sábado, 8 de outubro de 2016

O CAMINHO DO PEREGRINO

Laurentino Gomes me conquistou, assim como a maioria de seus leitores, por intermédio da série de livros que traça a trajetória da história política brasileira nos anos 1800. Ao topar com um livro escrito por ele aguardamos, deste modo, alta qualidade descritiva sobre o tema a que se propõe expor.

Em “O Caminho do Peregrino: seguindo os passos de Jesus na Terra Santa” – Ed. Globo – São Paulo – 2015 – 200 págs. - ele não foge da sua expertise, mas vai além. Se associando ao expert em religião – e uma espécie de mentor espiritual – Osmar Ludovico, aproveita a oportunidade da realização de uma viagem em conjunto para o ambiente histórico de Israel para descrever não somente a origem de uma terra conturbada em meio aos conflitos políticos, como também para expor como a religiosidade cristã pode ser o caminho para muitas de nossas inquietudes. Ambos, peregrinos. Ambos professores. O que temos a aprender com eles? Vejam abaixo.


O Filho Pródigo

O livro é dividido da seguinte forma: Laurentino se encarrega da descrição política do terreno que eles, enquanto peregrinos, trilham. Ludovico expõe cada uma das meditações por eles empreendida junto a um grupo de brasileiros que os acompanhou na empreitada. Momentos de reflexão que geram encantamento e paz.
Osmar Ludovico e Laurentino Gomes
 No início da obra Laurentino coloca seu início na vida religiosa, seu afastamento e posterior reaproximação. Ele diz:

Venho de uma família católica, rural e conservadora, do interior do Paraná. Era uma tradição que o filho mais velho se tornasse padre. Por isso, na adolescência, fui seminarista da Pia Sociedade São Paulo (a congregação dos padres e irmãos paulinos) por três anos. Saí ao descobrir que não tinha vocação para o sacerdócio. Anos depois, ao me tornar jornalista, afastei-me quase que totalmente de qualquer prática religiosa. Nos meus tempos de redação, julgava que seria um sacrilégio alguém ousar dizer que era cristão, orava ou acreditava em qualquer coisa que não fosse o universo visível, racional e comprovável, prometido e autorizado pela ciência e pelas ideologias políticas do século XX (págs. 29 e 30).

Porém algo estava guardado para ele mais adiante. Após um encontro casual, realizado profissionalmente e que redundou num jantar com o teólogo Leonardo Boff, aquela fagulha parecia ter reacendido.

Algum tempo depois, tomei coragem e fui assistir a uma missa no mosteiro trapista de Campo do Tenente, no Paraná, perto do hotel onde estava hospedado. No sermão, o abade, padre Bernardo Bonowitz, discorreu sobre as dimensões de Cristo o Evangelho de São João: “Jesus, a água que eu bebo; Jesus, o pão que eu como; Jesus, o ar que eu respiro”. Ao ouvir essas palavras, fui tomado por um choro compulsivo e, de certa forma, constrangedor perante os demais fiéis que lotavam a igreja. Começava ali meu processo de renascimento espiritual, que coincidiu com um período de crise pessoal, repleto de dor e sofrimento (pág. 31).

E aqui nos encontramos com a primeira de muitas lições. Seria realmente necessário estar passando por um momento de crise pessoal para esta reaproximação? Pela minha própria experiência, algo similar me ocorreu. Eu, também passando por uma fase negra, fui levado pelas mãos de minha esposa – que por sua vez havia sentido essa ânsia pelo retorno alguns anos antes, também envolvida por um momento de crise. Aqui temos então três histórias distintas com uma similaridade no seu transcurso.

A resposta, porém, a minha pergunta inicial, é não. Mas é claro que a religião, qualquer que seja, tem por uma característica ser uma saída para momentos de agonia dos seres humanos. Quando não vemos solução, apelamos para o divino. O importante, no entanto, é perceber que o divino efetivamente responde. E a resposta não precisa ser exatamente um milagre – se bem que ao olharmos para trás nos remetemos a tal sentimento. Pode ser uma mudança de hábito simples, uma nova atitude perante a vida motivada pelas palavras certas.

