma jornada de luta por mudança de conceitos. A utilização da #, fazendo vínculo com os meios digitais de divulgação de uma ideia utilizados amplamente nos diferentes caminhos da web, indica que o livro será uma declaração sem pudores de alguém que se sente injustiçado – como é típico daqueles que se utilizam desse meio. Verdades virão à tona, afinal a santa está “sem filtro”, ou sem papas na língua, e quer que sua versão da própria história alcance o mundo. Porém, volto a dizer, essa confissão de temores – ou luta, ou remorso contido, quer seja como leiam – peca por concentrar-se somente no libelo feminista. Melhor seria buscasse explorar outros aspectos.

Tal fator motivador somente fica claro para o leitor na seção Sobre Este Livro, presente no final da obra – págs. 131-132. Destacamos o seguinte trecho abaixo:

Nós, e também as editoras Leila Name e Martha Ribas, (...), compartilhávamos o grande desejo de criar um livro esclarecedor sobre Maria Madalena, que não fosse apenas mais uma coleção de pesquisas repletas de interrogações. Naquele dia, falamos sobre o surgimento do movimento #MeToo[1] e de suas ramificações pelo mundo, falamos sobre o grande momento vivido pelas mulheres, certamente por ver naquelas que se levantam contra os abusos uma identificação com Madalena (cuja causa mortis desconhecemos, mas que de diversas formas foi assassinada em sua dignidade feminina ao longo da história).

Bom, se o objetivo era que o livro fosse “esclarecedor” como aqui dito, de tudo que pode ser dito sobre ele a única coisa que ele não constitui é ser uma obra “esclarecedora” de algo – a não ser, talvez, pela introdução de nomes de autores que teriam tratado da trajetória da santa da em diferentes momentos alguns séculos atrás, com destaque para Rabanus Maurus (A Vida de Maria Madalena – século IX); a Homilia 33 do papa Gregório I; e Jacopo de Varazze, arcebispo de Gênova, com sua Lenda Áurea, publicado na Idade Média, com histórias de santos, mas amplamente criticado por ser demasiado ficcional e fantasioso (aqui temos a face do pesquisador e jornalista se fazendo presente). Rodrigo Alvarez, porém, se conformou em fazer um libelo a um movimento feminista, e tão somente. Pena. Acreditamos que perdeu uma ótima oportunidade em sua estreia como ficcionista. De todos os livros lidos, sem dúvida alguma, #MadalenaSemFiltro foi o mais fraco. Um desperdício. Esperemos uma melhor próxima jornada.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Jesus: o homem mais amado da História


Entramos na segunda jornada seguindo o autor Rodrigo Alvarez na sua caminhada pelo chamado desvendar dos ícones católicos. Se no primeiro post abordamos sua obra “Aparecida”, na qual através de uma pesquisa detalhada o jornalista conseguiu trilhar a trajetória daquela que viria a se tornar a santa padroeira do Brasil, agora nosso mergulho conjunto será em direção ao seu Filho, alguém que marcou não somente um país, mas todo o mundo.

Em “Jesus: o homem mais amado da História”, Rodrigo Alvarez nos proporciona, como acordado logo de início, um olhar que tenta ser equidistante entre sua importância religiosa e histórica, tentando pautar as afirmações existentes com provas concretas do que é apontado – e quão não as possui, indicando que as mesmas não existem ou são objeto de polêmica até os dias de hoje. Não fosse Jesus o personagem central do livro, qual outro poderia adquirir uma reverência tal grande pelo pesquisador, a fim de evitar dúvidas ao leitor sobre a veracidade dos fatos? Os autores literários muitas vezes anseiam pela ambiguidade de modo a deixar aquela dúvida em seus aficionados, prendendo-os em teias, enredando-os de tal modo que sua curiosidade pelo próximo capítulo o instigue a seguir a narrativa.

Pois, a História de Jesus a maioria das pessoas da cultura Ocidental Cristã a conhece muito bem. Pelo menos no que diz respeito aos seus fatos essenciais, descritos naquela que talvez seja a obra mais lida do mundo, a Bíblia, ela que através de Gutemberg originou a expansão do conhecimento chegando às massas. É a partir de tal nuance que Alvarez se diferencia daqueles que se propõem esmiuçar a vida Daquele que dividiu a História de nossa civilização entre o antes e o depois.

