terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Poder e Conhecimento na Economia Global

“[...] a fonte do poder na estrutura do conhecimento é a capacidade de desenvolver e adquirir conhecimento novo e negar acesso ao que se detém, combinada com a capacidade de controlar os canais pelos quais o conhecimento é comunicado” – GANDELMAN, 2004 – pág. 279.

Propriedade privada, propriedade comum e propriedade intelectual (PI). A obra de Marisa Gandelman, “Poder e Conhecimento na Economia Global – o regime internacional da propriedade intelectual, da sua formação às regras de comércio atuais”, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – 2004 – 317 págs. - gira em torno do eixo formado pelos conceitos que suportam estes três tipos de relacionamentos entre os criadores, suas obras e a sociedade em que estão inseridos.



O livro, baseado na dissertação de Mestrado em Relações Internacionais da autora, defendida em maio de 2002, foi resultado de uma extensa pesquisa, na qual a mesma teve a oportunidade de mesclar as teorias em torno da propriedade em si com o desenvolvimento internacional da temática relacionada à PI. Em meio às inúmeras obras visitadas pela autora dois especialistas surgem como os que incutiram maior influência nas idéias e conclusões alcançadas ao final: Susan Strange, por intermédio das obras “Cave! Hic dragons: a critique of regime analysis” e “States and Markets” e C. B. Macpherson, em “Property, Mainstream and Critical Positions”.

Na jornada empreendida por Gandelman muito úteis serão ao leitor a trajetória histórica da regulamentação internacional da PI em dois de seus principais campos – patentes e direitos de autor. A propriedade intelectual protege uma vasta gama de direitos gerados a partir da inventividade do homem. Além dos dois supracitados temos marcas, indicações geográficas – quem já tomou Champagne entende do que eu estou dizendo -, desenhos industriais, topografia de circuitos integrados, softwares, belas artes, etc. “A propriedade intelectual, em outras palavras, é um direito de propriedade privada sobre os produtos da mente humana” (pág. 114). Para um leigo na matéria específica, mas com um relativo domínio das teorias de Relações Internacionais (RI), será como navegar num novo mundo que se descortina com grande potencial para estudos posteriores. Para aqueles que conhecem PI, será o aumento de seu conhecimento em nível de detalhe sobre o tema em questão, observado sob uma nova ótica, a internacionalista. Estes, portanto, são os dois públicos alvos da autora, ambos nos quais estou inserido.

Tendo isso em mente faria duas críticas ao texto em termos de desenvolvimento – uma delas está diretamente relacionada ao viés adotada ex-ante pela pesquisadora; e outra na qual ela não tem “culpa”, digamos assim, pois foi prejudicada pelo timing histórico. Gandelman inicia sua dissertação abordando a Teoria dos Regimes. Tal fato já aponta para uma não-conformidade com o status quo vigente. Ao querer questionar como a sociedade atual lida – ou seja, o regime em voga – ela já induz um entendimento por parte do leitor de que este não deve ser adequado. Certamente as leituras de Strange e Macpherson influenciaram por esse tipo de abordagem. “Para Macpherson, a propriedade [...] é produto de circunstâncias históricas particulares e tem sua origem no surgimento da sociedade de mercado capitalista” (pág. 119). Mas o seu erro não está no fato de ter adotado uma determinada linha de pensamento. Todos têm o direito de pregar por uma determinada linha, porém numa obra que se diz científica, e que deveria pautar pela isenção de idéias a priori, o equívoco está em não explicitar isso desde o principio.

