quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos

A fama constrói um mito, uma personagem, e empobrece o ser humano. Há exceções.
Pág. 28

A magia do futebol para mim está relacionada a minha formação enquanto ser humano. Todo apaixonado por este esporte deve ter tido este tipo de vivência desde a sua infância. E esta vivência auxiliou na formação do seu caráter, não somente como torcedor, mas também como cidadão.

Portanto, quando pensamos na formação de nossos filhos ou entes queridos, desejamos bons exemplos, pois por intermédio desses eles poderão frutificar. Os bons exemplos que o futebol me deu foram 3 basicamente: a lenda, a fantasia, de que se tudo pode com a união do talento e do planejamento, deificada na seleção de 1970; a valia do bem contra o mal, da arte contra a visão tacanha da vida, a partir da seleção de 1982; e que o paraíso é possível, com o time do Flamengo encabeçado por Zico e toda aquela geração maravilhosa.

Os últimos vinte anos, especialmente após a Copa de 2002, foram de tentativa de conciliação – que persiste até hoje e que nunca vai acabar – entre o estilo de jogo predominante no período de 1954 a 1974, de mais improvisação, habilidade e fantasia, e o dos vinte anos seguintes, de 1974 a 1994, de mais organização, disciplina tática, força física, planejamento e jogadas ensaiadas.
Pág. 113

Dentre os três exemplos por mim elencados acima, apenas um deles eu não acompanhei diretamente, tendo recebido apenas as memórias – eternizadas pela tecnologia do vídeo tape – daquela seleção que brilhou em gramados mexicanos, liderada pelo rei Pelé e todo um grupo maravilhoso de jogadores no seu talento complementar. Se tornou uma lenda, na medida em que lendas são construídas a partir de histórias de heróis das quais só ouvimos falar, mas não participamos diretamente. 


Daquele grupo para mim o grande mistério sempre foi Tostão. Craque de breve existência no meio futebolístico por questões médicas – um descolamento na retina não permitiria que ele continuasse sua carreira. E assim o adolescente e o jovem os quais eu me constituí cresceriam curiosos pela história daquele que havia participado de uma epopeia e havia escolhido para si o recolhimento da carreira médica, sem nunca mais se envolver com aquela magia que deveria ser trilhar os mesmos caminhos dos ídolos do esporte que tantos sonhos embalava Brasil afora.

Tostão era o exemplo do desapego, da humildade então, do brilho intenso, porém fugaz, tal qual um cometa, que depois de sua passagem se afasta, se mesclando com a multidão que a massa escura do universo disfarça. Esse “personagem” se vê desvendado na obra por mim lida recentemente, da própria lavra dele, que a partir do final dos anos 90 voltou ao ambiente esportivo, desta feita como comentarista e cronista, dos melhores e mais imparciais existentes. O livro atende pelo título “Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos – um olhar sobre o futebol”, da Editora Companhia das Letras – 2016 – 198 páginas.

Sou um colunista que tenta escrever de uma maneira concisa, clara e direta. Quando jogava, também era conciso. Às vezes exagero no didatismo e nas explicações óbvias. (...) Há leitores que gostam mais das minhas divagações fora do futebol e outros que gostam mais das minhas explicações técnicas e táticas. Gosto do estilo literário, mas tenho compromisso com a realidade do jogo. Págs. 125-126

Tostão divide o livro entre suas experiências próprias enquanto jogador, tanto do Cruzeiro quanto da Seleção; e a partir do seu olhar da analista do tema, quando assumiu tal posição oficialmente, por uma nova dinâmica de vida. A curiosidade sobre este personagem então vai guiando aqueles que são aficionados do tema. Talvez para leitores que não tenham o futebol como uma das paixões de vida seja uma obra dispensável. Mas para os que realmente gostam, é um deleite. Como crítica, apenas entendo que o capítulo 17 – Não foi por acaso – era dispensável, pois as opiniões por ele ali expostas já tinham ficado claras no decorrer do livro. Mas nada que prejudique o seu todo, até mesmo porque serve como consolidação de seus pensamentos.

