terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Cada Dia Mais Perto

O ser humano é por natureza um curioso. Este traço característico de nossa espécie é um dos fatores que levaram a nossa evolução, até o domínio das diferentes técnicas que proporcionaram, por sua vez, estarmos, para o bem e para mal, no leme condutor dos rumos de nosso planeta.

Porém, este mesmo traço tem um lado vil, que é quando a curiosidade se presta a mera fofoca. Por outro lado, não seria este – a volúpia pelo comentário sobre a vida alheia – também uma característica indissociável do ser humano? Mesmo aqueles que não a praticam não estariam indo contra sua própria natureza?

Essa introdução um tanto errática está diretamente vinculada a eu não saber como classificar a obra de Irvin Yalom, Cada Dia Mais Perto – Ed. Agir – Rio de Janeiro – 2010 – 296 págs. Yalom é um conhecido psiquiatra norte-americano que criou toda uma bibliografia, entre ficção e não-ficção, em torno dos casos terapêuticos por ele tratados. Como diria meu próprio terapeuta, é uma nova classe literária anteriormente inexistente. Do mesmo autor eu já tinha lido – e comentado – Quando Nietzsche Chorou e O Enigma de Espinosa.

Meu terapeuta – acima já mencionado – propôs como um bom exercício de leitura e compreensão do processo da terapia em si, assim como de tudo que lhe envolve, navegar pelo mundo dos escritos de Yalom. Feita esta proposta adquiri 4 livros distintos de uma vez só, triplicando o número de volumes do referido escritor sob minha posse. Resolvi então lê-los por ordem cronológica de criação e edição original. Desta forma poderia não apenas observar o desenvolvimento do autor enquanto escritor como também de sua filosofia de trabalho.

Esta obra – Cada Dia Mais Perto - foi escrita em conjunto com uma de suas pacientes, apresentadas pelo pseudônimo de Ginny Elkin, e foi primeiramente redigida em 1974, quando Yalom tinha 39 anos. Como proposta de terapia, tendo em vista ela ser uma escritora que sofria de um bloqueio para sua produção literária, pautada nas agonias pregressas que ela própria cultivava em relação à si mesma, “apresentando um comportamento atormentado, autodepreciativo e submisso”, Yalom sugeriu que ambos escrevessem, isoladamente, suas impressões após cada uma das sessões. Passados alguns meses eles trocariam mutuamente seus escritos, de modo a otimizar o auto-conhecimento do processo, buscando algum tipo de avanço. O livro trata, então, da publicação destes escritos, tal qual como foram feitos originalmente.

Yalom confessaria que este processo, além de ser produtivo para a paciente, serviria para que ele próprio alçasse de maneira mais sólida voos literários, testando a si próprio enquanto escritor. Minha curiosidade enquanto leitor foi então aguçada por diferentes canais: o que pretendia meu terapeuta? Eu perceberia uma melhora em minhas atitudes a partir da experiência que seria exposta no livro? O livro em si, enquanto obra literária, é bom ou ruim? E como se deu tal experiência? Foi proveitosa para ambas as partes: o terapeuta e a paciente? E como cada um se manifestou e desenvolveu sua escrita?

Portanto, nesta crítica que a partir de agora faço neste post, algumas das perguntas permanecerão para os demais livros. Outras irão se ater a cada uma das obras. A pretensão do meu trabalho terapêutico – e digo meu, pois se tem uma coisa que aprendi é que esse é um processo conjunto, de construção de um relacionamento mútuo de confiança – seria aproveitar um instrumento – livros – ao qual tenho muito apreço, otimizado pelo fato do autor ser de boa lavra, para que eu aumentasse meu auto-conhecimento. De cara a primeira lição que absorvi foi a humanização do terapeuta. Todo paciente tem pelo seu especialista um sentimento de endeusamento. Ou pelo menos uma expectativa de que ele será o vetor de todas as soluções de sua vida. Porém, essa atitude acaba se revelando falha para o processo, pois não enxergamos o ser humano que está ali para nos escutar, absorver as informações, degluti-las e nos devolvê-las num formato, digamos, mais inteligível, no sentido de que a partir do momento em que as apreendemos por um outro olhar, poderemos trabalhar melhor nossa reação às mesmas. Isto pode ser considerado uma melhora, acredito. Com isso estariam respondidas as duas primeiras perguntas. Mas ainda acredito que existe um algo mais nas obras de Yalom. Isso ficará mais claro nos demais posts.