Por este caminho a autora acaba chegando à conclusão de que se faz necessário, para o bem da humanidade, que a PI deixe de ter seu desenvolvimento enquanto matéria pautada pelo incentivo à propriedade privada para focar na necessidade de se mudar o sistema em favor do estabelecimento desta como uma propriedade comum. Sabemos que tal discussão traz em seu bojo um antigo debate entre o que antes era conhecido como “esquerda e direita”, conceitos a meu ver deslocados no tempo, uma vez que os interesses econômicos não observam matizes políticas de nenhuma ordem, e tal dicotomia já se encontra ultrapassada no tempo. Ora, um país pode ter um Governo de “esquerda” que não necessariamente não deixará de buscar proteger os anseios de sua indústria nacional, que muitas vezes são pela proteção de sua propriedade privada. E quando isso se dá? Na medida em que o contexto em que tal “estrutura de poder” claramente é voltada para ser maximizada em favor daqueles que o detém. E se aqueles que o possuem são os que poderão fazer com que sua economia se movimente, que empregos sejam gerados e oportunidades abertas para toda a população, que Governo se oporia? Volto a dizer: teses que indiquem um retorno ao antigo debate entre o “capitalismo” e o “comunismo” se perdem no tempo, uma vez que o navegar do mundo atual já foi redirecionado para outras paragens. O que se busca atualmente é sim, como fazer com que o sistema seja mais igualitário, porém sem o radicalismo de alterá-lo em seu cerne. Propriedade Intelectual terá como força motriz, sempre, a propriedade privada. Ela pode ser privada, de propriedade de um Governo ou de uma Empresa, mas será privada. E mesmo em ambos os casos deverá ser um privilégio temporário, em favor da sociedade.



Em relação ao segundo erro, este não pode nem mesmo ser chamado assim. A autora foi prejudicada por estar, quando da escrita da dissertação, ainda em meio ao início de um debate de como a PI poderia dar conta de novos direitos. Um grande acerto de Gandelman foi observar a tendência desta em absorver, cada vez mais, outros tipos de “direitos” que até então não alcançava, como que numa ampliação de seu escopo de atuação (1). E essa tendência se dá justamente por conta de algo muito comum a todas as sociedades – a busca pela manutenção de um modelo, de uma lógica de atuação que valida um cenário vencedor. A “ampliação do conceito de propriedade (...) tem a função de manter uma determinada configuração de distribuição de forças na estrutura da economia política internacional” (pág. 227). Se este status quo, como dito acima, demonstra falhas, cabe a iniciativa de seus membros em alterá-lo de modo a que estas possam favorecer a todos de maneira mais igualitária. E foi isso que ocorreu em 2004, ou seja, dois anos após a defesa da dissertação aqui analisada.

Naquele ano, o Brasil, acompanhado de mais 12 países, teve a iniciativa de apresentar, perante a Assembléia Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI – www.wipo.int), agência especializada das Nações Unidas, um documento denominado “Agenda para o Desenvolvimento”. Este prega que a propriedade intelectual não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para o desenvolvimento socioeconômico dos países. A própria autora antecipou este movimento ao caracterizar uma crise de regime como sendo “quando o hegemônico está em decadência, passa a dar prioridade aos seus interesses particulares, em detrimento da promoção do bem coletivo que é a estabilidade da ordem” (pág. 45).

Desse modo o Governo Brasileiro não tentava mudar o sistema em si, mas como ele vinha sendo conduzido, tentando aproximá-lo para as teses defendidas pelos países em desenvolvimento, reflexo de algo que ocorria, pelo menos, desde a década de 70 do século passado, quando a Organização da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) liderou a redação de um estudo sobre o relacionamento entre PI e transferência de tecnologia que não era necessariamente bem visto pela própria OMPI, que “(...) não só discordava da crítica que o estudo fazia ao sistema internacional de proteção às patentes, como não acreditava na necessidade de tais mudanças apontadas em favor dos países em desenvolvimento” (pág. 192). Tal acontecimento político-diplomático gerou uma série de desdobramentos, mas o maior deles, a meu ver, foi justamente consolidar a possibilidade de se alterar o status-quo preservando o que ele tinha de melhor em benefício do povo brasileiro. Talvez, quem sabe, esse seja o “modo suave” de se alterar o sistema, atuando por dentro do mesmo, numa nova versão, um pouco mais hard do que a pregada por outro especialista, Joseph Nye, em sua emblemática obra “O Paradoxo do Poder Americano” (2). Quem viver, verá.