Tostão comemorando mais um gol do Brasil durante a
Copa de 1970, no México.
Dois capítulos são de autoria de terceiros – Capítulo 6, “Bebi champanhe na taça Jules Rimet”, do Dr. Roberto Abdalla Moura, oftalmologista que acompanhou a seleção de 70 exclusivamente para lidar com Tostão e sua contusão; e Capítulo 18, “Futebol, ouro e lama”, do jornalista Juca Kfouri, que faz o contraponto entre a genialidade do artista e o meu em que vive. Não atrapalham o ritmo do livro, o que já é uma característica benfazeja. O escrito do Dr. Abdalla traz o sentimento de inveja por ter sido um torcedor privilegiado de última hora. As letras de Kfouri nos dão aquele sentimento de que muito há o que fazer para que o jogo seja considerado realmente limpo. O próprio Tostão tem reservas quanto a este aspecto:

Outro fator importante para a queda de nosso futebol é a relação promíscua que existe entre empresários, investidores, clubes, federações estaduais e a CBF¹. É a troca de favores, uma das pragas da cultura brasileira. Pág. 179

Mas esta não é a principal mensagem. Enfim, Tostão, em meio a toda sua vida, tem pregado pela placidez de encarar o que ela lhe oferece. Oportunidade para vivê-la intensamente nos limites propostos, não de fora para dentro somente, mas também de dentro para fora, tal como aquele que não usa computador até hoje para redigir seus textos, ditados ao telefone para um representante que depois os distribui para os diferentes veículos jornalísticos que os publicam. Desapego, tranquilidade, observação, talento, sagacidade no jogo de palavras e com a bola nos pés. Tempos vividos, sonhados e perdidos, perdidos na medida em que sempre se pode fazer algo melhor, mesmo que se tenha satisfação com o que tenha alcançado.


(1)    CBF = Confederação Brasileira de Futebol, responsável por gerir a Seleção Brasileira e os campeonatos em âmbito nacional, além de representar o futebol de nosso país em foros multilaterais gestores do esporte mundo afora.

domingo, 11 de dezembro de 2016

SOBRE A ESCRITA - A arte em memórias

(...) se você consegue escrever porque sente alegria, vai escrever para sempre.
(pág. 212)

Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. Beba até ficar saciado.
(pág. 229)

Ao me deparar na livraria com a obra “Sobre a Escrita – A arte em memórias”, do escritor norte-americano Stephen King – mais conhecido pelas suas obras ficcionais vinculadas ao terror, sci-fi, fantasia e que tais – fiquei curioso sobre qual seria a trama. Misto de autobiografia e manual de redação, “Sobre a Escrita” apresenta ao leitor King por King no que mais lhe interessa – a arte de escrever.

O autor, num momento de descontração

O livro foi publicado originalmente no ano de 2000. O exemplar o qual tive acesso é uma reedição de 2015, da Editora Objetiva, com 255 páginas, com a devida atualização ao final de uma lista de livros que ele teria lido entre 2000 e 2010. Ele está dividido, grosso modo, em 3 partes – a descrição da vida pregressa de King até se consolidar como escritor, apresentando desse modo as influências recebidas durante esta trajetória; o guia para o futuro escritor, exposto em dois capítulos denominados “Caixa de Ferramentas” e “Sobre a Escrita”; e um post-scriptum, no qual ele narra sua luta por renascer como escritor, “amaciado” pelo atropelamento sofrido e a experiência de quase-morte.

Meu interesse direto estava, então, pautado por duas razões: adoro o escritor Stephen King. E tenho pretensões literárias. Por que não associar os dois desejos numa única obra, colhendo as orientações daquele que considero um dos seres humanos que mais sabe contar uma boa estória, daquela que nos prende até a última página? De quebra, ainda saciaria minha curiosidade sobre a vida do mesmo.

Para o meu gosto como leitor, as partes autobiográficas foram um deleite. Expondo, com seu bom humor característico, acontecimentos, fatos, características e influências, somos brindados com uma leitura leve, que nos faz enaltecer ainda mais o gosto pelo escritor – “(...) todas as orações simples de Hemingway funcionaram bem para ele, não é? Mesmo quando estava bêbado como um gambá, o homem era um gênio” (pág. 108). Seria algo como, ao saber a sua vivência enquanto pessoa, valorizarmos ainda mais o que ele alcançou como mestre das letras – inclusive ele foi professor de redação um determinado período da vida.

