Laurentino
Gomes me conquistou, assim como a maioria de seus leitores, por intermédio da
série de livros que traça a trajetória da história política brasileira nos anos
1800. Ao topar com um livro escrito por ele aguardamos, deste modo, alta
qualidade descritiva sobre o tema a que se propõe expor.
Em
“O Caminho do Peregrino: seguindo os passos de Jesus na Terra Santa” – Ed.
Globo – São Paulo – 2015 – 200 págs. - ele não foge da sua expertise, mas vai
além. Se associando ao expert em religião – e uma espécie de mentor espiritual –
Osmar Ludovico, aproveita a oportunidade da realização de uma viagem em
conjunto para o ambiente histórico de Israel para descrever não somente a
origem de uma terra conturbada em meio aos conflitos políticos, como também
para expor como a religiosidade cristã pode ser o caminho para muitas de nossas
inquietudes. Ambos, peregrinos. Ambos professores. O que temos a aprender com
eles? Vejam abaixo.
O Filho Pródigo
O
livro é dividido da seguinte forma: Laurentino se encarrega da descrição
política do terreno que eles, enquanto peregrinos, trilham. Ludovico expõe cada
uma das meditações por eles empreendida junto a um grupo de brasileiros que os
acompanhou na empreitada. Momentos de reflexão que geram encantamento e paz.
Osmar Ludovico e Laurentino Gomes |
No
início da obra Laurentino coloca seu início na vida religiosa, seu afastamento
e posterior reaproximação. Ele diz:
Venho de uma família católica, rural e conservadora,
do interior do Paraná. Era uma tradição que o filho mais velho se tornasse
padre. Por isso, na adolescência, fui seminarista da Pia Sociedade São Paulo (a
congregação dos padres e irmãos paulinos) por três anos. Saí ao descobrir que
não tinha vocação para o sacerdócio. Anos depois, ao me tornar jornalista,
afastei-me quase que totalmente de qualquer prática religiosa. Nos meus tempos
de redação, julgava que seria um sacrilégio alguém ousar dizer que era cristão,
orava ou acreditava em qualquer coisa que não fosse o universo visível,
racional e comprovável, prometido e autorizado pela ciência e pelas ideologias
políticas do século XX (págs. 29 e 30).
Porém
algo estava guardado para ele mais adiante. Após um encontro casual, realizado
profissionalmente e que redundou num jantar com o teólogo Leonardo Boff, aquela
fagulha parecia ter reacendido.
Algum tempo depois, tomei coragem e fui assistir a uma
missa no mosteiro trapista de Campo do Tenente, no Paraná, perto do hotel onde
estava hospedado. No sermão, o abade, padre Bernardo Bonowitz, discorreu sobre
as dimensões de Cristo o Evangelho de São João: “Jesus, a água que eu bebo;
Jesus, o pão que eu como; Jesus, o ar que eu respiro”. Ao ouvir essas palavras,
fui tomado por um choro compulsivo e, de certa forma, constrangedor perante os
demais fiéis que lotavam a igreja. Começava ali meu processo de renascimento
espiritual, que coincidiu com um período de crise pessoal, repleto de dor e
sofrimento
(pág. 31).
E
aqui nos encontramos com a primeira de muitas lições. Seria realmente
necessário estar passando por um momento de crise pessoal para esta
reaproximação? Pela minha própria experiência, algo similar me ocorreu. Eu, também
passando por uma fase negra, fui levado pelas mãos de minha esposa – que por
sua vez havia sentido essa ânsia pelo retorno alguns anos antes, também
envolvida por um momento de crise. Aqui temos então três histórias distintas
com uma similaridade no seu transcurso.
A
resposta, porém, a minha pergunta inicial, é não. Mas é claro que a religião,
qualquer que seja, tem por uma característica ser uma saída para momentos de
agonia dos seres humanos. Quando não vemos solução, apelamos para o divino. O
importante, no entanto, é perceber que o divino efetivamente responde. E a
resposta não precisa ser exatamente um milagre – se bem que ao olharmos para
trás nos remetemos a tal sentimento. Pode ser uma mudança de hábito simples,
uma nova atitude perante a vida motivada pelas palavras certas.
