terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Poder e Conhecimento na Economia Global

“[...] a fonte do poder na estrutura do conhecimento é a capacidade de desenvolver e adquirir conhecimento novo e negar acesso ao que se detém, combinada com a capacidade de controlar os canais pelos quais o conhecimento é comunicado” – GANDELMAN, 2004 – pág. 279.

Propriedade privada, propriedade comum e propriedade intelectual (PI). A obra de Marisa Gandelman, “Poder e Conhecimento na Economia Global – o regime internacional da propriedade intelectual, da sua formação às regras de comércio atuais”, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – 2004 – 317 págs. - gira em torno do eixo formado pelos conceitos que suportam estes três tipos de relacionamentos entre os criadores, suas obras e a sociedade em que estão inseridos.



O livro, baseado na dissertação de Mestrado em Relações Internacionais da autora, defendida em maio de 2002, foi resultado de uma extensa pesquisa, na qual a mesma teve a oportunidade de mesclar as teorias em torno da propriedade em si com o desenvolvimento internacional da temática relacionada à PI. Em meio às inúmeras obras visitadas pela autora dois especialistas surgem como os que incutiram maior influência nas idéias e conclusões alcançadas ao final: Susan Strange, por intermédio das obras “Cave! Hic dragons: a critique of regime analysis” e “States and Markets” e C. B. Macpherson, em “Property, Mainstream and Critical Positions”.

Na jornada empreendida por Gandelman muito úteis serão ao leitor a trajetória histórica da regulamentação internacional da PI em dois de seus principais campos – patentes e direitos de autor. A propriedade intelectual protege uma vasta gama de direitos gerados a partir da inventividade do homem. Além dos dois supracitados temos marcas, indicações geográficas – quem já tomou Champagne entende do que eu estou dizendo -, desenhos industriais, topografia de circuitos integrados, softwares, belas artes, etc. “A propriedade intelectual, em outras palavras, é um direito de propriedade privada sobre os produtos da mente humana” (pág. 114). Para um leigo na matéria específica, mas com um relativo domínio das teorias de Relações Internacionais (RI), será como navegar num novo mundo que se descortina com grande potencial para estudos posteriores. Para aqueles que conhecem PI, será o aumento de seu conhecimento em nível de detalhe sobre o tema em questão, observado sob uma nova ótica, a internacionalista. Estes, portanto, são os dois públicos alvos da autora, ambos nos quais estou inserido.

Tendo isso em mente faria duas críticas ao texto em termos de desenvolvimento – uma delas está diretamente relacionada ao viés adotada ex-ante pela pesquisadora; e outra na qual ela não tem “culpa”, digamos assim, pois foi prejudicada pelo timing histórico. Gandelman inicia sua dissertação abordando a Teoria dos Regimes. Tal fato já aponta para uma não-conformidade com o status quo vigente. Ao querer questionar como a sociedade atual lida – ou seja, o regime em voga – ela já induz um entendimento por parte do leitor de que este não deve ser adequado. Certamente as leituras de Strange e Macpherson influenciaram por esse tipo de abordagem. “Para Macpherson, a propriedade [...] é produto de circunstâncias históricas particulares e tem sua origem no surgimento da sociedade de mercado capitalista” (pág. 119). Mas o seu erro não está no fato de ter adotado uma determinada linha de pensamento. Todos têm o direito de pregar por uma determinada linha, porém numa obra que se diz científica, e que deveria pautar pela isenção de idéias a priori, o equívoco está em não explicitar isso desde o principio.

Por este caminho a autora acaba chegando à conclusão de que se faz necessário, para o bem da humanidade, que a PI deixe de ter seu desenvolvimento enquanto matéria pautada pelo incentivo à propriedade privada para focar na necessidade de se mudar o sistema em favor do estabelecimento desta como uma propriedade comum. Sabemos que tal discussão traz em seu bojo um antigo debate entre o que antes era conhecido como “esquerda e direita”, conceitos a meu ver deslocados no tempo, uma vez que os interesses econômicos não observam matizes políticas de nenhuma ordem, e tal dicotomia já se encontra ultrapassada no tempo. Ora, um país pode ter um Governo de “esquerda” que não necessariamente não deixará de buscar proteger os anseios de sua indústria nacional, que muitas vezes são pela proteção de sua propriedade privada. E quando isso se dá? Na medida em que o contexto em que tal “estrutura de poder” claramente é voltada para ser maximizada em favor daqueles que o detém. E se aqueles que o possuem são os que poderão fazer com que sua economia se movimente, que empregos sejam gerados e oportunidades abertas para toda a população, que Governo se oporia? Volto a dizer: teses que indiquem um retorno ao antigo debate entre o “capitalismo” e o “comunismo” se perdem no tempo, uma vez que o navegar do mundo atual já foi redirecionado para outras paragens. O que se busca atualmente é sim, como fazer com que o sistema seja mais igualitário, porém sem o radicalismo de alterá-lo em seu cerne. Propriedade Intelectual terá como força motriz, sempre, a propriedade privada. Ela pode ser privada, de propriedade de um Governo ou de uma Empresa, mas será privada. E mesmo em ambos os casos deverá ser um privilégio temporário, em favor da sociedade.



Em relação ao segundo erro, este não pode nem mesmo ser chamado assim. A autora foi prejudicada por estar, quando da escrita da dissertação, ainda em meio ao início de um debate de como a PI poderia dar conta de novos direitos. Um grande acerto de Gandelman foi observar a tendência desta em absorver, cada vez mais, outros tipos de “direitos” que até então não alcançava, como que numa ampliação de seu escopo de atuação (1). E essa tendência se dá justamente por conta de algo muito comum a todas as sociedades – a busca pela manutenção de um modelo, de uma lógica de atuação que valida um cenário vencedor. A “ampliação do conceito de propriedade (...) tem a função de manter uma determinada configuração de distribuição de forças na estrutura da economia política internacional” (pág. 227). Se este status quo, como dito acima, demonstra falhas, cabe a iniciativa de seus membros em alterá-lo de modo a que estas possam favorecer a todos de maneira mais igualitária. E foi isso que ocorreu em 2004, ou seja, dois anos após a defesa da dissertação aqui analisada.

Naquele ano, o Brasil, acompanhado de mais 12 países, teve a iniciativa de apresentar, perante a Assembléia Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI – www.wipo.int), agência especializada das Nações Unidas, um documento denominado “Agenda para o Desenvolvimento”. Este prega que a propriedade intelectual não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para o desenvolvimento socioeconômico dos países. A própria autora antecipou este movimento ao caracterizar uma crise de regime como sendo “quando o hegemônico está em decadência, passa a dar prioridade aos seus interesses particulares, em detrimento da promoção do bem coletivo que é a estabilidade da ordem” (pág. 45).