No que diz respeito ao que parece ter sido o fator motivador principal do próprio King para escrever a obra – passar adiante o que ele entende como sendo a metodologia correta para se contar uma boa estória – posso falar, sem medo de incorrer em erro, ter sido um dos livros que mais me impactaram na vida. Não tendo feito um curso de redação, “Sobre a Escrita” preencheu tranquilamente esta lacuna em minha vida. A quantidade e qualidade de informações que foram repassadas não somente sobre como passar as ideias para o papel – o modus operandi em si do escritor como criador de uma estória, mas também como lidar com todo o entorno do escritor – local de trabalho, a importância da revisão, escrever como vocação, a trajetória pela publicação, etc – é tão rico que é difícil não ter os olhos abertos para cada passo a ser trilhado.

Talvez a única dificuldade, mas que não impacta sobremaneira ao objeto do livro, seja que sua experiência está atrelada à língua inglesa – e aos autores nativos da mesma. Assim os exemplos e a abordagem utilizados são voltados para aqueles que militam na cultura anglo-saxônica. Porém, sua abordagem pretende-se ser ampla, genérica o suficiente para atender os anseios dos pseudo-escritores oriundos de quaisquer idiomas. O que interessa é a metodologia, mais do que regras gramaticais, que “(...) se você não sabe, é tarde demais” (pág. 107). Para aqueles que não leram alguns dos livros do próprio King existem ainda alguns ligeiros spoilers, mas nada que impedirá o acesso a elas no futuro. Enfim, a impressão é que tive uma aula grátis de alto nível. Agora só resta por as mãos à obra.

As Regras do Rei

Da escrita

- Evite a voz passiva e os advérbios;

            O sujeito tímido escreve “a reunião será realizada às sete horas” porque, de alguma forma, a frase diz a ele “escreva dessa maneira e todos vão acreditar que você realmente sabe”. Livre-se desse pensamento traidor. Não seja um trouxa! Aprume-se, erga o queixo e assuma o controle da tal reunião! Escreva “a reunião será às sete”. É isso, meu Deus do céu! Você está se sentindo melhor, não está? (pág. 109).

            Com os advérbios, o escritor nos diz que tem medo de não se expressar com clareza, de não conseguir passar a mensagem (págs. 110-111).

- Escreva sobre o que você sabe;

            Acho que você deve começar interpretando “escreva sobre o que você sabe” da maneira mais abrangente e inclusiva possível. Se você é encanador, você conhece encanamentos, mas isso está muito longe de ser toda a dimensão de seu conhecimento; o coração também sabe coisas, bem como a imaginação. Graças a Deus. Se não fosse pelo coração e pela imaginação, o mundo da ficção seria terra de ninguém. Talvez nem existisse, na verdade. (...) Muito errado, eu acho, seria dar as costas para o que você conhece e gosta (ou ama, como eu amava as velhas histórias de horror em preto e branco da EC) (pág. 137).

- Descrição;

            A descrição é o que transforma o leitor em um participante sensorial da história. A boa descrição é uma habilidade que se aprende, uma das principais razões pelas quais você não consegue ser bem-sucedido a não ser que leia e escreva muito. (....) Você só vai aprender fazendo. A descrição começa com a visualização do que você quer que o leitor experimente. E termina com a tradução do que você vê em sua cabeça para as palavras no papel. Está longe de ser fácil (págs. 149-150).

- Narração;

            Como em todos os outros aspectos da arte narrativa, você vai melhorar com a prática, mas ela nunca vai levar à perfeição. (...) Pratique a arte, sem se esquecer de que seu trabalho é dizer o que vê, e depois seguir em frente com sua história (pág. 155).

- A construção de personagens;

            O trabalho se resume a duas coisas: prestar atenção ao comportamento das pessoas reais à sua volta e dizer a verdade sobre o que vê. (...) Personagens fictícios são copiados diretamente da vida? Óbvio que não, pelo menos não em todos os detalhes (...). Para mim, o que acontece aos personagens enquanto a história se desenrola depende apenas do que vou descobrindo sobre eles no caminho – em outras palavras, como eles crescem. (...) eu já não acredito tanto no chamado estudo de personagem; acho que, no fim, é sempre a história que comanda (págs. 162-163).

- História x Tema;

            (...) começar com as questões e preocupações temáticas é receita certa para má ficção. A boa ficção sempre começa com a história e progride até chegar ao tema, ela quase nunca começa com o tema e progride até chegar à história. As únicas exceções que consigo pensar para esta regra são alegorias como A revolução dos bichos, de George Orwell (e suspeito que a ideia de história do livro possa ter vindo antes; se algum dia encontrar Orwell no outro mundo, pretendo perguntar a ele) (pág. 178).