O livro, publicado pela Editora LeYa, do Rio de Janeiro, no ano passado (2018), possui 368 páginas nas quais a todo momento o autor nos surpreende com novos mínimos detalhes talvez nunca imaginados. Ele ainda se faz seguro de confrontar os evangelistas – no que eles têm de complementares e, de certa forma, contraditórios entre si. Isso porque como os religiosos, no fervor da sua fé por vezes deixam passar, a verdade é que os textos foram escritos com base na memória e passagem de histórias orais, dado que os fatos narrados ocorreram muitos anos antes da sua redação.

Além disso, Alvarez faz questão de consultar todos os pesquisadores que submergiram nessa história, e que por vezes indicam teorias mirabolantes para explicar determinados feitos, fugindo da narrativa usual. Mas ele sempre o faz voltando-se para a linha central até então vigente e prevalecente, buscando não profanar a crença majoritária tal como existente hoje em dia. Ressalta sempre que são teorias alternativas, nunca comprovadas até então, e que, portanto, não podem solapar o que move montanhas entre seus fiéis.
Fonte: www.gazetaonline.com.br

Desde a primeira linha, procurando sentir o ambiente em que Jesus viveu, me afastei dos olhares repetitivos, ou mesmo viciados, daqueles que querem defender essa ou aquela tese e nada mais enxergam. Passei também muito longe do sensacionalismo de escritores que se aventuram pelo tema e muitas vezes concluem o que lhes parece mais escandaloso, com base apenas num pergaminho obscuro, ou numa ossada de origem duvidosa, ou mesmo em mera especulação, quando, por exemplo, se exaltam as qualidades intelectuais de Jesus desejando transfigurá-lo na forma de autoajuda. (pág. 19)

Para se perceber o quanto Alvarez é cuidadoso no trato com a História, basta dizer que ele divide a obra em 11 capítulos, sendo a primeira parte dedicada ao início da sua pregação a partir do encontro com São João Batista, e a segunda ao seu caminhar resoluto para a crucifixão, desde o momento em que adentra Jerusalém para a Páscoa. Dessa forma o rito tão conhecido fica preservado. E ele como autor pode enveredar pelas frestas em caminho conhecido da maioria, ajustando-as para trazer o sentimento de clímax para o leitor, dado que este espera com anseio verificar se cada passo não esconde uma surpresa até o seu grande final.

Dentre as surpresas com as quais somos confrontados, logo no início o autor coloca à mesa a real possibilidade, dadas as características dos discursos de São João Batista e Jesus, de ambos terem convivido um bom tempo, não apenas aquele limitado ao batismo, numa seita partilhada entre seguidores denominados essênios. Não que Jesus fosse totalmente subordinados a eles – dado que os mesmos pregavam o isolamento total (tais quais ermitões) – mas muito do seu discurso religioso filosófico partilha de pensamentos comuns com aqueles. A contextualização histórica, assim, é uma preocupação constante na obra, apresentando detalhes que, ou não estão expostos na Bíblia, ou não são objeto do cristão comum que se atém a seguir a liturgia da Igreja sem estudá-la mais a fundo.

Até mesmo cristãos, muitas vezes padres com conhecimento em teologia e arqueologia, afirmarão que João Batista, o antecessor de Jesus, viveu uma parte importante de sua vida na comunidade essênia do mar Morto. E será impossível não perceber as semelhanças entre os essênios, João e Jesus. Mas por que será que os evangelhos jamais mencionarão essa seita judaica que usa o batismo para alcançar a remissão dos pecados? (...) Por que afinal o próprio Jesus ignoraria a existência de um grupo que pensa tão parecido com ele? (...) Estudiosos defenderão a tese de que Jesus não poderia ter se tornado um intelectual de grande estatura, capaz de mudar o mundo, se não tivesse passado longo tempo em salas de estudo com grandes mestres, ou numa biblioteca onde pudesse se aprofundar nas escrituras judaicas. (págs. 50-52)

