A fama constrói um mito, uma personagem, e
empobrece o ser humano. Há exceções.
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A
magia do futebol para mim está relacionada a minha formação enquanto ser
humano. Todo apaixonado por este esporte deve ter tido este tipo de vivência
desde a sua infância. E esta vivência auxiliou na formação do seu caráter, não
somente como torcedor, mas também como cidadão.
Portanto,
quando pensamos na formação de nossos filhos ou entes queridos, desejamos bons
exemplos, pois por intermédio desses eles poderão frutificar. Os bons exemplos
que o futebol me deu foram 3 basicamente: a lenda, a fantasia, de que se tudo
pode com a união do talento e do planejamento, deificada na seleção de 1970; a
valia do bem contra o mal, da arte contra a visão tacanha da vida, a partir da
seleção de 1982; e que o paraíso é possível, com o time do Flamengo encabeçado
por Zico e toda aquela geração maravilhosa.
Os últimos vinte anos, especialmente após a Copa de
2002, foram de tentativa de conciliação – que persiste até hoje e que nunca vai
acabar – entre o estilo de jogo predominante no período de 1954 a 1974, de mais
improvisação, habilidade e fantasia, e o dos vinte anos seguintes, de 1974 a
1994, de mais organização, disciplina tática, força física, planejamento e
jogadas ensaiadas.
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Dentre
os três exemplos por mim elencados acima, apenas um deles eu não acompanhei
diretamente, tendo recebido apenas as memórias – eternizadas pela tecnologia do
vídeo tape – daquela seleção que brilhou em gramados mexicanos, liderada pelo
rei Pelé e todo um grupo maravilhoso de jogadores no seu talento complementar.
Se tornou uma lenda, na medida em que lendas são construídas a partir de
histórias de heróis das quais só ouvimos falar, mas não participamos
diretamente.
Daquele
grupo para mim o grande mistério sempre foi Tostão. Craque de breve existência
no meio futebolístico por questões médicas – um descolamento na retina não
permitiria que ele continuasse sua carreira. E assim o adolescente e o jovem os
quais eu me constituí cresceriam curiosos pela história daquele que havia
participado de uma epopeia e havia escolhido para si o recolhimento da carreira
médica, sem nunca mais se envolver com aquela magia que deveria ser trilhar os
mesmos caminhos dos ídolos do esporte que tantos sonhos embalava Brasil afora.
Tostão
era o exemplo do desapego, da humildade então, do brilho intenso, porém fugaz,
tal qual um cometa, que depois de sua passagem se afasta, se mesclando com a multidão
que a massa escura do universo disfarça. Esse “personagem” se vê desvendado na
obra por mim lida recentemente, da própria lavra dele, que a partir do final
dos anos 90 voltou ao ambiente esportivo, desta feita como comentarista e
cronista, dos melhores e mais imparciais existentes. O livro atende pelo título
“Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos – um olhar sobre o futebol”, da Editora
Companhia das Letras – 2016 – 198 páginas.
Sou um colunista que tenta escrever de uma maneira
concisa, clara e direta. Quando jogava, também era conciso. Às vezes exagero no
didatismo e nas explicações óbvias. (...) Há leitores que gostam mais das
minhas divagações fora do futebol e outros que gostam mais das minhas
explicações técnicas e táticas. Gosto do estilo literário, mas tenho
compromisso com a realidade do jogo. Págs. 125-126
Tostão divide o livro entre suas experiências próprias
enquanto jogador, tanto do Cruzeiro quanto da Seleção; e a partir do seu olhar
da analista do tema, quando assumiu tal posição oficialmente, por uma nova
dinâmica de vida. A curiosidade sobre este personagem então vai guiando aqueles
que são aficionados do tema. Talvez para leitores que não tenham o futebol como
uma das paixões de vida seja uma obra dispensável. Mas para os que realmente
gostam, é um deleite. Como crítica, apenas entendo que o capítulo 17 – Não foi
por acaso – era dispensável, pois as opiniões por ele ali expostas já tinham
ficado claras no decorrer do livro. Mas nada que prejudique o seu todo, até
mesmo porque serve como consolidação de seus pensamentos.
Tostão comemorando mais um gol do Brasil durante a Copa de 1970, no México. |
Dois
capítulos são de autoria de terceiros – Capítulo 6, “Bebi champanhe na taça
Jules Rimet”, do Dr. Roberto Abdalla Moura, oftalmologista que acompanhou a
seleção de 70 exclusivamente para lidar com Tostão e sua contusão; e Capítulo
18, “Futebol, ouro e lama”, do jornalista Juca Kfouri, que faz o contraponto
entre a genialidade do artista e o meu em que vive. Não atrapalham o ritmo do
livro, o que já é uma característica benfazeja. O escrito do Dr. Abdalla traz o
sentimento de inveja por ter sido um torcedor privilegiado de última hora. As
letras de Kfouri nos dão aquele sentimento de que muito há o que fazer para que
o jogo seja considerado realmente limpo. O próprio Tostão tem reservas quanto a
este aspecto:
Outro fator importante para a queda de nosso futebol é
a relação promíscua que existe entre empresários, investidores, clubes,
federações estaduais e a CBF¹. É a troca de favores, uma das pragas da cultura
brasileira.
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Mas
esta não é a principal mensagem. Enfim, Tostão, em meio a toda sua vida, tem
pregado pela placidez de encarar o que ela lhe oferece. Oportunidade para vivê-la
intensamente nos limites propostos, não de fora para dentro somente, mas também
de dentro para fora, tal como aquele que não usa computador até hoje para
redigir seus textos, ditados ao telefone para um representante que depois os distribui
para os diferentes veículos jornalísticos que os publicam. Desapego,
tranquilidade, observação, talento, sagacidade no jogo de palavras e com a bola
nos pés. Tempos vividos, sonhados e perdidos, perdidos na medida em que sempre
se pode fazer algo melhor, mesmo que se tenha satisfação com o que tenha
alcançado.
(1)
CBF
= Confederação Brasileira de Futebol, responsável por gerir a Seleção
Brasileira e os campeonatos em âmbito nacional, além de representar o futebol
de nosso país em foros multilaterais gestores do esporte mundo afora.