- A relativa importância da pesquisa;

            Você pode adorar o que aprendeu sobre bactérias comedoras de carne, o sistema de esgotos de Nova York ou o potencial de QI de filhotes de Collie, mas seus leitores com certeza estarão mais interessados nos personagens e na história. (...) Quando você se afasta da regra “escreva sobre o que você sabe”, a pesquisa se torna inevitável, e pode contribuir muito para a história. Só não deixe que o rabo acabe abanando o cachorro; lembre-se, você está escrevendo um romance, não um artigo acadêmico¹. A história sempre vem em primeiro lugar (págs. 194, 196-197).

Estes acima são pequenos exemplos, pérolas do que King espalha através das páginas de seu livro. O objetivo da ficção [é] fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história... Fazer com que ele esqueça, sempre que possível, que está lendo uma história. Escrever é seduzir. Falar bem é parte da sedução. Se não fosse, por que tantos casais começariam a noite jantando e terminariam na cama? (pág. 118).

Em outros trechos – págs. 126 e 128 principalmente – ele alerta com ênfase na importância de se ler muito para se poder escrever bem e em quantidade. Na verdade, uma fórmula velha conhecida de quem se dedica à literatura, já que é evidente o ganho cultural e de vocabulário propiciado pela leitura constante.

Mais adiante ele ainda aponta para pequenos segredos do sucesso. Um programa de leitura e escrita de 04 a 06 horas por dia, todos os dias (pág. 130); a teoria da porta fechada – o espaço [para a escrita] pode ser humilde e só precisa realmente de uma coisa: uma porta que você possa fechar. A porta fechada é a maneira de dizer ao mundo e a você mesmo que o assunto é sério. Você assumiu o compromisso de escrever! (pág. 135); e o fato de se manter em saúde e ter um bom casamento (pág. 134). Claro que no quesito casamento o que importa mesmo é estar em paz consigo mesmo, na opção de relacionamento que vier a escolher. No caso dele – dado até mesmo o histórico com drogas e o relativo afastamento aos demais membros da família (um irmão e a mãe) – um casamento estável foi fundamental para que pudesse seguir adiante. Ele ressalta ainda que caso o escritor esteja ansioso por publicar, ao invés de perder tempo buscando uma editora poderá iniciar financiando sua própria publicação.

Tabitha e Stephen King
Por último, gostaria de ressaltar que para mim um dos trechos mais relevantes do livro ocorrem entre as páginas 179 e 193. Lá ele retrata toda a importância do processo de revisão da primeira versão, desde o olhar do próprio escritor, passando pela eleição do Leitor Ideal – aquele para o qual você escreve e fica à espera do feedback; no caso de King, a sua esposa, Tabitha King, também escritora; chegando ainda a um grupo seleto de leitores qualificados – editor, amigos, etc, mas não mais que 5 ou 6 pessoas. Seria seu público-teste. Ele inclusive indica uma fórmula mágica – dada a sua preocupação em reduzir o texto, King aponta que o ideal é 2ª versão = 1ª versão – 10% (pág. 190). Óbvio que isto passa por uma revisão qualitativa. Existem coisas às quais não se pode abrir mão. Mas também existem outras que se encaixam na arte do desapego. Longas histórias de vida são mais bem-recebidas em um balcão de bar, e só quando falta uma hora ou menos para fechar, e só quando você está pagando (pág. 193). Boa sorte! Boa leitura, e porque não dizer, boa escrita!

OBS.: existe um pequeno detalhe que me incomodou: a edição brasileira coloca tanto a versão em Inglês quanto em Português, entre as páginas 231 e 248, da revisão de um trecho da obra que depois viria a ser conhecida como “1408”, inclusive gerando mais uma dentre as tantas adaptações cinematográficas para os produtos de King, em 2007, com John Cusack no papel central, tendo como coadjuvante Samuel Lee Jackson. Acho que poderia se ater à versão em Português – a não ser que você seja um fã alucinado que tenha prazer em ler o original para depois ler também a tradução!


(1)   No que diz respeito à importância da pesquisa tenho a impressão que J.J. Benítez e a série Cavalo de Troia – ótima, por sinal -  não seguem o preceito pregado por King.