segunda-feira, 23 de junho de 2014

1789

Após a leitura de “1565”, do mesmo autor deste “1789”, Pedro Doria, lançado pela Editora Nova Fronteira no corrente ano, com 272 páginas, cresce a expectativa do leitor com mais um prazer escondido nas palavras que descrevem um cenário e um acontecimento histórico. Naquela primeira obra o descortinar de um Rio de Janeiro nascente, com seus fundadores e desbravadores. Já neste último, a busca por uma imersão no imaginário dos inconfidentes.



Não fui desapontado. Mais uma vez me deleitei com a narrativa apresentada, como se estivesse vendo os acontecimentos à minha frente. Diria a vocês que para aqueles que têm o prazer de viver nas paragens de Minas Gerais – viu Rejane Ritter – este livro servirá como um guia para os tempos de outrora. Para aqueles que ainda não visitaram a terra do ouro, serve para uma breve introdução na cultura que por lá encontrará, gente simples, que tem em suas raízes a tão conhecida mistura entre branco, negro e índio, porém, diferentemente do Rio, que tem o mar a se refestelar em sua frente, houve um cenário de batalha pela terra e pelo que dela podia se extrair, não havendo distração neste objetivo – que não seja pelo amor das Marílias.

Fui avançando nas páginas procurando referências, aqueles pontos que seriam objeto de grande curiosidade e que talvez fossem o veio pelo qual eu deveria seguir a narrativa. A primeira que mexeu com a minha memória foi a respeito das Entradas – tão conhecida palavra que se fixou a partir da expressão “Entradas e Bandeiras”. As bandeiras sabemos que se referem aos bandeirantes, bastiões da abertura de caminhos entre a mata daquele novo país, muitas vezes com violência, muitas vezes pelo puro interesse, sem um pingo sequer de censo cívico de estar fazendo história. Eram outros tempos, e isso vira e mexe Pedro Doria nos lembra, que talvez não devam ser julgados pelos parâmetros de hoje. À reboque, ainda, uma ligeira explicação sobre outra expressão famosa, “Secos e Molhados”.

As Entradas, o imposto sobre circulação de mercadorias, eram pagas quando o produto entrava ou saía de uma capitania. (...) As Entradas eram cobradas de acordo com o peso da mercadoria. Havia uma taxa específica por escravo, outra para cada cabeça de gado, uma terceira pelo quilo de molhados (comida), e ainda um valor pelo quilo de secos (outros produtos).
Pág. 78

Uma economia nascente, sobrevivendo a partir do tacão de uma Metrópole distante, que cobrava seu quinhão da produção obtida a partir do suor de escravos, quer seja na lavoura, quer seja na mineração. Essa miscelânea de coisas teve inúmeras leituras, algumas delas foram transpostas para o nosso tempo via telenovelas, o que não deixou de ser uma romantização daqueles anos. O que falar, por exemplo, de Chica da Silva?

Chica da Silva nasceu no arraial do Milho Verde, não longe de Tejuco, entre 1731 e 1735. Sua mãe era uma escrava africana e o pai, português. Não nasceu Chica da Silva: nasceu Francisca Parda. Assim davam o nome aos escravos. Se vinham da África, ao prenome incluía-se a região de origem: Antônio Mina, Maria da Angola, da Guiné. Quando nascidos no Brasil, os sufixos geográficos eram substituídos por designação de pele. Crioula, Mulata, Parda ou Cabra. As Cabras tinha sangue índio e negro. As Crioulas eram negras. As Pardas, tinham o tom de pele mais claro e as Mulatas, mais escuro. Já na maneira de chamar negavam a escravos e escravas sua identidade.
Pág. 101

Mas o autor não se deteve em Chica da Silva mais do que o necessário. Nesse caso, uma ilustração de que personagens havia aos baldes naquela terra, naqueles tempos. Porém, seu norte era a Inconfidência, e o seu guia maior havia de ser Tiradentes. Há muito sabemos que as imagens que nos chegaram nesse longínquo século XXI são idealizadas. Tiradentes não foi enforcado com longos cabelos e barba brancos. Ele também não era o belo senhor, retratado pelos militares com suas vestes oficiais. Sim era, um militar, mas era feio. Sim, foi enforcado, mas estava barbeado e com os cabelos curtos. Cada imagem foi gerada com um objetivo – o militar para demonstrar sua retidão, reconhecida pelos ideais da República; o barbado uma evangelização daquele que seria o Apóstolo primeiro de nossa Independência. Porém, o autor faz a devida humanização deste personagem, sem lhe tirar o lustro.



Em 21 de abril de 1792, um homem grisalho, barbeado, generoso, corajoso, apaixonado, inconseqüente, ególatra, beberrão, verborrágico, ressentido, subiu derrotado os mais de vinte degraus à forca e pediu três vezes ao carrasco que lhe fosse breve. Tinha os olhos fixos num crucifixo.
Pág. 243

Não foi um personagem solitário. Fez sua história com seus coadjuvantes, homens que tiveram distintos motivos para se envolver na empreitada da Inconfidência, razões estas que vocês descobrirão no decorrer do livro. É de se perceber, pela sua estrutura, que na verdade Doria cria o cenário para nos apresentar suas conclusões – meio que nos abrindo os olhos para a incrível novela lida – ao final, no epílogo iniciado na página 243. Mas o epílogo não seria nada não se estivéssemos sentimentalmente envolvidos com a narrativa presente nas 242 páginas anteriores. Apresenta ainda um resumo das sentenças de todos os condenados, estudantes, políticos, contrabandistas, militares, religiosos e poetas. Interessante observar como construíram seu ideário:

Suas idéias de liberdade eram cosmopolitas, ultrapassavam fronteiras, mas foi em locais específicos que estes homens se reuniam. (...) O processo não foi de imediato, tampouco veio sem traumas. Mas ao romper o elo entre uma instituição e a outra nas mentes de todos [referência ao Estado e a Religião na época do Iluminismo], a ilusão que sustentava o sistema desapareceu. E esses livros, essas idéias, não ficaram trancados nos salões de Paris. (...) No Rio, em Salvador, em Vila Rica. E, neles as mesmas idéias européias eram exploradas com paixão. Um ajudava o outro a desenvolver raciocínios. Livros eram passados de mão em mão. Na casa do advogado Cláudio Manuel da Costa, do ouvidor Tomás Antônio de Gonzaga, na do contratador João Rodrigues de Macedo, também na do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, (...). Alvarenga Peixoto conta de ter passado na casa do tenente-coronel “para entregar um livro e tirar outro da sua livraria”.
Págs. 124-126.


Ah, as letras, agente da revolução das idéias. Essa riqueza de conhecimento que se agrega ao que antes estava desvirtuado por uma visão que serviu apenas como introdução para este universo, construída a partir dos livros de História da escola e pelas telenovelas de época. É por isso que eu sempre digo: o livro é melhor.