Desse modo o Governo Brasileiro não tentava mudar o sistema em si, mas como ele vinha sendo conduzido, tentando aproximá-lo para as teses defendidas pelos países em desenvolvimento, reflexo de algo que ocorria, pelo menos, desde a década de 70 do século passado, quando a Organização da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) liderou a redação de um estudo sobre o relacionamento entre PI e transferência de tecnologia que não era necessariamente bem visto pela própria OMPI, que “(...) não só discordava da crítica que o estudo fazia ao sistema internacional de proteção às patentes, como não acreditava na necessidade de tais mudanças apontadas em favor dos países em desenvolvimento” (pág. 192). Tal acontecimento político-diplomático gerou uma série de desdobramentos, mas o maior deles, a meu ver, foi justamente consolidar a possibilidade de se alterar o status-quo preservando o que ele tinha de melhor em benefício do povo brasileiro. Talvez, quem sabe, esse seja o “modo suave” de se alterar o sistema, atuando por dentro do mesmo, numa nova versão, um pouco mais hard do que a pregada por outro especialista, Joseph Nye, em sua emblemática obra “O Paradoxo do Poder Americano” (2). Quem viver, verá.

(1)       Um dos exemplos desta tendência é a discussão em torno de como proteger os Conhecimentos Tradicionais. Entendem-se como tais àqueles gerados no seio de comunidades indígenas, ribeirinhas, etc, os quais vêm sendo explorados sem ter o devido reconhecimento e retorno para aqueles que são os legítimos proprietários originais. A tentativa de adequação desta nova propriedade enquanto privada, uma vez que ela parte de um berço comunitário – não existe um dono único – traz dificuldades para os especialistas na matéria. Talvez uma solução para tal dilema seja o devido entendimento de que “propriedade privada” não significa necessariamente excluir a “propriedade comum” e vice-versa.


(2) Editora UNESP, São Paulo – 2002 – 293 pgs. Nye defende que um dos instrumentos de poder americano é o chamado “poder suave” (soft power). Os EUA, ao influenciarem o mundo com sua cultura, por intermédio de seus filmes, músicas, etc, fariam com que, pouco a pouco, outras sociedades e Governos ambicionassem ter o seu mesmo nível de qualidade de vida, pautando suas decisões pelas teses norte-americanas.

sábado, 14 de dezembro de 2013

O Clube do Livro do Fim da Vida

Se usava as suas emoções para alguma coisa, era sempre em fazer o que precisava ser feito. Eu tinha que aprender essa lição enquanto ela ainda estava ali para me ensinar. Pág. 172, SCHWALBE, 2013

Um dos grandes dilemas da minha vida é lidar com o fim da própria. Por vezes fico observando as pessoas andando na rua e penso como cada uma delas lida com a finitude de nossa existência. Ou como, simplesmente, não lidam. Vivem suas vidas sem pensar no amanhã, aproveitando cada momento.

O mais cruel dessa análise é que, ao mesmo tempo em que observamos a passagem dos dias, semanas, meses e anos, expostos na nossa face e na dos entes queridos, temos que ter noção de que tudo pode acabar num átimo de segundo, que não dominamos os nossos “prazos de validade”. E que o ideal seria, então, darmos valor para as coisas boas da vida, agradecendo a cada instante e às pessoas queridas que nós tenhamos a nossa volta todas as experiências (e “a experiência”) que elas usufruíram para conosco.

A lista de nossos colegas falecidos no verso do programa fica cada vez mais comprida; as beldades da classe viraram bruxas gordas ou ossudas; tanto os astros do esporte quanto os não atletas deslocam-se com a ajuda de marca-passos e joelhos de plástico, aposentados e ocupando espaço numa idade em que a maioria de nossos pais estavam atenciosamente mortos. [...] Mas não nos vemos desse jeito, capengas e velhos. Vemos crianças do jardim de infância – os mesmos rostos sadios e redondos, as mesmas orelhas em concha e olhos de cílios compridos. Ouvimos os gritinhos alegres durante o recreio da escola primária, [...]. Trecho de As Lágrimas do Meu Pai: e Outros Contos – John Updike, citado entre as págs. 257-258, SCHWALBE, 2013.

Mas o que ocorre quando, num determinado contexto, nós somos brindados com a possibilidade de “saber” que algo vai terminar? Ou que alguém do qual nós gostamos muito – amamos – irá se despedir de nós para sempre? Toda uma série de parâmetros sobre como enfrentar a vida são colocados de cabeça para baixo. Passamos então a buscar algo que nos coloque de volta nos trilhos, que nos reverta para o eixo sobre o qual pautávamos nossa vida, para dessa forma saber enfrentar bem esse período, essa passagem, que nos dê mesmo algumas “dicas” de como superar essa luta e olhar para frente.

É sobre isso que trata a obra “O Clube do Livro do Fim da Vida”, de Will Schwalbe – Ed. Objetiva, 292 págs. – 2013. É um livro biográfico. Não, não é auto-biográfico, pois trata de como Schwalbe enfrentou a notícia de que sua mãe estava com câncer e que talvez tivesse poucos meses de vida. Mas não somente sob a ótica dele, como também sob a ótica dela, interpretada pelo autor. O livro não é focado nele, mas sim nela, e nos livros que ambos partilharam neste período, e como ambos – ela e os livros – trouxeram um norte para a vida dele.

Enquanto estava escrevendo este livro, me deparei com meu exemplar de O Preço do Sal (1). E achei um pedaço um pedaço de papel com uma carta que mamãe escrevera: “Todos nós devemos a todo mundo por tudo que acontece em nossas vidas. Mas não é como ter uma dívida para com uma única pessoa – de fato devemos a todo mundo por tudo. Nossa vida inteira pode mudar num instante – portanto, cada pessoa que impede que isso aconteça, por menor que seja o papel que ela exerce, também é responsável por tudo. Somente por dar amizade e amor, você já impede que as pessoas à sua volta desistam – e cada expressão de amizade ou amor talvez seja aquela que faz toda a diferença”. Pág. 187.


Todos vocês sabem que sou um apaixonado pelos livros – senão nem mesmo um blog como este existiria. A importância deles na minha vida é enorme, são marcos de etapas vividas. Cada um deles em minha estante conta um pedaço da minha história, além das próprias estórias inseridas neles mesmos. Sentimentos que foram gerados, lições aprendidas, conceitos entendidos, crescimento pessoal enfim.