E
qual é a principal resposta presente nas religiões? É o olhar amoroso para com
o próximo. É abstrair dos seus próprios problemas, olhar ao redor e ver que o
mundo e a vida são muito maiores do que eles. E que você sim tem a
possibilidade de transformá-los para melhor.
Mas
estamos nos adiantando. Vamos seguir expondo, então, a construção da narrativa
proposta pelos autores, o que fará com que dentro em breve retornemos para esse
mesmo ponto, fechando um círculo virtuoso. Laurentino passa então a discorrer
sobre essa nova etapa de redescoberta – a viagem à Israel. E o que ele
identifica enquanto historiador?
História Política
A
descrição de Laurentino Gomes para a Terra Santa e seus dilemas é pautada
justamente pelo paradoxo de uma capital – Jerusalém – ser o centro de 3
religiões – Judaísmo, Catolicismo, e Islamismo – ou seja, do discurso acima
apontado do amor para o próximo, e ao mesmo tempo ser o pomo da discórdia que
gera conflitos sangrentos até hoje. Tudo poderia ter começado por cisma no seu
de uma família especial:
A saga bíblica dos hebreus começa cerca de 1800 anos
antes de Cristo, quando um grupo de nômades vindo da Mesopotâmia e liderado por
Abraão chega à Palestina (...). Abraão teve dois filhos. O primeiro, Ismael,
nasceu de uma relação com sua escrava, Agar. Seria o patriarca dos povos
árabes. Com sara, sua mulher já idosa, Abraão teve Isaac, o patriarca dos
hebreus, que a Bíblia define como “o povo escolhido” de Deus. Um filho de
Isaac, Jacó, mudou seu nome para Israel, que significa “o homem que luta com
Deus” ou “o homem que vê Deus”. Teve doze filhos – os patriarcas das chamadas
doze tribos de Israel
(págs. 23 e 24).
Esta
é a semente comum das três religiões, todas tendo aquelas terras como seu
berço. Tendo esta passada por inúmeras ocupações, o nascimento de Cristo se dá
em meio ao domínio pelo Império Romano. O ambiente, os enfrentamentos, são
descritos por Laurentino Gomes, que aponta os principais atores envolvidos.
A versão clássica de 1959 |
Um
bom retrato de tal época pode ser visto no filme “Ben Hur”, tanto o original,
com Charlton Heston como protagonista, representando o personagem que dá título
ao filme, quanto a versão mais recente, que conta com Rodrigo Santoro no papel
de Jesus. A família de Ben Hur era da casta real local, subordinada à Roma, que
preferia a pax romana ao invés de
lutar contra os invasores. Porém, nesse meio tempo surge Jesus, com sua
mensagem de paz e amor, convivência e tolerância, não sendo bem visto tanto
pelos sacerdotes locais por representar uma perda da liderança de seu rebanho,
como também sendo interpretado como um possível líder rebelde. Ben Hur acaba
envolto no conflito ao acobertar um membro dos zelotes, “(...) grupo mais
radical, que pregava a resistência armada contra os romanos (...). De certa
forma, o próprio cristianismo podia ser considerado uma seita ou dissidência do
judaísmo oficial nos seus primeiros anos (...)” (pág. 47). Todos estes,
presentes no filme aqui mencionado – romanos, sacerdotes, zelotes, etc.
O herói na luta pela sobrevivência, na versão de 2016 |
A
saga de Ben Hur, após sua equivocada prisão, representa também a redescoberta
religiosa do homem, na medida em que ele se afasta na luta pela sobrevivência diária,
e procede com a reaproximação durante a jornada. Desse modo, a título de
exemplo tanto político quanto religioso e sentimental, esta obra
cinematográfica ajuda muito a compreender o turbilhão de emoções a que somos
submetidos todos os dias, afinal, também lutamos pela sobrevivência
diariamente, não!?