Em relação a Cada Dia Mais Perto ser uma boa obra literária, eu, que já tinha lido outros dois livros anteriormente, posso lhes dizer que deixa a desejar, apesar de prender a atenção – mais pela curiosidade por mim acima explanada do que pela qualidade em si. Entre os dois textos majoritariamente presentes (acaba por surgir um terceiro autor na “trama”), considerei o de Yalom mais consistente e atrativo. O de Ginny era mais complexo, confuso, não tinha uma linearidade que por vezes complicava sua compreensão. Uma diferença percebida por ambos foi o modo como tratavam o seu interlocutor em seus escritos. Enquanto Yalom usava a 3ª pessoa, Ginny, a paciente, parecia querer tecer uma segunda sessão, um segundo diálogo, com o terapeuta, chamando-o por “você”. Abaixo transcreverei dois trechos de início dos respectivos relatos, para que possam perceber a diferença de estilo:

Yalom

09 de Outubro

Ginny veio hoje, o que significa, no seu caso, que está em relativa
boa forma. Suas roupas não têm remendos, seus cabelos provavelmente foram escovados, seu rosto parece menos decomposto e bem mais distinto. Com certo embaraço, ela descreveu com minha sugestão de pagasse pelas sessões com relatórios escritos em vez de dinheiro dera-lhe um novo impulso na vida. Inicialmente tinha ficado orgulhosa, mas em seguida conseguiu reduzir seu otimismo, fazendo piadas sarcásticas sobre si mesma para outras pessoas. (pág. 27/)

Ginny

09 de Outubro

Deve haver um meio de falar sobre essas sessões que não seja repetindo exatamente o que aconteceu e mesmerizando a mim mesma e a você. Eu tinha criado expectativas, mas me concentrei principalmente na ideia de mudança de horário. Comecei e acabei a sessão com este pensamento ocupando a minha mente. Com inquietação, e não sentimento. (pág. 29)

Percebe-se um contraponto entre objetividade por parte do terapeuta, na busca por caminhos, pistas, que indicassem um indicativo de um campo a ser trabalhado em busca da “cura”; enquanto a paciente, Ginny, trabalha mais a subjetividade, o sentimento inserido no relacionamento entre os dois. É importante ressaltar que não existe um certo ou errado na comparação entre os dois estilos. É apenas como ambos expressam o modo de atingir o mesmo objetivo, a aproximação de visões que propiciaria a alta. O título do livro já remete a esta meta – Cada Dia Mais Perto – inspirada numa música de Buddy Holly (Everyday – letras abaixo), sugerido pela Ginny. Yalom preferia A Twice-Told Therapy, mais uma vez demonstrando a diferença de visões. A abordagem poética da paciente acabou por prevalecer.

Enfim, teria sido alcançado o intento proposto por Yalom para ambos? Aí, somente lendo para que saibam. Importante ressaltar que existem posfácios escritos pelos dois, em separado, outra isca para a curiosidade humana. Para os leitores já conhecedores da obra de Yalom fica a impressão que ele estava realmente numa fase prematura da escrita, que veio a melhorar posteriormente. Para Ginny, a vida seguiu, como deve ser, com ganhos e perdas.

Everyday, it's a gettin' closer,
Goin' faster than a roller coaster,
Love like yours will surely come my way, (hey, hey, hey)
Everyday, it's a gettin' faster,
Everyone says go ahead and ask her,
Love like yours will surely come my way, (hey, hey, hey)
Everyday seems a little longer,
Every way, love's a little stronger,
Come what may, do you ever long for
True love from me?
Everyday, it's a gettin' closer,
Goin' faster than a roller coaster,
Love like yours will surely come my way, (hey, hey, hey)
Everyday seems a little longer,
Every way, love's a little stronger,
Come what may, do you ever long for
True love from me?


quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

PROPRIEDADE INTELECTUAL E RELAÇÕES INTERNACIONAIS NOS GOVERNOS FHC E LULA

Obras baseadas em dissertações de Mestrado, teses de Doutorado, ou seja, quaisquer produtos acadêmicos correm sempre o risco de ser um regalo para um determinado nicho objetivado, porém algo considerado como uma black box para os não iniciados. E, portanto, de difícil absorção pelo público em geral. Trata-se de algo natural, dado que os trabalhos acadêmicos têm que obedecer a uma determinada rigidez, pois seu fim prático primeiro é o de ser a demonstração pelo autor do conhecimento absorvido e da geração de sua contribuição para o mundo científico ao qual ele se propôs ser um dos membros.

O livro o qual será objeto de nossa análise neste post sofre de tal característica, o que não retira em nada sua importância para a meta a que se propôs. Trata-se da obra de autoria de Carlos Maurício Ardissone, intitulada Propriedade Intelectual e Relações Internacionais nos Governos FHC e Lula – os rumos das negociações globais e das políticas públicas – Ed. Appris – Curitiba, PR – 2014 – 325 págs.. Como dito anteriormente, ela entrega o que se propõe. Porém seria tal entrega suficiente para almejar voos mais altos? A depender da altura ambicionada, alguns ajustes deverão ser realizados.

Ardissone inicia sua obra, que tem como base sua tese de Doutorado apresentada perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) com uma ampla explanação sobre a base teórica em que está assentada. O Capítulo 1 – Aspectos Teóricos: ideias, instituições e lideranças na formulação de políticas públicas – ocupa pouco mais de 1/3 do livro. Temos a exata noção de que esta porta de entrada é absolutamente necessária para o meio acadêmico, dado que se traduz para uma banca examinadora que o candidato a Doutor possui todas as ferramentas para analisar seu objeto de estudo. Um exemplo de tal discurso:

Por conta disso, a literatura desenvolveu e sofisticou cada vez mais abordagens para tratar dos elementos cognitivos que incidem sobre a formulação de políticas. Conceitos diversos foram formulados – como os de “imagens”, “mapas cognitivos”, “sistema de crenças”, “códigos operacionais” e “lições do passado” – todos com a preocupação central de compreender a “brecha” existente entre a realidade, supostamente “objetiva”, do ambiente operacional e a representação “subjetiva” na mente do tomador de decisão. A esse conjunto de abordagens, a literatura costuma se referir como abordagem cognitiva das Relações Internacionais (DE MELLO E SILVA, op. Cit., p. 143). Veja-se, pois, como, a partir da crítica cognitiva ao modelo do ator racional, o conceito de “ideia” impregnou-se na Análise de Política Externa.
(pág. 42).

Mas, o leitor, quando atraído na estante da livraria, se remete imediatamente ao tema proposto no título do livro – Propriedade Intelectual e Relações Internacionais nos Governos FHC e Lula. A colocação dos nomes de Presidentes de tal envergadura histórica na capa traz em seu bojo a geração de uma grande expectativa pelo adquirente da obra. E tal somente vem a ser abordada após ultrapassar, ainda que necessário, o 2º capítulo – O regime internacional de Propriedade Intelectual do Acordo TRIPs: um chute na escada do desenvolvimento. Assim sendo, chegamos à metade do livro com o leitor ávido por entrar no tema proposto no título! De todo modo, este segundo capítulo não pode ser ignorado, uma vez que ele apresenta o cenário internacional em que as diretrizes da Política Externa Brasileira serão inseridas a partir dos capítulos 3 e 4. Como, por exemplo, quando ele cita os limites do alcance que a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), agência especializada das Nações Unidas, apresentou em determinado momento histórico para os interesses dos países desenvolvidos, o que motivou a guinada dos debates sobre a estrutura jurídica internacional sobre os Direitos de Propriedade Intelectual em direção à Organização Mundial do Comércio (OMC), via o acordo TRIPs – Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual ligados ao Comércio, um dos constitutivos daquela organização:

Um dos obstáculos para os Estados Unidos atingirem seus objetivos era a percepção de não ser possível reformar o regime internacional de propriedade intelectual por intermédio da OMPI, uma vez que, nesta organização, os Estados Unidos só possuíam um voto e era bastante provável ser sobrepujado pelos países em desenvolvimento.
Pág. 131

O que eu quero dizer com isso tudo: Ardissone se apresenta como um autor essencial para quem busca se aprofundar no estudo dos dois períodos por ele indicados – Governos FHC e Lula – na seara proposta – políticas de Propriedade Intelectual e sua influência nas Relações Internacionais. Seu estudo tem uma base teórica sólida, alcança detalhes que demonstram que a pesquisa foi valorosa em termos quantitativos e qualitativos ao se observar os dados coletados. As conclusões que expõe demonstra a busca pelo equilíbrio do pesquisador, em ser isento, mesmo diante de paradoxos em relação às suas possíveis crenças pessoais – no texto não se percebe, de maneira clara, qual é o viés político do autor, o que não deixa de ser uma qualidade num texto acadêmico, voltado mais ao debate das ideias e conceitos:

Na formulação da política externa, o processo de aprendizado social em que a diplomacia brasileira viu-se envolvida contribuiu para o governo brasileiro dar continuidade e aprimorar algumas políticas do Governo Fernando Henrique Cardoso, como se verificou na questão da licença compulsória do Efavirenz, em 2007. As experiências acumuladas nos contenciosos na OMC favoreceram também estratégias mais ofensivas, como no caso da retaliação cruzada, em 2010. Mas elementos importantes de mudança também podem ser identificados na postura mais afirmativa e contestadora das regras do regime internacional de propriedade intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. A “Agenda para o Desenvolvimento” reflete este novo padrão de inserção.
Pág. 300

Por fim, caso o autor almeje que a obra alcance um público mais vasto (ou seria melhor dizer, popular!?), terá que repensar uma nova edição na qual principalmente o primeiro capítulo seria ou suavizado ao até mesmo suprimido, de modo a poupar os leitores não-iniciados de um texto por demais filosófico. Eles querem ver sangue, as entranhas motivadoras das decisões! Ardissone nos brinda com cultura sobre Relações Internacionais com maestria, mas isto aos olhos de um leitor menos afeito a matéria soa como um longo discurso antes de um jantar tão ansiado.

Citações e Glossário

DE MELLO E SILVA, Alexandra (1998) – Ideias e Política Externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU – In: Revista Brasileira de Política Internacional – 41(2) – págs. 139-158

Caso Efavirenz – “A recente decisão do governo brasileiro de aplicar licença compulsória ao Efavirenz respeita as regras nacionais e internacionais, inclusive o Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, sigla em inglês) da OMC. A medida é histórica e inédita na América Latina, embora já tenha ocorrido em outros países como Canadá, Tailândia e Itália, inclusive em relação a medicamentos da própria Merck10. A decisão do governo foi o desfecho de uma longa negociação com o laboratório e foi tomada com responsabilidade, sem desrespeito às legislações nacionais e internacionais em vigor. Foram vários os fatores que influenciaram a decisão do Poder Executivo de emitir a licença compulsória do Efavirenz: a inflexibilidade do laboratório em rever seus preços para o mercado brasileiro; o desgaste da licença compulsória como instrumento de pressão (fato que restou evidente ao observar-se as negociações de 2005); e a pressão da sociedade civil brasileira, sobretudo de grupos ligados à saúde e aos direitos humanos”.

Retaliação Cruzada - Diante do descumprimento da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) por parte dos Estados Unidos da América (EUA) no caso do algodão, este órgão da Organização Mundial do Comércio (OMC) autorizou a aplicação da retaliação cruzada pelo Brasil. Nesse sentido, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) abriu recentemente consulta pública sobre as medidas que o Brasil poderá tomar na área de propriedade intelectual. Esse quadro representa um teste para a OMC, que pode ver sua legitimidade ameaçada caso os EUA ignorem suas regras e incentivos para o cumprimento destas. A retaliação cruzada pode – e deve ser feita quando se estabelece que a suspensão de concessões no mesmo setor não será eficaz ou quando for mais prejudicial ao país autorizado a estabelecer tais normas. Se o aumento do imposto de importação de alguns bens oriundos dos EUA for mais desfavorável do que positivo para o Brasil, este país tem o direito de suspender concessões e obrigações no setor de propriedade intelectual, isto é, deixar de pagar por direitos de patentes e direitos autorais. Fonte: http://www.ictsd.org/bridges-news/pontes/news/riscos-e-oportunidades-na-retalia%C3%A7%C3%A3o-cruzada-em-propriedade-intelectual – de 21 de Abril de 2010.