Mas, no meu caso, ainda é uma experiência individual, particular – e eu mesmo, provavelmente, prefiro que seja assim. No caso de Schwalbe, ao contrário, foi algo que ele desfrutou com sua mãe, no formato “clube do livro”. Este trata-se, normalmente, de um grupo de pessoas que se compromete a ler uma determinada obra num prazo específico, para debaterem sobre a mesma numa data a ser estipulada.

Esta obrigação talvez seja o que me afasta de uma dinâmica como esta. O livro para mim é um momento de relaxamento, de introspecção para comigo mesmo. Algo que me ajuda a compreender o que está ocorrendo ao meu redor, porém com um olhar externo que se mistura com as minhas próprias percepções e preconceitos, algumas vezes até mudando a minha visão das coisas.

Mamãe me ensinou a não desviar os olhos do pior, mas sim acreditar que todos podemos fazer melhor. Jamais vacilou em sua convicção de que os livros são a ferramenta mais poderosa do arsenal humano, de que ler todo tipo de livros, qualquer que seja o formato escolhido [...], é o maior entretenimento de todos, e também é como você participa da conversa humana. Ela me ensinou que você pode fazer uma diferença no mundo, e que os livros realmente importam: é com eles que sabemos o que precisamos fazer na vida, e como dizemos isso aos outros. Ela também me mostrou, [...], que os livros podem ser o modo como nos aproximamos uns dos outros, e continuamos próximos [...]. Pág. 283.


Porém, para Schwalbe foi fundamental este diálogo. Através dele pode compreender a criatura maravilhosa que tinha ao lado em torno dos seus mínimos aspectos. Soube, inclusive, identificar os limites, a fronteira que não poderia ser ultrapassada em torno das suas reminiscências, respeitando a individualidade da sua mãe. Ela, uma guerreira em favor da educação e que já havia prestado tantos serviços voluntários mundo afora, de repente, sem perceber, era objeto de um voluntariado prazeroso, a partir do próprio filho.

Percebi que, durante o tempo restante que tinha com minha mãe, precisava me concentrar mais – tomar cuidado de não interromper nossas conversas com outras conversas. [...] Mas a vida moderna em si é uma máquina de interrupção: telefonemas, e-mails, SMS, notícias, televisão e nossas próprias mentes inquietas. O maior presente que você pode dar a alguém é sua atenção indivisa [...]. Pág. 170.

Ora, este é um livro que vocês sabem o final desde que começam lê-lo, assim como a sua “personagem” principal o sabia – ela tinha por hábito ler os finais antes de começar o livro. Mas este final foi apenas o começo do entendimento de Schwalbe – um ex-editor de livros a se dedicar a um site sobre culinária – sobre como determinadas obras podem mudar vidas. A obra maior que ele leu foi a vida da sua mãe. E a leu tão bem que soube descrevê-la com destreza, deixando um legado para que outras pessoas também pudessem aprender com ela, desde as grandes lições expostas acima, até as mais triviais, que nos moldam como seres humanos:




Muitas vezes penso nas coisas que mamãe me ensinou. Arrume a cama toda manhã – não importa se você tem vontade ou não, faça isso e pronto. Escreva mensagens de agradecimento imediatamente. Desfaça a mala, mesmo se só vai passar uma noite no lugar. Se você não está dez minutos adiantado, então está atrasado. Seja alegre e escute as pessoas, mesmo que não esteja com vontade. Diga a seu cônjuge (filhos, netos, pais) que você o ama todos os dias. Use forro protetor dentro das gavetas. Mantenha uma coleção de presentes à mão, [...] para sempre ter algo para dar às pessoas. Comemore ocasiões. Seja bondoso. Pág. 282

OBS.: Coincidentemente, logo após ter ganho este livro pude ler uma análise sobre o mesmo e o seu impacto na coluna de Barbara Soalheiro, na Revista Vida Simples, da Editora Abril – edição de Novembro – “A Melhor Ideia do Mundo é Simples” – Pág. 63. Barbara teve a oportunidade de assistir uma palestra do autor, Will Schwalbe, e dela retirou alguns ensinamentos, dos quais ressalto dois: “(1) venha o que vier, uma coisa não deve mudar: ler é como nós instalamos novos softwares nessa máquina chamada de cérebro. ‘Se você não tem tempo de ler, acorde uma hora mais cedo’. [...] (3) Conversas sobre um livro são sempre as mais interessantes que se pode ter com alguém; elas são capazes de te aproximar do outro de um jeito profundo, estreitando a comunicação e diminuindo o vão que sempre existe entre nossos modos de ver o mundo. ‘Ler é o oposto de morrer’, finalizou ele”.


        (1) O Preço do Sal (The Price of Salt) – Patricia Highsmith.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

SEGUNDOS FORA

Uma obra que juntasse duas das minhas maiores paixões – esporte e literatura – sempre terá um lugar cativo no meu coração. O livro “Segundos Fora” (248 págs, Ed. Companhia das Letras, 2012), do argentino Martín Kohan, tem essa característica. Ele pauta sua narrativa tendo como fio condutor central uma luta de boxe realizada no início do século passado (1923) valendo pelo título mundial dos pesos pesados entre o campeão Jack Dempsey e o argentino Luis Angél Firpo. Porém, este fio constrói o laço que costura uma série de aspectos que aparentemente somente poderiam ter sido escritos por um autor latino-americano.

Uma foto da luta que, em que pese ser uma obra de ficção, realmente ocorreu.

O senso de humor ácido é uma das características presentes. Isso fica mais claro nas partes mais hilárias do livro, quando dois jornalistas, colegas de trabalho, Verani, especialista em esportes, e Ledesma, especialista em artes, discutem sobre o que tem mais valor na vida. Àquele tendo como gancho principal a luta acima citada, e este último trabalhando o relacionamento entre Strauss e Mahler. Óbvio que pelas suas predileções a visão sobre o que realmente importa e como influencia cada um dos aspectos de nosso cotidiano difere enormemente. Porém, nesse duelo de palavras nunca se perde a fleugma, o olhar superior tipicamente argentino – em que pese eles não estarem localizados em Buenos Aires, o que para os platenses poderia ser motivo de discordância da minha opinião.

A capa e a verossimilhança com a realidade

Um outro aspecto característico é a ousadia latino-americana de buscar novas formas de narração de uma mesma estória. Kohan usa e abusa dos flash-backs, uma vez que ele apresenta a trama sob o olhar dos diferentes personagens. Para tanto ele tem o grupo de jornalistas – dos quais se incluem os personagens acima citados, Verani e Ledesma - que em 1973 passam a debater sobre o impacto da luta em relação à morte de um músico da orquestra de Strauss que iria tocar 50 anos antes, em Buenos Aires.