Fé
A
sobrevivência, assim, mais do que um ato de força, trata-se também de um ato de
fé. Somos confrontados a todo momento com as dificuldades da vida, e se não
temos fé, não percebemos que são etapas necessárias de crescimento em nossa
peregrinação rumo a felicidade, nossa e do próximo. “Quantos de nós, hoje, não
reagimos assim diante do mistério e da revelação ante os nossos olhos?
Preferimos seguir nossa rotina, cumprir nossos horários e obrigações diárias,
sem perceber que, muitas vezes, há uma mensagem transformadora sendo
transmitida em um olhar, uma frase, um sorriso, um gesto inesperado de bondade
ou pelo céu estrelado sobre nossa cabeça em uma noite qualquer” (pág. 73).
Muitos
são as ocasiões em que nos perdemos. Mas muitas também são as nossas oportunidades
de reconstrução. Ultrapassar a maré alta para encontrar a tranquilidade em
águas calmas requer muita força de vontade. E a vontade aqui pode ser traduzida
por fé também. “Muitas vezes, basta uma pequena frustração, uma interrupção nos
nossos planos ou uma simples palavra adversa para ventos impetuosos movam ondas
gigantes na nossa alma. Perdemos a tranquilidade e o equilíbrio emocional e nos
vemos prestes a submergir, impotentes e perdidos. Uma tempestade no coração nem
sempre está relacionada a uma causa específica. Somos nós mesmos a origem das
tempestades internas” (pág. 89).
E
já como somos nós a origem de nossas tempestades, como apontado por Ludovico, o
que devemos fazer para ser origem das nossas bonanças? Transformar problema em
solução? Primeiramente temos que identificar que problemas são estes. Este é o
primeiro passo.
Problemas
Dois
dos males que mais afligem a humanidade têm suas raízes fincadas na falta da
comunicação, do diálogo, e da importância que os bens materiais assumiram em
nossas vidas. Ninguém aqui está dizendo que viver com o que de melhor o
dinheiro pode oferecer é ruim. Mas enquanto esta for a principal mola
propulsora para seus atos, o homem enfrentará mais problemas que soluções.
Quando o dinheiro passa a ser exatamente o que é – um acessório em nossas vidas
– a dimensão do que verdadeiramente interessa – o amor a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo – encontra espaço para nos preencher da alegria de que
necessitamos para viver. Os bens materiais passam assim a ser um bônus, e nada mais
do que isso.
Como potestade, o dinheiro pode se assenhorear do
coração do homem, estabelecendo com ele uma relação de senhor e servo.
Engana-se, portanto, o homem que acha que possui o dinheiro; na realidade, é o
dinheiro que o possui. (...) Mas não entrega o que promete; ao contrário, nos
faz infelizes, insatisfeitos, endividados, egoístas, desconfiados, consumistas,
sem amigos e insensíveis ao drama humano da miséria e da pobreza. Uma potestade
que enfatiza o ter, impedindo-nos de viver com ideais elevados, valores éticos,
de ver a nobreza das causas, de sonhar com um mundo melhor e ser ativos na
promoção do bem comum (págs. 122 e 123).
O
dinheiro, portanto, nos individualiza, na pior acepção do termo. O ser humano é
ser sociável. Quando ele se enclausura, atrás de suas posses, ele perde a
capacidade de dialogar.
Jesus Cristo, representado por Rodrigo Santoro (Ben Hur 2016) |
Temos dificuldade de ouvir o outro. Às vezes, ouvimos
de forma truncada e seletiva. Ou, então, simplesmente não ouvimos. Em outras
ocasiões, nos expressamos mal, não conseguimos dizer tudo que desejamos ou
simplesmente nos calamos. Há colocações fora de hora, palavras truncadas e interpretações
equivocadas. Todo mundo fala, todo mundo ouve, mas ninguém se entende. Dos
obstáculos à comunicação surgem as dificuldades no casamento, na família e na
comunidade em que vivemos. O surdo e gago levado a Jesus representa cada um de
nós em nossas dificuldades relacionais de compreender e ser compreendido (pág. 94).