Agenda para o Desenvolvimento - A Agenda de Desenvolvimento, proposta por Argentina e Brasil em 2004, visa a tornar o desenvolvimento elemento crucial em todas as negociações levadas a cabo na OMPI e na determinação de políticas de proteção à propriedade intelectual em geral. De acordo com o Grupo de Amigos do Desenvolvimento (GAD) - Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, Equador, Egito, República Islâmica do Irã, Quênia, Peru, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia, Uruguai, Venezuela e República Dominicana, a OMPI, enquanto agência da Organização das Nações Unidas (ONU) deveria pautar-se, completamente, pelos amplos objetivos de desenvolvimento que a ONU fixou para si mesma, em particular, pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e levar em conta todas as disposições pró-desenvolvimento do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, sigla em inglês) e subseqüentes decisões do Conselho do TRIPs, como a Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública de 2001. Argentina e Brasil tomaram a iniciativa de lançar a Agenda de Desenvolvimento em 2004, e a proposta foi, rapidamente, apoiada por 13 países em desenvolvimento (PEDs).


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Guia Politicamente Incorreto da América Latina

O que um guia se propõe? Orientar seu usuário rumo ao caminho correto. Este caminho pode ser simplesmente o destino geográfico de uma determinada viagem. Mas também pode ser a formação de corações e mentes sobre um determinado tema.

A série de Guias Politicamente Incorretos, que versa sobre diversos temas, tem como mote central descontruir “guias” intelectuais introjectados pelos leitores com o passar do(s) tempo(s). Ou seja, seria uma quebra de paradigmas.

Este ato de “quebrar paradigmas” pressupõe que aqueles que o propõem possuem uma visão distinta do status quo. Ou seja, eles representam uma facção rebelde em relação ao pensamento vigente. Esta ação leva, obviamente, a uma contrarreação dos pensadores – ou do grupo que os representa – no sentido de não verem seu quinhão tão duramente conquistado com o passar dos anos abalado por teses diversionistas.

Toda essa balela acima, a meu ver, cai por terra se todos adotassem uma prática muito simples: o leitor voraz, assíduo, aquele que o que lhe cai à mão já vai dando uma olhada, desde bula de remédio até os diários de um ex-Presidente da República, tem que ter em seu coração a seguinte máxima – o escritor é um ser humano como outro qualquer, com ideias e desejos. Portanto, ele os expõe, mesmo que subliminarmente, em quaisquer textos que venha a propor ao leitor. Cabe ao leitor, portanto, ciente de tal fato, dar o devido desconto e ter um juízo crítico sobre tudo que lhe chega.

A obra a qual vamos analisar – Guia Politicamente Incorreto da América Latina – Leandro Narloch e Duda Teixeira – Editora Leya – 2011 – 336 páginas – cai justamente neste conjunto – desconstrutivistas, mas há que se observar, como eles próprios indicam logo no início – ver citação abaixo - que têm uma visão particular sobre o tema. A desconstrução feita pelos dois autores dos mitos latino-americanos é sólida. Ambos jornalistas, ambos com passagem pela Revista Veja*, ambos com trabalhos de pesquisa jornalística sobre o tema em questão (Narloch como editor da revista Aventuras na História e Teixeira com um amplo trabalho investigativo na região), ambos seres humanos.