E qual é a principal resposta presente nas religiões? É o olhar amoroso para com o próximo. É abstrair dos seus próprios problemas, olhar ao redor e ver que o mundo e a vida são muito maiores do que eles. E que você sim tem a possibilidade de transformá-los para melhor.

Mas estamos nos adiantando. Vamos seguir expondo, então, a construção da narrativa proposta pelos autores, o que fará com que dentro em breve retornemos para esse mesmo ponto, fechando um círculo virtuoso. Laurentino passa então a discorrer sobre essa nova etapa de redescoberta – a viagem à Israel. E o que ele identifica enquanto historiador?

História Política

A descrição de Laurentino Gomes para a Terra Santa e seus dilemas é pautada justamente pelo paradoxo de uma capital – Jerusalém – ser o centro de 3 religiões – Judaísmo, Catolicismo, e Islamismo – ou seja, do discurso acima apontado do amor para o próximo, e ao mesmo tempo ser o pomo da discórdia que gera conflitos sangrentos até hoje. Tudo poderia ter começado por cisma no seu de uma família especial:

A saga bíblica dos hebreus começa cerca de 1800 anos antes de Cristo, quando um grupo de nômades vindo da Mesopotâmia e liderado por Abraão chega à Palestina (...). Abraão teve dois filhos. O primeiro, Ismael, nasceu de uma relação com sua escrava, Agar. Seria o patriarca dos povos árabes. Com sara, sua mulher já idosa, Abraão teve Isaac, o patriarca dos hebreus, que a Bíblia define como “o povo escolhido” de Deus. Um filho de Isaac, Jacó, mudou seu nome para Israel, que significa “o homem que luta com Deus” ou “o homem que vê Deus”. Teve doze filhos – os patriarcas das chamadas doze tribos de Israel (págs. 23 e 24).

Esta é a semente comum das três religiões, todas tendo aquelas terras como seu berço. Tendo esta passada por inúmeras ocupações, o nascimento de Cristo se dá em meio ao domínio pelo Império Romano. O ambiente, os enfrentamentos, são descritos por Laurentino Gomes, que aponta os principais atores envolvidos.

A versão clássica de 1959
Um bom retrato de tal época pode ser visto no filme “Ben Hur”, tanto o original, com Charlton Heston como protagonista, representando o personagem que dá título ao filme, quanto a versão mais recente, que conta com Rodrigo Santoro no papel de Jesus. A família de Ben Hur era da casta real local, subordinada à Roma, que preferia a pax romana ao invés de lutar contra os invasores. Porém, nesse meio tempo surge Jesus, com sua mensagem de paz e amor, convivência e tolerância, não sendo bem visto tanto pelos sacerdotes locais por representar uma perda da liderança de seu rebanho, como também sendo interpretado como um possível líder rebelde. Ben Hur acaba envolto no conflito ao acobertar um membro dos zelotes, “(...) grupo mais radical, que pregava a resistência armada contra os romanos (...). De certa forma, o próprio cristianismo podia ser considerado uma seita ou dissidência do judaísmo oficial nos seus primeiros anos (...)” (pág. 47). Todos estes, presentes no filme aqui mencionado – romanos, sacerdotes, zelotes, etc.

O herói na luta pela sobrevivência, na versão de 2016
A saga de Ben Hur, após sua equivocada prisão, representa também a redescoberta religiosa do homem, na medida em que ele se afasta na luta pela sobrevivência diária, e procede com a reaproximação durante a jornada. Desse modo, a título de exemplo tanto político quanto religioso e sentimental, esta obra cinematográfica ajuda muito a compreender o turbilhão de emoções a que somos submetidos todos os dias, afinal, também lutamos pela sobrevivência diariamente, não!?