Mas
o que o futuro nos reserva? Que tipo de revelação temos que ter acesso para
sair desta espiral de incomunicabilidade e ganância material?
Revelação
O texto do Evangelho nos diz que, logo depois da pesca
milagrosa, Simão Pedro “prostou-se aos pés de Jesus dizendo: Senhor, retira-te
de mim, porque sou pecador”. O que aconteceu a Pedro continuou acontecendo a
milhares de homens e mulheres ao longo da história, e até os dias de hoje.
Encontramo-nos com Jesus Cristo e não conseguimos mais permanecer de pé, caímos
diante Dele. Sua presença desarma nosso espírito e também nosso corpo. Algumas
vezes, a experiência do encontro divino altera o batimento cardíaco, provoca
uma lágrima no canto do olho ou um longo e profundo suspiro (pág. 83).
A revelação,
processada como acima descrita por Ludovico, é apenas o estopim da mudança.
Algo de milagrosa, algo de querer interior, não importa. O que vale aqui é que
não se perca o momento e se possa seguir em frente, aproveitando esta
oportunidade para construir um mundo melhor, a partir das próprias atitudes. “É
um erro acreditar que Deus precisa de uma Igreja perfeita para realizar a obra
da redenção” (pág. 79). Ele precisa de cada um de nós! “Deus nos confia uma
missão, um chamado, uma tarefa. Ele nos quer a Seu serviço, espalhando Sua
mensagem de amor e esperança por todo o mundo. Deseja que sejamos instrumentos em
Suas mãos para construir um mundo melhor, mais pacífico, mais justo, com mais
generosidade e solidariedade. É através do amor ao próximo que realmente
encontramos um significado para a nossa vida” (pág. 86).
E será que, nessa
jornada, na nossa peregrinação, nosso rebanho tem que ser de uma única ovelha?
Será que esse esforço por transformar o mundo não seria melhor se fosse feito
dividindo-o com aqueles que mais se importam conosco e vice-versa? Acredito que
sim. Quanto mais bem acompanhados estivermos nessa linda aventura de escrever
nossa própria história melhor. Porém, para “conhecer e definir alguém há que se
aguardar paciente e silenciosamente que o outro se revele, se exponha, num
processo lento e gradual. Só assim podemos ser visitados pela singularidade e
unicidade do outro que se revela. Só então podemos descrever essa pessoa, ainda
que de forma inconclusiva, a partir do conhecimento baseado no convívio e na
amizade” (pág. 176). E a partir daí elegê-lo como um daqueles com os quais
partilharemos as dores e as alegrias de nossa vida.
Enfim, o que o futuro nos reserva?
Dependendo dos
objetivos que traçarmos, esta caminhada sofrerá mais ou menos desvios. As
pedras, os obstáculos, serão tão maiores como os enxergarmos ou como venhamos a
enfrentá-los.
“Para aqueles que
aspiram a eternidade, Jesus Cristo diz que é amando que a alcançaremos. Não se
trata de uma doutrina ou de uma religião, mas do exercício cotidiano de amar a
Deus e ao próximo como a nós mesmos. A qualidade de nossos vínculos e dos
nossos afetos são eternos. O amor é divino, perene, santo e jamais passará. A
vida eterna tem a ver com nosso amor a Deus e o cultivo desse relacionamento
através da nossa devoção e oração em segredo, isto é, fora do público. Mas
também é amar e servir ao nosso próximo. Cuidar do próximo como cuidamos de nós
mesmos. Isso é resultado do exercício possível da afetividade no dia a dia, em
outras palavras, tem a ver com o aqui e o agora, com o chão da vida. Viver a
vida cotidiana determina a nossa vida eterna” (pág. 102).
O livro de
Laurentino Gomes e Osmar Ludovico nos serve, assim, como uma breve mensagem e
indicação de como darmos os primeiros passos rumo à vida eterna. E com
inspiração divina, tudo fica mais fácil.