O que eu quero dizer com isto? Os que militam por suas teses, e que sempre almejaram a desconstrução dos mitos por eles evocados – Che Guevara, Povos Andinos da Antiguidade (Astecas, Incas, Maias), Simón Bolívar, a história do Haiti e seus senhores negros, Perón e Evita, Pancho Villa e Salvador Allende – se regozijarão com a qualidade e a quantidade do material levantado. Bibliografia vasta e argumentos contundentes contrários à imagem cultivada em torno de cada uma dessas figuras. O recado é claro e bem dado. Quem não for partidário de tais teses, que pelo menos leia o livro para ter acesso aos argumentos contrários para o qual irá se bater. Com a palavra os autores. Depois lhes darei pequenas pílulas que eles apresentaram em sua obra:


Não nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados líderes andinos e suas roupas coloridas. Não há aqui destaque para veias abertas do continente, mas para feridas devidamente  tratadas e curadas com a ajuda de grandes potências. Conhecemos bem as tragédias que nossos antepassados índios e negros sofreram, mas, honestamente, estamos cansados de falar sobre elas. E acreditamos que todos os povos passaram por desgraças semelhantes, inclusive aqueles que muitos de nós adoramos acusar. Por isso, quando vítimas da história aparecerem nesta obra, é para revelarmos que elas também mataram e escravizaram – e como elas se beneficiaram com ideias e costumes vindos de fora. (...) Não importam as tragédias que Salvador Allende, Che Guevara e Juan Perón tenham tornado possíveis. Importantes são o carisma, o rosto fotogênico, a morte trágica, os discursos inflamados contra estrangeiros. Por isso, não há como escapar: é ele, o falso herói latino-americano, o principal alvo deste livro.
Páginas 19-20.

Pílulas

Che defendeu a prisão de roqueiros e trabalhadores preguiçosos.

Ninguém matou tantos por nada quanto os astecas.

Pancho Villa foi um latifundiário cruel.

Allende perseguiu a imprensa chilena e aliou-se a terroristas cubanos.

Narloch em debate em Recife, por ocasião
da FLIPorto (2011)
com o escritor e biógrafo, dito de esquerda,
Fernando Morais.
Fonte: Diário de Pernambuco**
Milhares de índios festejaram a vitória dos espanhóis sobre os incas.

Simon Bolívar queira evitar que pobres e negros assumissem o governo.

Os revolucionários negros do Haiti se tornaram reis. Escravistas.

Perón admirava os nazistas – e meninas de 13 anos.

Para fechar, gostaria de ressaltar um trecho colocado ainda no capítulo inicial sobre Che Guevara. Trata-se do discurso do economista austríaco Ludwig von Mises, numa de suas conferências no fim de 1958, em Buenos Aires, de como algo que deveria ser seguido no tratamento das ideias, quaisquer que sejam elas, contrário ao que foi aparentemente proposto pelo revolucionário argentino, e que para mim é o maior e mais belo recado do livro:

Ludwig von Mises
Liberdade significa realmente liberdade de errar. Podemos ser extremamente críticos com relação ao modo como nossos concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras de manifestar suas opiniões sobre como seus concidadãos deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros; escrever artigos; fazer conferências. Podem até fazer pregações nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer que as pessoas tenham a liberdade de fazê-las.
Pág. 72.


* Nas palavras de Claudio de Moura Castro, colunista da supracitada revista, ao comentar sobre os leitores que o abordam contrário às ideias que expõe: “Não querem se conspurcar em uma revista de direita?” – Veja, 18 de Novembro de 2015 – edição 2452, ano 48 – nº 46 – pág. 18.

** Para mais detalhes sobre este debate ver http://www.old.diariodepernambuco.com.br/nota.asp?materia=20111114133503 . Uma pequena amostra: "Narloch chegou a ser vaiado pela plateia ao citar uma frase atribuída a Nelson Rodrigues ("socialistas com mais de 40 anos de idade não têm cérebro"). Morais também foi repreendido pelo público ao acender um charuto em ambiente fechado. Ao se defender, lembrou que a Fliporto é patrocinada pela Sousa Cruz. Os dois entraram em confronto de ideias o tempo inteiro. Enquanto Leandro afirmava qua o capitalismo é a melhor coisa para os pobres, Fernando mencionava as favelas que acabara de ver embaixo das pontes do Recife e questionava: "Pergunte aos moradores daquelas casas se o capitalismo é bom para eles."