(1)       Um dos exemplos desta tendência é a discussão em torno de como proteger os Conhecimentos Tradicionais. Entendem-se como tais àqueles gerados no seio de comunidades indígenas, ribeirinhas, etc, os quais vêm sendo explorados sem ter o devido reconhecimento e retorno para aqueles que são os legítimos proprietários originais. A tentativa de adequação desta nova propriedade enquanto privada, uma vez que ela parte de um berço comunitário – não existe um dono único – traz dificuldades para os especialistas na matéria. Talvez uma solução para tal dilema seja o devido entendimento de que “propriedade privada” não significa necessariamente excluir a “propriedade comum” e vice-versa.


(2) Editora UNESP, São Paulo – 2002 – 293 pgs. Nye defende que um dos instrumentos de poder americano é o chamado “poder suave” (soft power). Os EUA, ao influenciarem o mundo com sua cultura, por intermédio de seus filmes, músicas, etc, fariam com que, pouco a pouco, outras sociedades e Governos ambicionassem ter o seu mesmo nível de qualidade de vida, pautando suas decisões pelas teses norte-americanas.

sábado, 14 de dezembro de 2013

O Clube do Livro do Fim da Vida

Se usava as suas emoções para alguma coisa, era sempre em fazer o que precisava ser feito. Eu tinha que aprender essa lição enquanto ela ainda estava ali para me ensinar. Pág. 172, SCHWALBE, 2013

Um dos grandes dilemas da minha vida é lidar com o fim da própria. Por vezes fico observando as pessoas andando na rua e penso como cada uma delas lida com a finitude de nossa existência. Ou como, simplesmente, não lidam. Vivem suas vidas sem pensar no amanhã, aproveitando cada momento.

O mais cruel dessa análise é que, ao mesmo tempo em que observamos a passagem dos dias, semanas, meses e anos, expostos na nossa face e na dos entes queridos, temos que ter noção de que tudo pode acabar num átimo de segundo, que não dominamos os nossos “prazos de validade”. E que o ideal seria, então, darmos valor para as coisas boas da vida, agradecendo a cada instante e às pessoas queridas que nós tenhamos a nossa volta todas as experiências (e “a experiência”) que elas usufruíram para conosco.

A lista de nossos colegas falecidos no verso do programa fica cada vez mais comprida; as beldades da classe viraram bruxas gordas ou ossudas; tanto os astros do esporte quanto os não atletas deslocam-se com a ajuda de marca-passos e joelhos de plástico, aposentados e ocupando espaço numa idade em que a maioria de nossos pais estavam atenciosamente mortos. [...] Mas não nos vemos desse jeito, capengas e velhos. Vemos crianças do jardim de infância – os mesmos rostos sadios e redondos, as mesmas orelhas em concha e olhos de cílios compridos. Ouvimos os gritinhos alegres durante o recreio da escola primária, [...]. Trecho de As Lágrimas do Meu Pai: e Outros Contos – John Updike, citado entre as págs. 257-258, SCHWALBE, 2013.

Mas o que ocorre quando, num determinado contexto, nós somos brindados com a possibilidade de “saber” que algo vai terminar? Ou que alguém do qual nós gostamos muito – amamos – irá se despedir de nós para sempre? Toda uma série de parâmetros sobre como enfrentar a vida são colocados de cabeça para baixo. Passamos então a buscar algo que nos coloque de volta nos trilhos, que nos reverta para o eixo sobre o qual pautávamos nossa vida, para dessa forma saber enfrentar bem esse período, essa passagem, que nos dê mesmo algumas “dicas” de como superar essa luta e olhar para frente.

É sobre isso que trata a obra “O Clube do Livro do Fim da Vida”, de Will Schwalbe – Ed. Objetiva, 292 págs. – 2013. É um livro biográfico. Não, não é auto-biográfico, pois trata de como Schwalbe enfrentou a notícia de que sua mãe estava com câncer e que talvez tivesse poucos meses de vida. Mas não somente sob a ótica dele, como também sob a ótica dela, interpretada pelo autor. O livro não é focado nele, mas sim nela, e nos livros que ambos partilharam neste período, e como ambos – ela e os livros – trouxeram um norte para a vida dele.

