sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

SEGUNDOS FORA

Uma obra que juntasse duas das minhas maiores paixões – esporte e literatura – sempre terá um lugar cativo no meu coração. O livro “Segundos Fora” (248 págs, Ed. Companhia das Letras, 2012), do argentino Martín Kohan, tem essa característica. Ele pauta sua narrativa tendo como fio condutor central uma luta de boxe realizada no início do século passado (1923) valendo pelo título mundial dos pesos pesados entre o campeão Jack Dempsey e o argentino Luis Angél Firpo. Porém, este fio constrói o laço que costura uma série de aspectos que aparentemente somente poderiam ter sido escritos por um autor latino-americano.

Uma foto da luta que, em que pese ser uma obra de ficção, realmente ocorreu.

O senso de humor ácido é uma das características presentes. Isso fica mais claro nas partes mais hilárias do livro, quando dois jornalistas, colegas de trabalho, Verani, especialista em esportes, e Ledesma, especialista em artes, discutem sobre o que tem mais valor na vida. Àquele tendo como gancho principal a luta acima citada, e este último trabalhando o relacionamento entre Strauss e Mahler. Óbvio que pelas suas predileções a visão sobre o que realmente importa e como influencia cada um dos aspectos de nosso cotidiano difere enormemente. Porém, nesse duelo de palavras nunca se perde a fleugma, o olhar superior tipicamente argentino – em que pese eles não estarem localizados em Buenos Aires, o que para os platenses poderia ser motivo de discordância da minha opinião.

A capa e a verossimilhança com a realidade

Um outro aspecto característico é a ousadia latino-americana de buscar novas formas de narração de uma mesma estória. Kohan usa e abusa dos flash-backs, uma vez que ele apresenta a trama sob o olhar dos diferentes personagens. Para tanto ele tem o grupo de jornalistas – dos quais se incluem os personagens acima citados, Verani e Ledesma - que em 1973 passam a debater sobre o impacto da luta em relação à morte de um músico da orquestra de Strauss que iria tocar 50 anos antes, em Buenos Aires.

Porém, para demonstrar como o destino cruza diferentes estórias a partir de um mesmo ponto, o autor demonstra ser necessário passar o sentimento de que aqueles que muitas vezes participam de um evento não têm a mínima noção do impacto que este pode gerar sobre terceiros. Para tanto ele retrocede 50 anos e mostra luta pela visão de Jack Dempsey, do árbitro, e de um dos jornalistas que a cobria. Dessa forma ele cria dois núcleos distintos, desconectados, porém que possuem como ponte o impacto de um evento esportivo sobre a vida de várias pessoas ao mesmo tempo sob distintas óticas.

Ora, muitas vezes pequenos atos, pequenas covardias ou malvadezas que imaginamos afetar apenas os nossos diminutos círculos de convivência podem gerar o tal “efeito borboleta” (1) e alcançar vidas alheias distantes no espaço e no tempo. Quem melhor que um latino-americano, com a magia da literatura fantástica na veia – da qual um dos maiores exemplos seria “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado – para buscar tais aspectos?

Seria Martin Kohan mais um autor da literatura fantástica tão tipicamente latino-americana?

“Segundos Fora”, assim, se demonstra um livro que deve ser saboreado principalmente durante o seu percurso, sem o objetivo de se alcançar o final, pois sua força está justamente em demonstrar como a vida humana é travessa e cheia de descaminhos. Poderia ainda dizer que traz como lição a possibilidade de sermos tolerantes com as diferenças. Tal característica poderia ter tornado a vida dos seus personagens principais mais leve, e esta lição é dada justamente se utilizando como ferramenta o contra-exemplo, ou seja, como a intolerância entre eles (e para com eles mesmos) fez com que, por intermédio do seu (mau) humor, desperdiçassem oportunidades.

Para finalizar, um trecho em que Ledesma, exasperado pela contínua insistência de Verani em comparar a importância de uma luta de boxe (e sua influência) com o valor histórico da música erudita, traduzindo tal postura como uma ditadura de massa, o faz trazendo à baila um sentimento anti-peronista. Ou seja, mais argentino, impossível:

Ledesma se explicou: os senhores, disse-lhe sem esclarecer o porquê do plural, sempre acreditam que têm o direito de controlar todas as coisas. Usava o plural porque não se tratava de um problema pessoal com Verani. O problema era mais amplo, e Verani era simplesmente um caso: os fanáticos do futebol, do boxe, da música do Club del Clan e de Perón e Evita sempre se acham no direito de controlar todas as coisas. [...] Totalitários, rosnava Ledesma, e ainda bem que Verani não retrucava. São uns totalitários, passam por cima de tudo. Por isso essa certeza que o senhor tem agora, disse a Verani, mas baixando o tom, de que se Firpo e Dempsey estavam lutando ninguém tinha essa possibilidade, nem muito menos o direito, de manter-se à margem da coisa(pág. 122)


Não consigo deixar de pensar no sentimento evocado por aqueles que não gostam de Carnaval durante o reinado de Momo; ou daqueles que não gostam de futebol durante o período da Copa do Mundo; ou até mesmo aqueles que não acompanharam a novela “Avenida Brasil” durante sua transmissão ou que não têm interesse na próxima luta de MMA. Eu mesmo sou um fanático por esportes e não posso exigir dos outros que tenham a mesma visão de como tal aspecto afeta o meu jeito de ser e de ver a vida. Tolerância, enfim, é disso que precisamos.

 (1) O Efeito Borboleta é uma expressão utilizada na Teoria do Caos para fazer referência a uma das características mais marcantes dos sistemas caóticos: a sensibilidade nas condições iniciais. (...) O fenômeno da sensibilidade em relação a pequenas perturbações nas condições iniciais foi descrito através de uma alegoria, apelidada de Efeito Borboleta, segundo a qual o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um sequência de fenômenos meteorológicos que provocarão um tornado no Texas. Fonte: http://www.significados.com.br/efeito-borboleta/

Um comentário:

  1. Olá Leopoldo, que bom que gostou do livro. Suas reflexões me fizeram navegar novamente por essa deliciosa história. De fato, quando estamos na Argentina, podemos ter noção melhor desses sentimentos exagerados e apaixonados que movem nossos hermanos. Fiquei com vontade de conhecer Trelew e, quando estive em Buenos Aires, em minha lua-de-mel em julho, não pude deixar de fazer uma visitinha ao Barolo, na Avenida de Mayo. Só fiquei com pena de ter perdido a visita guiada ao terraço, que pode ser feita de dia ou de noite. Fica para a próxima. E quanto ao Martin Kohan, li recentemente outro livro dele, chamado "Ciências Morais". Não trata de esportes, mas é igualmente interessante. Abraços.

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