Esse é o desafio proposto por Alvarez àqueles que se interessarem por ler essa sua obra. Mesmo sendo uma história tremendamente conhecida, venha usufruir de uma narrativa que lhe trará detalhes que enriquecerão o seu olhar e sua perspectiva. Como a cereja do bolo, o livro é ricamente decorado com fotos belíssimas logo em seu início de como alguns dos principais locais da passagem de Cristo se encontram hoje. E durante todo o transcurso do texto, vez e outra surgem reproduções pictóricas de obras belíssimas que se encontram espalhadas pelo mundo afora. Enfim, um deleite para os olhos, mentes e alma.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

APARECIDA


Iniciamos com este post uma jornada passando por três obras assinadas pelo jornalista Rodrigo Alvarez, da TV Globo[1]. Na verdade este arco encerrará uma trajetória de 5 livros analisados em sequência cuja temática estará vinculada diretamente com a Igreja Católica, se levarmos em consideração que o último texto avaliou duas obras oficiais editadas pela mesma. Porém, agora, estaremos a bordo da exposição de uma visão externa ao objeto, a partir do olhar investigativo – e a inspiração ficcional gerada como se perceberá no livro dedicado à Maria Madalena – de um experiente periodista.

“Rodrigo Alvarez (...) atualmente é correspondente da TV Globo em Berlim. Desde 1999, como repórter, vem cobrindo os principais acontecimentos do Brasil e do mundo – (...) com destaque especial para Jerusalém, onde passou mais de três anos entre guerras e lugares sagrados para diferentes religiões” [2]. A obra que abordaremos - “Aparecida”, 2ª edição – Editora Globo, São Paulo, 2017 – 248 pág. - na verdade é uma edição revista e ampliada em comemoração ao jubileu de 300 anos de Nossa Senhora de Aparecida, a santa padroeira do Brasil.

Fonte: g1.globo.com

Como todo bom jornalista, Alvarez se dedica de corpo e alma a uma investigação para trazer ao leitor menos afeito à história religiosa deste símbolo de devoção católica brasileira detalhes que para muitos passam despercebidos. O livro se inicia com uma contextualização oficial, dado ser assinada, em prefácio à 2ª edição, pelo então reitor do Santuário de Nacional de Nossa Senhora de Aparecida, o Pe. João Batista de Almeida. O tom dado pelo religioso permeia todo o texto, como cerne do trabalho do autor. “Registrar fatos históricos não é tarefa fácil, principalmente quando não se teve as lentes possantes da tecnologia atual no ato do seu acontecimento. Mais difícil ainda, quando seus personagens não gozavam de projeção social; quando os protagonistas não eram contados como cidadãos influentes” (pág. 9).

Logo na primeira seção[3], que servirá de catapulta para os seguintes -  no sentido de ser o aguçador da curiosidade de como a santa chegou ao ponto de importância capaz de ser objeto de um atentado – o jornalista narra todo o processo de reconstrução da imagem encontrada em 1717 após o atentado ocorrido no ano de 1978. Para surpresa dos leitores, a imagem atual não é totalmente fidedigna a encontrada no rio Paraíba do Sul, recebendo acertos em sua estrutura, principalmente pela fragilidade do material e da cabeça, especificamente, mas também por questões estéticas e de coerência com o visual de uma santa.

Um toque alegórico que poucos se dão conta, simplesmente porque não param para pensar é, por exemplo, de que o manto e a coroa vieram depois. Ou seja, a imagem presente no imaginário de cada brasileiro foi sendo construída com o passar dos anos, retocada, aprimorada, até chegar ao estágio atual, na qual já foi beijada por 3 papas – São João Paulo II, Bento XVI e Francisco – o que denota sua importância na geografia político-religiosa mundial de tempos de embate por se manter e aumentar o rebanho em relação à concorrência.