Enquanto estava escrevendo este livro, me deparei com meu exemplar de O Preço do Sal (1). E achei um pedaço um pedaço de papel com uma carta que mamãe escrevera: “Todos nós devemos a todo mundo por tudo que acontece em nossas vidas. Mas não é como ter uma dívida para com uma única pessoa – de fato devemos a todo mundo por tudo. Nossa vida inteira pode mudar num instante – portanto, cada pessoa que impede que isso aconteça, por menor que seja o papel que ela exerce, também é responsável por tudo. Somente por dar amizade e amor, você já impede que as pessoas à sua volta desistam – e cada expressão de amizade ou amor talvez seja aquela que faz toda a diferença”. Pág. 187.


Todos vocês sabem que sou um apaixonado pelos livros – senão nem mesmo um blog como este existiria. A importância deles na minha vida é enorme, são marcos de etapas vividas. Cada um deles em minha estante conta um pedaço da minha história, além das próprias estórias inseridas neles mesmos. Sentimentos que foram gerados, lições aprendidas, conceitos entendidos, crescimento pessoal enfim.

Mas, no meu caso, ainda é uma experiência individual, particular – e eu mesmo, provavelmente, prefiro que seja assim. No caso de Schwalbe, ao contrário, foi algo que ele desfrutou com sua mãe, no formato “clube do livro”. Este trata-se, normalmente, de um grupo de pessoas que se compromete a ler uma determinada obra num prazo específico, para debaterem sobre a mesma numa data a ser estipulada.

Esta obrigação talvez seja o que me afasta de uma dinâmica como esta. O livro para mim é um momento de relaxamento, de introspecção para comigo mesmo. Algo que me ajuda a compreender o que está ocorrendo ao meu redor, porém com um olhar externo que se mistura com as minhas próprias percepções e preconceitos, algumas vezes até mudando a minha visão das coisas.

Mamãe me ensinou a não desviar os olhos do pior, mas sim acreditar que todos podemos fazer melhor. Jamais vacilou em sua convicção de que os livros são a ferramenta mais poderosa do arsenal humano, de que ler todo tipo de livros, qualquer que seja o formato escolhido [...], é o maior entretenimento de todos, e também é como você participa da conversa humana. Ela me ensinou que você pode fazer uma diferença no mundo, e que os livros realmente importam: é com eles que sabemos o que precisamos fazer na vida, e como dizemos isso aos outros. Ela também me mostrou, [...], que os livros podem ser o modo como nos aproximamos uns dos outros, e continuamos próximos [...]. Pág. 283.


Porém, para Schwalbe foi fundamental este diálogo. Através dele pode compreender a criatura maravilhosa que tinha ao lado em torno dos seus mínimos aspectos. Soube, inclusive, identificar os limites, a fronteira que não poderia ser ultrapassada em torno das suas reminiscências, respeitando a individualidade da sua mãe. Ela, uma guerreira em favor da educação e que já havia prestado tantos serviços voluntários mundo afora, de repente, sem perceber, era objeto de um voluntariado prazeroso, a partir do próprio filho.

Percebi que, durante o tempo restante que tinha com minha mãe, precisava me concentrar mais – tomar cuidado de não interromper nossas conversas com outras conversas. [...] Mas a vida moderna em si é uma máquina de interrupção: telefonemas, e-mails, SMS, notícias, televisão e nossas próprias mentes inquietas. O maior presente que você pode dar a alguém é sua atenção indivisa [...]. Pág. 170.