Porém, para demonstrar como o destino cruza diferentes estórias a partir de um mesmo ponto, o autor demonstra ser necessário passar o sentimento de que aqueles que muitas vezes participam de um evento não têm a mínima noção do impacto que este pode gerar sobre terceiros. Para tanto ele retrocede 50 anos e mostra luta pela visão de Jack Dempsey, do árbitro, e de um dos jornalistas que a cobria. Dessa forma ele cria dois núcleos distintos, desconectados, porém que possuem como ponte o impacto de um evento esportivo sobre a vida de várias pessoas ao mesmo tempo sob distintas óticas.

Ora, muitas vezes pequenos atos, pequenas covardias ou malvadezas que imaginamos afetar apenas os nossos diminutos círculos de convivência podem gerar o tal “efeito borboleta” (1) e alcançar vidas alheias distantes no espaço e no tempo. Quem melhor que um latino-americano, com a magia da literatura fantástica na veia – da qual um dos maiores exemplos seria “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, de Jorge Amado – para buscar tais aspectos?

Seria Martin Kohan mais um autor da literatura fantástica tão tipicamente latino-americana?

“Segundos Fora”, assim, se demonstra um livro que deve ser saboreado principalmente durante o seu percurso, sem o objetivo de se alcançar o final, pois sua força está justamente em demonstrar como a vida humana é travessa e cheia de descaminhos. Poderia ainda dizer que traz como lição a possibilidade de sermos tolerantes com as diferenças. Tal característica poderia ter tornado a vida dos seus personagens principais mais leve, e esta lição é dada justamente se utilizando como ferramenta o contra-exemplo, ou seja, como a intolerância entre eles (e para com eles mesmos) fez com que, por intermédio do seu (mau) humor, desperdiçassem oportunidades.

Para finalizar, um trecho em que Ledesma, exasperado pela contínua insistência de Verani em comparar a importância de uma luta de boxe (e sua influência) com o valor histórico da música erudita, traduzindo tal postura como uma ditadura de massa, o faz trazendo à baila um sentimento anti-peronista. Ou seja, mais argentino, impossível:

Ledesma se explicou: os senhores, disse-lhe sem esclarecer o porquê do plural, sempre acreditam que têm o direito de controlar todas as coisas. Usava o plural porque não se tratava de um problema pessoal com Verani. O problema era mais amplo, e Verani era simplesmente um caso: os fanáticos do futebol, do boxe, da música do Club del Clan e de Perón e Evita sempre se acham no direito de controlar todas as coisas. [...] Totalitários, rosnava Ledesma, e ainda bem que Verani não retrucava. São uns totalitários, passam por cima de tudo. Por isso essa certeza que o senhor tem agora, disse a Verani, mas baixando o tom, de que se Firpo e Dempsey estavam lutando ninguém tinha essa possibilidade, nem muito menos o direito, de manter-se à margem da coisa(pág. 122)


Não consigo deixar de pensar no sentimento evocado por aqueles que não gostam de Carnaval durante o reinado de Momo; ou daqueles que não gostam de futebol durante o período da Copa do Mundo; ou até mesmo aqueles que não acompanharam a novela “Avenida Brasil” durante sua transmissão ou que não têm interesse na próxima luta de MMA. Eu mesmo sou um fanático por esportes e não posso exigir dos outros que tenham a mesma visão de como tal aspecto afeta o meu jeito de ser e de ver a vida. Tolerância, enfim, é disso que precisamos.

 (1) O Efeito Borboleta é uma expressão utilizada na Teoria do Caos para fazer referência a uma das características mais marcantes dos sistemas caóticos: a sensibilidade nas condições iniciais. (...) O fenômeno da sensibilidade em relação a pequenas perturbações nas condições iniciais foi descrito através de uma alegoria, apelidada de Efeito Borboleta, segundo a qual o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um sequência de fenômenos meteorológicos que provocarão um tornado no Texas. Fonte: http://www.significados.com.br/efeito-borboleta/

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Vento pela Fechadura

O resgate de lembranças da infância são artifícios usados por diversos escritores. Ora como inspiração para um obra ficcional, ora como um gancho para iniciar um relato biográfico, quer seja do próprio autor como de um possível biografado. Na obra “O Vento pela Fechadura”, de Stephen King (283 págs, 2013), editado pela Objetiva, o escritor norte-americano enveredou por uma terceira alternativa: a das lembranças de infância do próprio protagonista.

King teve essa possibilidade em função de que o livro em questão trata-se de uma retomada de uma série considerada pelo próprio o grande épico de sua carreira, “A Torre Negra”. Formada até então por sete livros (1), o autor se sentiu motivado talvez por uma grande quantidade de especulações na mídia especializada sobre a possibilidade de adaptação de mais esta obra de sua lavra para uma série ou um filme (2).

Dessa forma, ele volta novamente seu olhar e sua criatividade para narrar mais uma aventura do pistoleiro Roland Deschain e seu Ka-Tet, como ele chama o pitoresco grupo que o acompanha pelo caminho do Feixe de Luz em busca da supracitada Torre. Tal grupo é formado por Susannah, Eddie, Jake e Oi, uma espécie de mascote que, se um dia a obra for realmente retratada nas telas, poderemos desvendar se é mais parecido com um furão ou com um cachorro. Por enquanto parece, no imaginário de um leitor como eu, um misto das duas coisas. É assim num mundo do realismo fantástico como o de Gilead.

A obra e a série

Como alguns de vocês já puderam perceber, esta é uma estória que tem como público alvo não apenas os admiradores das obras de terror já escritas por King, mas também um grupo de leitores arregimentados ultimamente, mais para infanto-juvenil, com novelas repletas de vampiros, lobisomens, etc. Ok, não me parece ser para todos, mas quem gosta de adrenalina – e de um bom velho Oeste – encontrará as referências necessárias para acompanhar o enredo do início ao fim.

No que diz respeito exatamente à saga descrita em “O Vento...”, tratam-se na verdade de um típico três em um. Num momento em que o Ka-Tet se refugia de uma borrasca, o protagonista, Deschain, aproveita para contar uma estória passada em sua infância. Em meio a esta história, ele mesmo, mais jovem, conta uma outra estória. Nas três o vento é como um personagem sempre presente, dando significado para sua continuidade através dos tempos, metáfora para boas lembranças – tal qual quando sentimos uma brisa soprar e ela nos traz memórias esquecidas - mas também para o fato de que tudo passa, e a vida continua. Segundo King esta obra se encaixa na série perfeitamente: “Para os antigos leitores, este livro deve ser colocado na prateleira entre Mago e Vidro e Lobos de Calla... o que o torna, creio eu, A Torre Negra 4,5.”