Fonte: amazon.com.br
Passado esse primeiro momento, de gancho para aguçar a curiosidade de todos, a obra se estrutura com mais 3 seções numa sequência cronológica para narrar a trajetória da santa desde seu reconhecimento até seu “credenciamento” enquanto Padroeira do Brasil. A segunda seção denomina-se “Identidade: Aparecida” – no qual se destaca a informação de que ela teria surgido primeiro como Nossa Senhora da Conceição: “Entre os inúmeros nomes que tinha à disposição, no momento em que aquela santinha de barro foi concebida no interior de São Paulo, muito antes de alguém pensar em chamá-la de Aparecida, o escultor desconhecido escolheu chamá-la de Nossa Senhora da Conceição” (pág. 83). Isto por conta de um decreto da Real Corte Portuguesa, que tinha esta última como padroeira do seu Império, e para o qual exigia que imagens fossem construídas e assim batizadas em todo o seu território. “Eram ordens do rei com carimbo do papa e entravam em vigor imediatamente para todos os habitantes dos domínios portugueses” (pág. 86).

Já a 3ª seção – Trevas e Redenção – aborda o mau gerenciamento do santuário criado em favor de políticos e agentes públicos indicados ora pela Coroa Portuguesa ora pelo próprio Império, tendo o Brasil já se tornado independente de Portugal. Grande destaque é dado àqueles que se organizaram suficientemente e com zelo para que Nossa Senhora de Aparecida tivesse um santuário à altura de sua importância, como o cônego Joaquim de Monte Carmelo (capítulo 20 – O cônego, os bispos e o imperador – e seguintes), e os padres alemães que vieram da cidade de Altöting[4] (capítulo 24 – Para redenção, contra desordem e corrupção, chamem os alemães! – e seguintes).

Na última seção – A Rainha, os Papas e os Presidentes – o olhar mais acurado se dá em torno da utilização política, a partir da influência de Nossa Senhora de Aparecida sobre os devotos brasileiros, ora para o apaziguamento de conflitos existentes, ora como meio de propaganda de um determinado regime. Porém, a meu ver, o livro termina enfatizando, como já dito anteriormente, o papel do Brasil na geopolítica católica mundial, dado o volume de devotos e o recado dado aos demais pela perseverança na fé.

Concluo confirmando minha percepção que, em geral, livros escritos por jornalistas têm uma leveza e uma dinâmica toda especial. Favorecendo demasiado o leitor seu acompanhamento, dada à riqueza de informações e o ritmo didático apresentado, Rodrigo Alvarez se apresenta como alguém que merece novas leituras, como assim o fiz. Será que ele manterá essa primeira boa impressão? Veremos nos próximos posts.


[1] Para mais detalhes ver https://redeglobo.globo.com/ .
[2] Descrição presente na orelha do livro aqui avaliado.
[3] São 4 seções, com 36 capítulos no total somados.
[4] Localizada na Bavária, possui atualmente em torno de 12 mil habitantes. Para mais detalhes ver https://pt.db-city.com/Alemanha--Bayern--Alt%C3%B6tting--Alt%C3%B6tting .

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Religião Católica: o espelho do Papa?


Nossos posts normalmente têm como título o livro resenhado. Porém, como o objeto de nossa análise serão duas obras oficiais recentes da Igreja Católica, teremos que apresentar um texto no qual as contextualiza dentre de um cenário macro, de modo a entender como elas se inserem neste. Ao final daremos nossa visão como obras literárias, a depender do que entendo como, particularmente, um instrumento de cunho religioso deveria ser – ou se propor a ser.

As religiões possuem (ou deveriam possuir) como diretriz o alento ao espírito, à alma ou à personalidade humana – a depender do grau de convicção de cada um a respeito do tema. Elas surgiram justamente com este intuito. O ser humano, quando não encontra uma saída lógica, racional, para um determinado dilema, busca no divino as respostas que estão escondidas aos seus olhos.

A partir desta semente as “grandes” religiões cresceram e “tiveram” que se estruturar para a manutenção dos seus fiéis. E neste quesito talvez nenhuma delas tenha feito da melhor forma para adentrar – pelo menos no Ocidente – com a força e a influência que possuem hoje em dia como a Igreja Católica. É justamente neste ponto que se deve ter um certo cuidado no discurso.

Uma coisa é a fé, a crença num determinado discurso ou filosofia religiosa. A fé é independente, a meu ver, da estrutura operacional que uma determinada religião venha a apresentar. Eu ter fé na filosofia cristã, conforme ela foi apresentada por Jesus Cristo, e que deu base à Igreja Católica e seus ritos, não significa que eu não possa contestar alguns aspectos dessa estrutura na qual gira em torno. Essa liberdade de contestação talvez seja o que diferencia os radicais daqueles que apenas querem ter a vivência espiritual via Cristianismo.