Ora, este é um livro que vocês sabem o final desde que começam lê-lo, assim como a sua “personagem” principal o sabia – ela tinha por hábito ler os finais antes de começar o livro. Mas este final foi apenas o começo do entendimento de Schwalbe – um ex-editor de livros a se dedicar a um site sobre culinária – sobre como determinadas obras podem mudar vidas. A obra maior que ele leu foi a vida da sua mãe. E a leu tão bem que soube descrevê-la com destreza, deixando um legado para que outras pessoas também pudessem aprender com ela, desde as grandes lições expostas acima, até as mais triviais, que nos moldam como seres humanos:




Muitas vezes penso nas coisas que mamãe me ensinou. Arrume a cama toda manhã – não importa se você tem vontade ou não, faça isso e pronto. Escreva mensagens de agradecimento imediatamente. Desfaça a mala, mesmo se só vai passar uma noite no lugar. Se você não está dez minutos adiantado, então está atrasado. Seja alegre e escute as pessoas, mesmo que não esteja com vontade. Diga a seu cônjuge (filhos, netos, pais) que você o ama todos os dias. Use forro protetor dentro das gavetas. Mantenha uma coleção de presentes à mão, [...] para sempre ter algo para dar às pessoas. Comemore ocasiões. Seja bondoso. Pág. 282

OBS.: Coincidentemente, logo após ter ganho este livro pude ler uma análise sobre o mesmo e o seu impacto na coluna de Barbara Soalheiro, na Revista Vida Simples, da Editora Abril – edição de Novembro – “A Melhor Ideia do Mundo é Simples” – Pág. 63. Barbara teve a oportunidade de assistir uma palestra do autor, Will Schwalbe, e dela retirou alguns ensinamentos, dos quais ressalto dois: “(1) venha o que vier, uma coisa não deve mudar: ler é como nós instalamos novos softwares nessa máquina chamada de cérebro. ‘Se você não tem tempo de ler, acorde uma hora mais cedo’. [...] (3) Conversas sobre um livro são sempre as mais interessantes que se pode ter com alguém; elas são capazes de te aproximar do outro de um jeito profundo, estreitando a comunicação e diminuindo o vão que sempre existe entre nossos modos de ver o mundo. ‘Ler é o oposto de morrer’, finalizou ele”.


        (1) O Preço do Sal (The Price of Salt) – Patricia Highsmith.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

SEGUNDOS FORA

Uma obra que juntasse duas das minhas maiores paixões – esporte e literatura – sempre terá um lugar cativo no meu coração. O livro “Segundos Fora” (248 págs, Ed. Companhia das Letras, 2012), do argentino Martín Kohan, tem essa característica. Ele pauta sua narrativa tendo como fio condutor central uma luta de boxe realizada no início do século passado (1923) valendo pelo título mundial dos pesos pesados entre o campeão Jack Dempsey e o argentino Luis Angél Firpo. Porém, este fio constrói o laço que costura uma série de aspectos que aparentemente somente poderiam ter sido escritos por um autor latino-americano.

Uma foto da luta que, em que pese ser uma obra de ficção, realmente ocorreu.

O senso de humor ácido é uma das características presentes. Isso fica mais claro nas partes mais hilárias do livro, quando dois jornalistas, colegas de trabalho, Verani, especialista em esportes, e Ledesma, especialista em artes, discutem sobre o que tem mais valor na vida. Àquele tendo como gancho principal a luta acima citada, e este último trabalhando o relacionamento entre Strauss e Mahler. Óbvio que pelas suas predileções a visão sobre o que realmente importa e como influencia cada um dos aspectos de nosso cotidiano difere enormemente. Porém, nesse duelo de palavras nunca se perde a fleugma, o olhar superior tipicamente argentino – em que pese eles não estarem localizados em Buenos Aires, o que para os platenses poderia ser motivo de discordância da minha opinião.

A capa e a verossimilhança com a realidade

Um outro aspecto característico é a ousadia latino-americana de buscar novas formas de narração de uma mesma estória. Kohan usa e abusa dos flash-backs, uma vez que ele apresenta a trama sob o olhar dos diferentes personagens. Para tanto ele tem o grupo de jornalistas – dos quais se incluem os personagens acima citados, Verani e Ledesma - que em 1973 passam a debater sobre o impacto da luta em relação à morte de um músico da orquestra de Strauss que iria tocar 50 anos antes, em Buenos Aires.