Stephen King

Devo confessar ainda um desejo secreto: se algum dia a estória da “Torre Negra” for realmente adaptada para o cinema – e ela é tão longa que somente uma adaptação, a não ser que os produtores aceitem algo do tipo a série “Guerra nas Estrelas” – que ela seja colocada na mão de Quentin Tarantino. Tenho certeza, ainda mais depois de “Django” (2012) que ele é a pessoa certa para a empreitada. E eu ficaria muito grato pela junção de dois artistas do meu agrado.

Por último, posso repetir, ipsis literis, o que o próprio King afirmou – este na qualidade de escritor - no prefácio que, eu, enquanto leitor “(...) adorei descobrir que meus velhos amigos tinham um pouco mais a dizer. Foi um presentão encontrá-los novamente, anos depois de pensar que suas histórias estavam contadas”.

(1)     Série “A Torre Negra”: Vol. 1 = O Pistoleiro / Vol. 2 = A Escolha dos Três / Vol. 3 = As Terras Devastadas / Vol. 4 = Mago e Vidro / Vol. 5 = Lobos de Calla / Vol. 6 = Canção de Susannah / Vol. 7 = A Torre Negra.
(2)     Seria interessante relembrar que além de um escritor consagrado ele teve diversas obras adaptadas por ele próprio para as telas, sendo as mais antigas e talvez conhecidas “O Iluminado” e “Carrie, a Estranha”. Para mais detalhes ver http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-37782/filmografia/

domingo, 29 de setembro de 2013

As Regras da Casa de Sidra

Os escritores, assim como os músicos, recebem influências a todo momento, influências estas que são transportadas diretamente para o teor de sua obra. Quando os samplers viraram moda, muitos foram os músicos que buscaram em suas raízes o redesenho, uma releitura, de determinadas músicas, abusando algumas vezes até de trechos inteiros de suas obras originais, literalmente.

A primeira impressão que temos ao ler “As Regras da Casa de Sidra”, de John Irving (Ed. Rocco, 2013, 671 páginas) é justamente esta. Não somente pelo estilo, mas como também, de certa maneira, o autor assume por diversas vezes no decorrer da estória obras e autores que estiveram presentes em sua mente quando a criou:

Dickens era um favorito pessoal do Dr. Larch; não era por acaso, é claro, que tanto Great Expectations quanto David Copperfield falassem de órfãos. (“O que mais se poderia ler para um órfão?”, indagou o Dr. Larch em seu diário.) – pág. 39

O estilo detalhista e rebuscado de Dickens se faz presente a todo momento. Mais a frente outra autora – Emile Brönte e sua obra, Jane Eyre, também é citada – porém, de uma verve muito parecida. Muito provavelmente o tema central do livro – o desabrochar para a vida de um órfão – tenha sido a centelha que fez reavivar em Irving tais referências.


Especificamente em relação ao livro, vencer a sua primeira metade exige do leitor um entendimento de que o vagar na narrativa serve a um propósito: a dar todo o entorno para uma aceleração de embate existencial dos seus personagens centrais na sua segunda metade. Dessa forma, há que se ter paciência e entender este universo, o que não é nada fácil para um livro de mais de 600 páginas, devo confessar.

Homer Wells é o menino mais velho de um orfanato localizado no interior dos Estados Unidos – Saint Cloud é o nome da instituição. Ele vive o dilema entre ter sido treinado com zelo pelo médico e administrador principal, Dr. Larch, na prática do aborto consentido, e sua paixão pela vida. Anseia sair daquele casulo para então encontrar um verdadeiro sentido para sua vida.

No desenrolar da estória, após identificar o que entende ser uma possível saída junto a uma família proprietária do negócio de produzir maçãs – daí a menção à Casa de Sidra – descobre um outro dilema – como amar, sem culpa, aquela mulher do seu “irmão” postiço, que para complicar um pouco mais a equação, também demonstra um bem querer em relação a ele.

Tais dilemas apontam claramente para o que foi a traduzido de maneira fiel no título do filme gerado a partir dessa obra: “Regras da Vida”, tendo Tobey Maguire e Charlize Theron nos papéis principais (é fácil imaginar Maguire – mais conhecido pelo papel de Peter Parker, alter ego do Homem-Aranha, na trilogia anteriormente desenvolvida pela Marvel – vivendo o papel de Homer Wells). Enfrentamos “dilemas” durante toda nossa vida porque estamos presos às regras estabelecidas pelo convívio em sociedade, na comunidade em que vivemos. Se tais regras não existissem – ou se não as aceitássemos abertamente – tais dilemas não existiriam.

John Irving ao ganhar o Oscar por roteiro adaptado para sua obra "The Cider House Rules"

Muito do inconformismo do ser humano está ligado a querer caminhar para a esquerda quando todos caminham para a direita. Irving, com sua obra, demonstra a construção da personalidade se dá através de uma árdua caminhada que tem muitas esquerdas e direitas, e que não necessariamente a escolha perante uma determinada encruzilhada significa que você fugiu ao seu destino. Apenas escolheu uma trajetória mais longa, mas o destino estará lá, te esperando.

Tais escolhas é que fazem da nossa vida uma cesta intensa de emoções. Se escolhemos um determinado caminho e este se apresenta extremamente repleto de aventuras, não significa que não as teremos quando optamos pelo outro lado, que a princípio pode se mostrar monótono, mas é apenas uma etapa a ser vencida rumo a novos e intensos sentimentos. O que nós não podemos é fazer com que as regras impostas sejam barreiras para as nossas melhores escolhas.

Michael Caine como Dr. Wilbur Larch e Tobey Maguire como Homer Wells

O personagem do Dr. Larch – mentor intelectual de Wells – na primeira parte do livro, representa, de uma certa forma esse ideário. Seu jargão principal era que todos “deviam ser de utilidade” para a sociedade. Mesmo que esta sociedade não entenda o papel que você está exercendo. Ele cria suas próprias regras para isso, não se importando com as leis e costumes da comunidade em que está inserido, porque está convicto de que está fazendo o bem a ela própria.

A mensagem que fica, portanto, está montada no seguinte tripé: o amor pelo próximo acima de tudo / fazer o bem a todos, mesmo que estes não compreendam suas atitudes / as regras são úteis, desde que não sejam fonte limitadora da liberdade de opções na definição pelo melhor para as nossas vidas. E aí, vai encarar?