À parte a época documentada historicamente da Inquisição, quando o radicalismo prevaleceu claramente, sempre com o intuito da manutenção não somente dos fiéis como do poder político então gerido pela Igreja Católica junto às monarquias europeias - teve duas versões: a medieval, nos séculos XIII e XIV, e a feroz Inquisição moderna, concentrada em Portugal e Espanha, que durou do século XV ao XIX[1] - o espaço para o debate sobre seus ritos e deveres estiveram presentes de diversas formas, ora de maneira isolada, ora gerando inclusive as chamadas Igrejas Protestantes.

De todo modo, no mundo moderno, atual, tal entendimento se vê suavizado, talvez pelo grande acesso à informação proporcionado pela internet e a possibilidade de se aumentar o leque de opções a quem deseja abraçar uma fé. A Igreja Católica entendeu que deve ter um discurso aderente ao politicamente correto para ser atrativa às novas gerações. O que não impede a que possa sofrer críticas. Mas como esse blog é dedicado a obras literárias, tais críticas se servirão das duas obras a serem avaliadas.

A primeira delas é a Carta Encíclica assinada pelo Papa Francisco: Laudato Si’ (numa tradução livre “Louvado”) – sobre o Cuidado da Casa Comum. A edição a que tive acesso foi 4ª reimpressão da 1ª versão, editada no Brasil pela Paulinas em 2015, contendo 200 páginas. Papa Francisco explica desde o início – ‘Laudato si’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor’, cantava São Francisco de Assis (pág. 3). As Encíclicas procuram, de forma genérica, ensinar sobre um tema doutrinal ou moral, avivar a devoção, condenar os erros ou informar os fiéis sobre eventuais perigos para a fé. Quando tratam de questões sociais, econômicas ou políticas, são dirigidas, normalmente, não só aos católicos mas também a todos os homens e mulheres de boa vontade, prática iniciada pelo Papa João XXIII com a sua encíclica ‘Pacem in terris’ (1963)[2].

Fonte: paulinas.org.br

O Papa Francisco já é conhecido por sua forte pregação de cunho ideológico político desde a época do seu bispado em Buenos Aires. Políticos argentinos foram repetidamente alvo da retórica afiada do sacerdote, acusados por ele de não combater a pobreza e preocuparem-se apenas em seguir no poder[3]. Jorge Mario Bergoglio - seu nome de batismo – sempre manteve hábitos simples. Morava sozinho, em um apartamento no 2º andar do edifício da arquidiocese, ao lado da Catedral de Buenos Aires, na Praça de Maio. Fazia sua própria comida, andava de ônibus e de metrô. As visitas às favelas de Buenos Aires eram frequentes[4]. A proximidade com o povo e suas mazelas é uma característica muito presente na sua conduta, algo que veio a encantar a todos, propiciando o ambiente necessário para referendá-lo como artífice de uma verdadeira revolução interna na Igreja Católica, abrindo espaço para uma reestruturação que sofre resistências até hoje[5].

Feita esta breve apresentação vamos à Encíclica em si. Ela discorre sobre a necessidade de preservarmos o meio ambiente para as futuras gerações. Seria assim uma carta “ecológica”. O planeta Terra – a “Casa Comum” do subtítulo – é objeto desse modo de uma pregação que valendo-se dos preceitos católicos, busca conscientizar o cidadão que ele, como cristão, tem deveres a cumprir para bem manter a casa construída por Deus para todos. Minha visão particular: este debate é realizado diuturnamente por outras autoridades – científicas e leigas – e todos nós já estamos conscientes da necessidade de preservação do meio ambiente. Tenho preferência particular em esperar que o Papa volte seus olhos em suas Encíclicas para temas vinculados mais ao espírito. Mas entendo, pelo seu perfil atuante, que o Papa Francisco não iria – e não irá – se furtar em tocar em outros temas do mundo terreno, sempre ressaltando o modo como o católico pode contribuir para uma sociedade mais igualitária e justa para todos. Não me agrada esse viés político, mas entendo aqueles que veem esse, dada a sua inserção junto à sociedade como Sumo Pontífice, como um baluarte necessário para tocar as consciências de todos.
Papa Francisco
Fonte: https://www.acidigital.com/

O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrá-la em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros. (...) que significado pode ter o mandamento “não matarás”, quando “uns vinte por cento da população mundial consomem recursos em uma medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver” (págs. 78/79 – Laudato Si’).