A sobrevivência, assim, mais do que um ato de força, trata-se também de um ato de fé. Somos confrontados a todo momento com as dificuldades da vida, e se não temos fé, não percebemos que são etapas necessárias de crescimento em nossa peregrinação rumo a felicidade, nossa e do próximo. “Quantos de nós, hoje, não reagimos assim diante do mistério e da revelação ante os nossos olhos? Preferimos seguir nossa rotina, cumprir nossos horários e obrigações diárias, sem perceber que, muitas vezes, há uma mensagem transformadora sendo transmitida em um olhar, uma frase, um sorriso, um gesto inesperado de bondade ou pelo céu estrelado sobre nossa cabeça em uma noite qualquer” (pág. 73).

Muitos são as ocasiões em que nos perdemos. Mas muitas também são as nossas oportunidades de reconstrução. Ultrapassar a maré alta para encontrar a tranquilidade em águas calmas requer muita força de vontade. E a vontade aqui pode ser traduzida por fé também. “Muitas vezes, basta uma pequena frustração, uma interrupção nos nossos planos ou uma simples palavra adversa para ventos impetuosos movam ondas gigantes na nossa alma. Perdemos a tranquilidade e o equilíbrio emocional e nos vemos prestes a submergir, impotentes e perdidos. Uma tempestade no coração nem sempre está relacionada a uma causa específica. Somos nós mesmos a origem das tempestades internas” (pág. 89).

E já como somos nós a origem de nossas tempestades, como apontado por Ludovico, o que devemos fazer para ser origem das nossas bonanças? Transformar problema em solução? Primeiramente temos que identificar que problemas são estes. Este é o primeiro passo.

Problemas

Dois dos males que mais afligem a humanidade têm suas raízes fincadas na falta da comunicação, do diálogo, e da importância que os bens materiais assumiram em nossas vidas. Ninguém aqui está dizendo que viver com o que de melhor o dinheiro pode oferecer é ruim. Mas enquanto esta for a principal mola propulsora para seus atos, o homem enfrentará mais problemas que soluções. Quando o dinheiro passa a ser exatamente o que é – um acessório em nossas vidas – a dimensão do que verdadeiramente interessa – o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo – encontra espaço para nos preencher da alegria de que necessitamos para viver. Os bens materiais passam assim a ser um bônus, e nada mais do que isso.

Como potestade, o dinheiro pode se assenhorear do coração do homem, estabelecendo com ele uma relação de senhor e servo. Engana-se, portanto, o homem que acha que possui o dinheiro; na realidade, é o dinheiro que o possui. (...) Mas não entrega o que promete; ao contrário, nos faz infelizes, insatisfeitos, endividados, egoístas, desconfiados, consumistas, sem amigos e insensíveis ao drama humano da miséria e da pobreza. Uma potestade que enfatiza o ter, impedindo-nos de viver com ideais elevados, valores éticos, de ver a nobreza das causas, de sonhar com um mundo melhor e ser ativos na promoção do bem comum (págs. 122 e 123).

O dinheiro, portanto, nos individualiza, na pior acepção do termo. O ser humano é ser sociável. Quando ele se enclausura, atrás de suas posses, ele perde a capacidade de dialogar.

Jesus Cristo, representado por Rodrigo Santoro (Ben Hur 2016)
Temos dificuldade de ouvir o outro. Às vezes, ouvimos de forma truncada e seletiva. Ou, então, simplesmente não ouvimos. Em outras ocasiões, nos expressamos mal, não conseguimos dizer tudo que desejamos ou simplesmente nos calamos. Há colocações fora de hora, palavras truncadas e interpretações equivocadas. Todo mundo fala, todo mundo ouve, mas ninguém se entende. Dos obstáculos à comunicação surgem as dificuldades no casamento, na família e na comunidade em que vivemos. O surdo e gago levado a Jesus representa cada um de nós em nossas dificuldades relacionais de compreender e ser compreendido (pág. 94).