OBS.: vale a pena, caso você esteja numa livraria com a possibilidade de folhear o livro, ver o inconformismo de Larch com o que a sociedade faz a si mesmo e o seu didatismo, levando-o a escrever 4 regras básicas para o uso de preservativos – págs. 456-457. Um momento hilário em meio a uma revolta.

sábado, 21 de setembro de 2013

Taxi Libre: agenda de un taxista

Transporte urbano. Este talvez seja um dos grandes dilemas da sociedade moderna. A qualidade de vida é diretamente medida, dentre outros indicadores, pela possibilidade de deslocamento rápido de um ponto a outro da cidade, qualquer que seja sua origem e seu destino. Em tempos de estrutura precária em termos de opções para o transporte coletivo – todos sempre cheios, ou todos com atrasos, ou em estado precário, ou pior, tudo isso junto – a depender do custo associado, os táxis acabam ganhando uma preferência particular para aqueles que podem suportá-lo em termos financeiros.

Buenos Aires é uma dessas cidades que estão neste grupo. Repleta de taxistas, para todos os gostos, e com a comparativa valorização cambial em favor do real, propicia aos brasileiros a alternativa de uso pelos “amarillos y negros” para o deslocamento fácil numa capital que pouco a pouco vai se tornando tremendamente conhecida para nós, tal o afluxo de turistas que todo ano para lá se dirige. Eu mesmo, por questões profissionais, já estive por lá muitas vezes nos últimos anos, e sempre me utilizei dos táxis da cidade para deslocar, sem utilizar nenhuma outra opção.

Um livro descortina o universo dos taxistas portenhos: “Taxi Libre: agenda de un taxista” – Mario Aramburu – Editorial de Arte – 2012 – 96 págs. Aramburu, Presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial da Argentina, figura singular com a qual tenho o prazer de conviver profissionalmente, tem como principal característica pessoal um humor sarcástico – para alguns talvez ácido demais – que, uma vez sendo assimilado de maneira afável, torna-se um grande companheiro para boas histórias.

Don Mario Aramburu

Com esse olhar, nada mais natural para ele que se identificar com o humor característico e as histórias relatadas pelos taxistas de Buenos Aires. Tais histórias, muito provavelmente, encontram similitude com esta mesma classe em outros países. Porém, bem o sabemos que cada povo guarda um certo traço peculiar, e nossos vizinhos, com os quais travamos relacionamento há séculos, já marcam sua presença pela picardia típica do Rio do Prata, identificando os pontos fracos do “adversário” para poder marcá-lo em sua argumentação e convivência. Quando isto é feito com o devido bom humor, sabendo-se compreender seu contexto, estamos inseridos então num ambiente de confortável viver.

Por experiência própria posso lhes dizer que a tão divulgada rivalidade entre brasileiros e argentinos, que gera uma constante fonte de piadas de ambos os lados, se atém na maior parte das vezes ao mundo esportivo. Acredito que ambos os povos já notaram – e aqui não se encontra nenhuma avaliação em termos governamentais, devo dizer, mas sim humanos – que somente juntos poderão construir um futuro melhor para suas respectivas sociedades. Temos inclusive uma província deles aqui no Brasil, chamada Búzios, muito bem freqüentada por todos, sem nenhum tipo de problema.

Um típico táxi de Buenos Aires

Este contexto acima apontado por mim foi reforçado justamente nas duas últimas viagens feitas à Buenos Aires, à bordo dos táxis daquela capital. Tive pelo menos três ótimas conversas com taxistas daquelas cidades – uma sobre futebol, é claro, e a qualidade da seleção deles, outra sobre economia (e como os brasileiros vêem a situação econômica de nossos vizinhos) e a evolução das mulheres na sociedade. Este último, em especial, teve o seguinte dizer: “Se hoje em dia um homem anuncia para sua mulher que irá sair de casa ela lhe diz – ‘Vá, vá logo, tome o cartão do meu advogado e não me procure mais’. Não existe mais aquela mulher que fica se lamentando...”.

São histórias como essas que encontramos em Taxi Libre. Aqui, abaixo, um pequeno trecho para aguçar sua curiosidade, en bueno español:

Ese diván circunstancial y ambulante en que a menudo se convierte un taxi, tiene un ida y vuelta. [...] Ese día Ramón andaba con ganas de hablar y aprovechó al primer pasajero con cara de saber escuchar para hablar contar sus problemas, sobre todo amorosos. [...] El pasajero asentía con monosílabos. Con algún que outro ‘hum’ que era como una invitación a seguir hablando y Ramón siguió. [...] Pero ya estaban llegando a Salguero y Güemes, el corazón de Villa Freud como se la llama en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y el pasajero, sin mediar palabra le alcanzó junto con el precio del viaje una tarjeta: “Germán Goldberg, psicoanalista”. Debajo una dirección y un teléfono. Y le dijo: - Te espero el lunes, son cien pesos la sesión, pero por ser vos te voy a cobrar ochenta. En esse mismo momento Ramón juró no confesarse jamás con pasajeros de aspecto comprensivo.

(Confesiones al volante – págs. 76-77)

sábado, 14 de setembro de 2013

INFERNO

Qual é o conceito, a definição, de um best seller? Em tempos de que a indústria da mídia é tão interconectada – em todos os sentidos que esta palavra pode ter – um livro pode ser apenas a semente de uma geração multimilionária de dividendos. Os beneficiados: o autor, os editores, eventuais produtores de filmes baseados naquele livro, atores que dão vida a personagens famosos, etc. Mas a pergunta central que fica é: o leitor, que benefício ele extrai de todo esse movimento?

A relação entre a obra e o autor, quando iniciada sem nenhuma pressão, tem como vínculo maior o nível de exigência que o criador tem sobre a criatura. Se o autor é tremendamente autocrítico, irá burilar a obra até que esta atinja um nível de excelência mínimo para o seu gosto. Porém, a peculiaridade dessa relação se inverte a partir do momento em que a obra se torna maior que o autor.

A exigência advinda dos editores, dos produtores, dos leitores, da sociedade em geral, enfim, cresce à medida da expectativa gerada em torno da obra. Quando um determinado autor alcança um sucesso estratosférico, o entorno contribui para que este seja pressionado além de sua própria consciência enquanto criador. Este passa a ter que dar conta de uma ansiedade à quinta potência que está no ar em torno do que ele apresentará como seu próximo produto.

Esta lógica se aplica em dois estratos do mundo literário: àquele em que se localizam os autores reconhecidos por sua qualidade pelos seus pares, normalmente circunscritos a um nicho de mercado e atingindo, além dos especialistas, um grupo muito seleto de leitores, formadores de opinião; e o outro, que consegue quase o caráter de super-estrela, por gerar os valores ambicionados no mundo do entretenimento, já que são absorvidos por uma grande massa de leitores. Temos aqui escritores que têm normalmente suas obras transformadas em filmes, documentários, séries, etc.