Dado ser este o perfil do Papa, e as Encíclicas entendidas como obras orientadoras para os Bispos do mundo todo, não me espantou o viés apresentado em “Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade – sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13-14)”. Documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB - http://www.cnbb.org.br/), gerado a partir da 54ª Assembleia Geral realizada em Aparecida, São Paulo, entre 06 e 15 de Abril de 2016, com 188 páginas, foi diretamente influenciado pela retórica e orientações do Papa Francisco. Mais uma vez me vi frustrado na expectativa de identificar uma ênfase na orientação espiritual dos membros do rebanho, em favor da orientação como melhor se organizar para os trabalhos sociais da Igreja. Se fosse somente isso, até vá lá, mas o apoio a uma inserção política das pastorais me incomodou um pouco. Volto a dizer: entendo quem perceba isso como uma necessidade, dada a capilaridade que os representantes eclesiásticos têm perante a sociedade em que vivemos, podendo promover um debate enriquecedor sobre as possibilidades de desenvolvimento dos relacionamentos humanos e em como isso pode gerar uma comunidade melhor resolvida em relação aos seus dilemas. Porém, meu anseio particular, ao ter acesso a tais obras, é uma orientação espiritual.
Fonte: paulinas.org.br

Desde os primórdios da história da salvação, com Abraão, o chamamento de Deus, mesmo quando se dirige a uma pessoa, tem sempre em vista o serviço a todo um povo e, por este povo, a todos os povos, em uma dinâmica universal: “Abraão virá a ser uma nação grande e forte, e nele serão abençoadas todas as nações da terra” (Gn 18,18) – CNBB (págs. 67/68)

Talvez eu acredite mais que, cada um fazendo o seu melhor em prol da sociedade, construiremos algo que pode ter um alcance muito mais elevado do que uma revolução comunitária – parece que estou me repetindo ao já dito em posts anteriores. Porém, abordando uma expectativa enquanto leitor e católico que sou, as obras me decepcionaram por não me darem aquilo o que eu ansiava e que entendo como a razão de ser das religiões – a paz espiritual. São mais uma conclamação à luta, algo típico da Ordem Jesuíta, linha a qual o Papa Francisco está vinculado. Por exemplo, no século XX, após o Concílio Vaticano II e do compromisso dos Bispos da América Latina em 1968 para a "libertação" dos povos, eles insistiram na justiça social e manifestaram em 1975 a sua "opção preferencial pelos pobres". Os jesuítas foram sempre muito ativos na educação, com faculdades e universidades renomadas, incluindo nos Estados Unidos, e na mídia. O porta-voz do Vaticano, o padre Federico Lombardi, é um jesuíta. Eles também diferem desde suas origens, no século das grandes descobertas, por seu ardor missionário. Na América Latina, eles foram os primeiros a distinguir evangelização católica e colonização, respeitando os valores dos índios em suas famosas "reduções"[6]. Seriam assim os “soldados de Cristo”. Pode ser que eu tenha quisto mais paz e menos guerra, e por isso me vi decepcionado. Pode ser.



[1] https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-inquisicao/
[2] http://arqrio.org/noticias/detalhes/3243/o-que-e-uma-enciclica
[3] http://g1.globo.com/mundo/novo-papa-francisco/noticia/2013/03/veja-o-perfil-do-argentino-jorge-mario-bergoglio-o-novo-papa-francisco-i.html
[4] https://www.ebiografia.com/papa_francisco/
[5] https://g1.globo.com/mundo/noticia/por-que-papa-francisco-esta-sofrendo-oposicao-dos-conservadores-da-igreja.ghtml
[6] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2013/03/14/interna_internacional,357056/os-jesuitas-uma-ordem-religiosa-criada-no-seculo-xvi.shtml