Porém, para demonstrar como o destino cruza diferentes estórias a partir de um mesmo ponto, o autor demonstra ser necessário passar o sentimento de que aqueles que muitas vezes participam de um evento não têm a mínima noção do impacto que este pode gerar sobre terceiros. Para tanto ele retrocede 50 anos e mostra luta pela visão de Jack Dempsey, do árbitro, e de um dos jornalistas que a cobria. Dessa forma ele cria dois núcleos distintos, desconectados, porém que possuem como ponte o impacto de um evento esportivo sobre a vida de várias pessoas ao mesmo tempo sob distintas óticas.

Ora, muitas vezes pequenos atos, pequenas covardias ou malvadezas que imaginamos afetar apenas os nossos diminutos círculos de convivência podem gerar o tal “efeito borboleta” (1) e alcançar vidas alheias distantes no espaço e no tempo. Quem melhor que um latino-americano, com a magia da literatura fantástica na veia – da qual um dos maiores exemplos seria “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado – para buscar tais aspectos?

Seria Martin Kohan mais um autor da literatura fantástica tão tipicamente latino-americana?

“Segundos Fora”, assim, se demonstra um livro que deve ser saboreado principalmente durante o seu percurso, sem o objetivo de se alcançar o final, pois sua força está justamente em demonstrar como a vida humana é travessa e cheia de descaminhos. Poderia ainda dizer que traz como lição a possibilidade de sermos tolerantes com as diferenças. Tal característica poderia ter tornado a vida dos seus personagens principais mais leve, e esta lição é dada justamente se utilizando como ferramenta o contra-exemplo, ou seja, como a intolerância entre eles (e para com eles mesmos) fez com que, por intermédio do seu (mau) humor, desperdiçassem oportunidades.

Para finalizar, um trecho em que Ledesma, exasperado pela contínua insistência de Verani em comparar a importância de uma luta de boxe (e sua influência) com o valor histórico da música erudita, traduzindo tal postura como uma ditadura de massa, o faz trazendo à baila um sentimento anti-peronista. Ou seja, mais argentino, impossível:

Ledesma se explicou: os senhores, disse-lhe sem esclarecer o porquê do plural, sempre acreditam que têm o direito de controlar todas as coisas. Usava o plural porque não se tratava de um problema pessoal com Verani. O problema era mais amplo, e Verani era simplesmente um caso: os fanáticos do futebol, do boxe, da música do Club del Clan e de Perón e Evita sempre se acham no direito de controlar todas as coisas. [...] Totalitários, rosnava Ledesma, e ainda bem que Verani não retrucava. São uns totalitários, passam por cima de tudo. Por isso essa certeza que o senhor tem agora, disse a Verani, mas baixando o tom, de que se Firpo e Dempsey estavam lutando ninguém tinha essa possibilidade, nem muito menos o direito, de manter-se à margem da coisa(pág. 122)


Não consigo deixar de pensar no sentimento evocado por aqueles que não gostam de Carnaval durante o reinado de Momo; ou daqueles que não gostam de futebol durante o período da Copa do Mundo; ou até mesmo aqueles que não acompanharam a novela “Avenida Brasil” durante sua transmissão ou que não têm interesse na próxima luta de MMA. Eu mesmo sou um fanático por esportes e não posso exigir dos outros que tenham a mesma visão de como tal aspecto afeta o meu jeito de ser e de ver a vida. Tolerância, enfim, é disso que precisamos.

 (1) O Efeito Borboleta é uma expressão utilizada na Teoria do Caos para fazer referência a uma das características mais marcantes dos sistemas caóticos: a sensibilidade nas condições iniciais. (...) O fenômeno da sensibilidade em relação a pequenas perturbações nas condições iniciais foi descrito através de uma alegoria, apelidada de Efeito Borboleta, segundo a qual o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um sequência de fenômenos meteorológicos que provocarão um tornado no Texas. Fonte: http://www.significados.com.br/efeito-borboleta/