Neste segundo grupo encontramos “Inferno” (2013, 448 págs), obra de Dan Brown, editado aqui no Brasil pela Arqueiro (SP). Trata-se de mais uma saga tendo o simbiologista Robert Langdon como personagem central. O grande sucesso gerado pelo “O Código da Vinci” – que proporcionou um filme estrelado por Tom Hanks – fez com que Brown criasse sobre si todo aquele peso da expectativa apontado acima. Neste momento é que ele é desafiado a responder a seguinte pergunta: se enclausurará numa fórmula bem sucedida, para continuar rodando a máquina calculadora bancária, não se atendo tanto aos detalhes, uma vez que a paixão dos fãs deixará passar determinadas falhas? Ou buscará cada vez mais o requinte, absorto na qualidade de sua obra, criando automaticamente uma devoção cada vez mais crescente pelos seus admiradores?

O autor e sua obra

Infelizmente, no caso de Brown, me parece que a primeira - e mais fácil - opção prevaleceu. Em “Inferno” somos jogados em meio a mais uma corrida desenfreada de Langdon para desvendar mistérios atrás de mistérios, todos eles codificados em mensagens enigmáticas em obras de arte – ou principalmente naquela que serve como fio condutor, “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. O segundo elemento que serve de gancho para a série de Brown é o detalhismo na descrição de locais espalhados pelo mundo – nesse caso, Florença, Veneza e Istambul.

Baseando-se, portanto na fórmula bem sucedida de seus dois últimos livros com o mesmo personagem – acrescente-se ainda “O Símbolo Perdido”, passado Washington – Dan Brown parece ter se acomodado sobre o seu receituário. Os fãs do gênero certamente se encontrarão plenamente satisfeitos pelo que foi apresentado, porém, para um leitor mais atento, não passará despercebido que em pelo menos dois momentos do livro – fora o fato da trama girar em torno de uma ameaça mais chegada para um filme de James Bond – a existência de viradas de roteiro, no mínimo forçadas, como se ele estivesse corrigindo uma rota da qual teria perdido o controle. Uma delas girando entorno da Diretora Geral da Organização Mundial da Saúde, no livro sendo a personagem Elizabeth Sinskey; e a outra naquela que seria a co-estrela da trama, uma jovem médica chamada Sienna Brooks.


O que posso dizer, afinal? Tendo em mente o objetivo a que se presta – assim como quando você escolhe qual filme está a fim de assistir no fim de semana, um somente para relaxar e rir, ou aquele que o faz pensar – “Inferno” pode ser o dito cujo para alguns leitores mais exigentes. Mas, com certeza, agradará e prenderá aqueles que anseiam pela correria de Langdon entremeada pela aula de cultura grátis que Brown nos oferece em meio ao desenrolar de sua estória. Isto é, cada um tem o Paraíso que merece – e busca. Eu espero sempre mais, mas acompanhado do melhor, em termos de qualidade. E a qualidade, para o meu critério, caiu nessa última obra de Dan Brown. Melhor sorte da próxima vez.

domingo, 14 de julho de 2013

A BÍBLIA: UM DIÁRIO DE LEITURA

Estamos em Julho de 2013, às vésperas da Jornada Mundial da Juventude, um dos maiores eventos da Igreja Católica. Desta feita, realizado no Rio de Janeiro, imagina-se que reunirá em torno de 3 milhões de fiéis vindos dos mais diversos cantos do mundo. Mas o que procura esta população, este rebanho?

Um novo papa foi eleito este ano – Francisco é o seu nome. Veio com a mensagem de prevalência da humildade no coração dos homens. E com uma alma guerreira moldada em debates políticos dos quais participou em sua terra natal, Argentina. Em recente entrevista indicou a participação política como uma obrigação de todo cristão, como uma missão para a melhoria da vida em comunidade, ou seja, algo que poderia ser amplificado para toda a humanidade.

No centro da fé católica está o Livro Sagrado, a Bíblia. Em verdade, ela se constitui da junção de um conjunto de livros que narra a história das origens do catolicismo, as diretrizes que lhe dão base, tendo como ponto alto a vinda de Deus à Terra em forma humana, na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo. Porém, mesmo uma obra deste tipo, baseada na fé, na crença do que está ali exposto, sem se importar com provas, não escaparia ao criticismo típico de nossos tempos.

Recentemente tive contato com um livro que em muito auxilia a compreensão da mensagem ali inserida. Ele se chama “A Bíblia: um Diário de Leitura”, de Luiz Paulo Horta, publicado pela Ed. Zahar, no ano de 2011 – 248 págs. Horta, jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), já tendo ministrado cursos sobre a Bíblia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, preside o Centro Dom Vital, uma espécie de think tank católico. Um ótimo perfil, portanto, para ousar o desafio de, como leigo, traduzir à comunidade o que está no cerne das páginas bíblicas.



Horta não teve temor em enfrentar as grandes questões, em indicar caminhos e apontar soluções e entendimentos para muitas das polêmicas que giram em torno das linhas traçadas à 2 mil anos e que balizam a vida de milhões de católicos mundo afora. A clareza em suas palavras, a facilidade na construção dos argumentos, obviamente sedimentados a partir de um grande conhecimento acumulado e de uma cultura geral vasta, facilitaram seu trabalho. Vamos expor abaixo apenas alguns exemplos, para verificar se aguçam a sua curiosidade quanto a essa obra – e ao livro que a inspirou que, independentemente de sua religião, poderá ser de grande utilidade filosófica para o enfrentamento dos dilemas da vida.

A força das parábolas

Muitos se questionam porque Cristo – e muitos dos demais autores e profetas relatados na Bíblia – se utilizam amplamente das parábolas para retratar as lições a serem seguidas pelos fiéis. Esse ponto é um dos de mais fácil explicação. “Se você teve um avô, contador de histórias infantis, jamais as terá esquecido. E por quê? Não será porque elas falavam ao coração? [...] Pensem no Cristo, na facilidade com que ele desliza para a parábola – a dose de verdade/realidade que uma pessoa comum pode assimilar” (pág. 24).

Em tempos em que a educação era uma raridade restrita às elites, os religiosos que tinham o dom da palavra, ou mesmo os políticos mais proeminentes, se utilizavam de parábolas para exemplificar, ao homem comum, o que eles queriam dizer. Quando a mensagem surgia com clareza ao coração do homem, este não tinha como não gravá-la. Este, sem dúvida, é um dos segredos da Bíblia, um compêndio de maravilhosas parábolas, a começar pela história de Adão e Eva e da criação do mundo.

