Os
escritores, assim como os músicos, recebem influências a todo momento,
influências estas que são transportadas diretamente para o teor de sua obra. Quando
os samplers viraram moda, muitos
foram os músicos que buscaram em suas raízes o redesenho, uma releitura, de
determinadas músicas, abusando algumas vezes até de trechos inteiros de suas
obras originais, literalmente.
A
primeira impressão que temos ao ler “As Regras da Casa de Sidra”, de John
Irving (Ed. Rocco, 2013, 671 páginas) é justamente esta. Não somente pelo
estilo, mas como também, de certa maneira, o autor assume por diversas vezes no
decorrer da estória obras e autores que estiveram presentes em sua mente quando
a criou:
Dickens era um favorito pessoal do Dr. Larch; não
era por acaso, é claro, que tanto Great Expectations quanto David Copperfield
falassem de órfãos. (“O que mais se poderia ler para um órfão?”, indagou o Dr.
Larch em seu diário.)
– pág. 39
O
estilo detalhista e rebuscado de Dickens se faz presente a todo momento. Mais a
frente outra autora – Emile Brönte e sua obra, Jane Eyre, também é citada – porém, de uma verve muito parecida. Muito
provavelmente o tema central do livro – o desabrochar para a vida de um órfão –
tenha sido a centelha que fez reavivar em Irving tais referências.
Especificamente
em relação ao livro, vencer a sua primeira metade exige do leitor um
entendimento de que o vagar na narrativa serve a um propósito: a dar todo o
entorno para uma aceleração de embate existencial dos seus personagens centrais
na sua segunda metade. Dessa forma, há que se ter paciência e entender este
universo, o que não é nada fácil para um livro de mais de 600 páginas, devo
confessar.
Homer
Wells é o menino mais velho de um orfanato localizado no interior dos Estados
Unidos – Saint Cloud é o nome da instituição. Ele vive o dilema entre ter sido
treinado com zelo pelo médico e administrador principal, Dr. Larch, na prática
do aborto consentido, e sua paixão pela vida. Anseia sair daquele casulo para
então encontrar um verdadeiro sentido para sua vida.
No
desenrolar da estória, após identificar o que entende ser uma possível saída
junto a uma família proprietária do negócio de produzir maçãs – daí a menção à
Casa de Sidra – descobre um outro dilema – como amar, sem culpa, aquela mulher
do seu “irmão” postiço, que para complicar um pouco mais a equação, também
demonstra um bem querer em relação a ele.
Tais
dilemas apontam claramente para o que foi a traduzido de maneira fiel no título
do filme gerado a partir dessa obra: “Regras da Vida”, tendo Tobey Maguire e
Charlize Theron nos papéis principais (é fácil imaginar Maguire – mais conhecido
pelo papel de Peter Parker, alter ego do Homem-Aranha, na trilogia
anteriormente desenvolvida pela Marvel – vivendo o papel de Homer Wells). Enfrentamos
“dilemas” durante toda nossa vida porque estamos presos às regras estabelecidas
pelo convívio em sociedade, na comunidade em que vivemos. Se tais regras não
existissem – ou se não as aceitássemos abertamente – tais dilemas não
existiriam.
John Irving ao ganhar o Oscar por roteiro adaptado para sua obra "The Cider House Rules"
Muito
do inconformismo do ser humano está ligado a querer caminhar para a esquerda
quando todos caminham para a direita. Irving, com sua obra, demonstra a
construção da personalidade se dá através de uma árdua caminhada que tem muitas
esquerdas e direitas, e que não necessariamente a escolha perante uma
determinada encruzilhada significa que você fugiu ao seu destino. Apenas
escolheu uma trajetória mais longa, mas o destino estará lá, te esperando.
Tais
escolhas é que fazem da nossa vida uma cesta intensa de emoções. Se escolhemos
um determinado caminho e este se apresenta extremamente repleto de aventuras,
não significa que não as teremos quando optamos pelo outro lado, que a
princípio pode se mostrar monótono, mas é apenas uma etapa a ser vencida rumo a
novos e intensos sentimentos. O que nós não podemos é fazer com que as regras
impostas sejam barreiras para as nossas melhores escolhas.
Michael Caine como Dr. Wilbur Larch e Tobey Maguire como Homer Wells
O
personagem do Dr. Larch – mentor intelectual de Wells – na primeira parte do
livro, representa, de uma certa forma esse ideário. Seu jargão principal era
que todos “deviam ser de utilidade” para a sociedade. Mesmo que esta sociedade
não entenda o papel que você está exercendo. Ele cria suas próprias regras para
isso, não se importando com as leis e costumes da comunidade em que está
inserido, porque está convicto de que está fazendo o bem a ela própria.
A
mensagem que fica, portanto, está montada no seguinte tripé: o amor pelo
próximo acima de tudo / fazer o bem a todos, mesmo que estes não compreendam
suas atitudes / as regras são úteis, desde que não sejam fonte limitadora da
liberdade de opções na definição pelo melhor para as nossas vidas. E aí, vai
encarar?
OBS.: vale a pena, caso você esteja numa livraria
com a possibilidade de folhear o livro, ver o inconformismo de Larch com o que
a sociedade faz a si mesmo e o seu didatismo, levando-o a escrever 4 regras
básicas para o uso de preservativos – págs. 456-457. Um momento hilário em meio
a uma revolta.