Mas o que o futuro nos reserva? Que tipo de revelação temos que ter acesso para sair desta espiral de incomunicabilidade e ganância material?

Revelação

O texto do Evangelho nos diz que, logo depois da pesca milagrosa, Simão Pedro “prostou-se aos pés de Jesus dizendo: Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador”. O que aconteceu a Pedro continuou acontecendo a milhares de homens e mulheres ao longo da história, e até os dias de hoje. Encontramo-nos com Jesus Cristo e não conseguimos mais permanecer de pé, caímos diante Dele. Sua presença desarma nosso espírito e também nosso corpo. Algumas vezes, a experiência do encontro divino altera o batimento cardíaco, provoca uma lágrima no canto do olho ou um longo e profundo suspiro (pág. 83).

A revelação, processada como acima descrita por Ludovico, é apenas o estopim da mudança. Algo de milagrosa, algo de querer interior, não importa. O que vale aqui é que não se perca o momento e se possa seguir em frente, aproveitando esta oportunidade para construir um mundo melhor, a partir das próprias atitudes. “É um erro acreditar que Deus precisa de uma Igreja perfeita para realizar a obra da redenção” (pág. 79). Ele precisa de cada um de nós! “Deus nos confia uma missão, um chamado, uma tarefa. Ele nos quer a Seu serviço, espalhando Sua mensagem de amor e esperança por todo o mundo. Deseja que sejamos instrumentos em Suas mãos para construir um mundo melhor, mais pacífico, mais justo, com mais generosidade e solidariedade. É através do amor ao próximo que realmente encontramos um significado para a nossa vida” (pág. 86).

E será que, nessa jornada, na nossa peregrinação, nosso rebanho tem que ser de uma única ovelha? Será que esse esforço por transformar o mundo não seria melhor se fosse feito dividindo-o com aqueles que mais se importam conosco e vice-versa? Acredito que sim. Quanto mais bem acompanhados estivermos nessa linda aventura de escrever nossa própria história melhor. Porém, para “conhecer e definir alguém há que se aguardar paciente e silenciosamente que o outro se revele, se exponha, num processo lento e gradual. Só assim podemos ser visitados pela singularidade e unicidade do outro que se revela. Só então podemos descrever essa pessoa, ainda que de forma inconclusiva, a partir do conhecimento baseado no convívio e na amizade” (pág. 176). E a partir daí elegê-lo como um daqueles com os quais partilharemos as dores e as alegrias de nossa vida.

Enfim, o que o futuro nos reserva?

Dependendo dos objetivos que traçarmos, esta caminhada sofrerá mais ou menos desvios. As pedras, os obstáculos, serão tão maiores como os enxergarmos ou como venhamos a enfrentá-los.

“Para aqueles que aspiram a eternidade, Jesus Cristo diz que é amando que a alcançaremos. Não se trata de uma doutrina ou de uma religião, mas do exercício cotidiano de amar a Deus e ao próximo como a nós mesmos. A qualidade de nossos vínculos e dos nossos afetos são eternos. O amor é divino, perene, santo e jamais passará. A vida eterna tem a ver com nosso amor a Deus e o cultivo desse relacionamento através da nossa devoção e oração em segredo, isto é, fora do público. Mas também é amar e servir ao nosso próximo. Cuidar do próximo como cuidamos de nós mesmos. Isso é resultado do exercício possível da afetividade no dia a dia, em outras palavras, tem a ver com o aqui e o agora, com o chão da vida. Viver a vida cotidiana determina a nossa vida eterna” (pág. 102).


O livro de Laurentino Gomes e Osmar Ludovico nos serve, assim, como uma breve mensagem e indicação de como darmos os primeiros passos rumo à vida eterna. E com inspiração divina, tudo fica mais fácil.