O papel da mulher numa sociedade patriarcal

Um grande erro é a leitura que se faz de que a Bíblia retrata a mulher sempre em segundo plano. Muito pelo contrário, ela é o centro da ação por diversas vezes. Deve-se compreender que a Bíblia não é uma obra dissociada do tempo em que foi redigida e que retrata. Erros cometidos por figuras centrais o são sem distinção de gênero, muitas vezes mais vinculadas à pouca experiência de alguns destes do que ao sexo propriamente dito. Poderia isto, talvez, ser debitado à reverência que se tinha aqueles tempos à experiência acumulada de anos de vida, algo tão diferente da sociedade em que estamos inseridos.

Mas será despropositada a cena do Gênesis, ao menos como recurso literário? A sedução da mulher não depende, muitas vezes, da atitude que os franceses chamam de insouciance, uma despreocupação que beira a frivolidade, uma conduta mais emotiva, mais impulsiva, que a do homem? Sim, esses papéis podem se inverter. No correr da vida não é a mulher que, tantas vezes, assume a chefia da casa, o senso de realidade, enquanto o homem borboleteia?
[Págs. 33/34]

O homem criado à imagem e semelhança de Deus

Algo que inquieta a muitos é fato de que a noção do livre arbítrio seja um paradoxo em relação à condução da vida terrena para o ser humano. Se Deus o quisesse como sendo simplesmente o condutor de atos corretos, sem a mínima margem de erro, o teria feito. Mas ele lhe dá a faculdade do livre arbítrio, como se quisesse valorizar na sua própria criação o ferramental de construção da própria vida, algo que não o é, por exemplo, destinado aos demais seres vivos, impulsionados que são pela centelha do instinto, sem o mínimo raciocínio. “Dito de outra maneira: a perfeição do homem é a perfeição de uma vocação e não de uma situação” (pág. 39). O homem tem a vocação para o bem, mas para alcançá-la necessita de Deus – e de Sua mensagem – para fazer a ponte.


Não existe história mais emblemática na Bíblia sobre força da fé do que a do quase sacrifício do filho único Abraão, Isaac. Horta coloca que seu nascedouro talvez esteja vinculado ao fato de que Abraão tenha tido a oportunidade de ter tido contato direto com Deus. Porém, este é um fato para o qual não há explicação – quer maior sentido para fé?!

Como pedir a um pai que sacrifique o próprio filho? É um teste que ultrapassa todas as medidas. Mas antes que isso acontecesse, ele tivera um contato igualmente excepcional com a realidade divina. Ali, certamente, é que sua fé deitava raízes. Dali deve ter vindo a força que, para nós, é incompreensível. Ficou o exemplo, envolvido no mais denso mistério. Nunca saberemos como cada um de nós reagirá nos limites da condição humana [pág. 52].

Em verdade, a fé é a esperança de que iremos alcançar um algo melhor no futuro. Mas esse futuro é construído no dia a dia, com cada uma das atitudes que tomamos em nossas vidas.

A Bíblia inserida no seu tempo

O aspecto já citado acima de que a Bíblia não pode ser dissociada do tempo em que foi escrita, por estar imersa numa cadeia de valores e características de uma sociedade específica, volta a ser abordado pelo autor de maneira mais explícita. Quando compreendemos esta característica da Bíblia histórica, podemos interpretar de um melhor modo uma série de ensinamentos que se buscam passar, mesmo que se observados com os olhos da sociedade atual pareçam um tanto quanto distorcidos:

Que moral é essa? O filho engana o pai, ajudado pela mãe? [Rebeca, mulher de Isaac, ajuda Jacó a enganar o pai] É a moral – digamos, os costumes – de um período que a Bíblia descreve, infinitamente remoto. A Revelação não atropela as épocas, nem os costumes. Procede por etapas. Foi o que já vimos na história de Abraão e Sara. Mas Rebeca enganando o marido! Diz uma senhora muito sábia, minha conhecida: “Ela sabia que Esaú era um estouvado, que a liderança tinha que passar por Jacó.” Pragmatismo feminino.
[Pág. 54]

Da mesma forma poderia se entender, talvez, porque a ênfase no Antigo Testamento, às guerras empreendidas em nome da religião. Não podemos dizer que esta não seja uma realidade existente em nosso tempo, porém nos parece, olhando à distância, que muito mais vezes hoje em dia a religião é utilizada de modo pernicioso para justificar determinadas atitudes, enquanto naquela época era realmente um argumento fático para se iniciar um conflito belicoso. Dessa forma, um Deus guerreiro não seria de todo estranho aos seus fiéis, naquele tempo.

Um outro incômodo ao leitor moderno, adjacente desta situação acima explanada – o Deus guerreiro – é o Deus colérico, que pune seus fiéis. Tal discurso, aos ouvidos da sociedade, soa como um paradoxo quando a religião católica prega o amor extremado para com o próximo, inclusive para o com o inimigo. Porém, Horta é enfático em afirmar: “O Criador tem direitos sobre a criatura, por mais que o homem moderno tenha se esquecido disso. Isso não é uma diminuição da criatura – é um dado da realidade” [pág. 76].

Se formos perceber bem, o que foi dito a respeito da vocação para o bem – o homem à imagem e semelhança de Deus – e sua associação com o livre arbítrio, Deus teria colocado nas mãos dos homens todas as possibilidades do mundo. Porém isso não significa dizer que ele não poderia tomar atitudes corretivas – e dá uma amostra, inclusive, de que ouve a criatura, quando existe a interseção de diversos profetas em favor de um povo, de que crê na força do diálogo e que se utilizados os argumentos corretos uma decisão pode ser revogada. O autor cita uma passagem da Bíblia na qual tal mensagem é praticamente literal, nas palavras do próprio Senhor:

Casa de Israel, não poderei fazer de vós o que faz este oleiro? – oráculo do Senhor. O que é a argila em suas mãos, assim sois vós nas minhas, casa de Israel. Ora anuncio a uma nação ou a um reino que vou arrancá-lo e destruí-lo. Mas se essa nação contra a qual me pronunciei se afastar do mal que cometeu, arrependo-me da punição com que resolvera castigá-la. Outras vezes, em relação a um povo ou reino, resolvo edificá-lo e plantá-lo. Se, porém, tal nação proceder mal diante de meus olhos e não escutar minhas palavras, recuarei do bem que lhe decidira fazer [pág. 77].

O pecado original

Talvez o conceito que englobe uma série dos artifícios aqui já mencionados – a prodigalidade no uso de parábolas, a adaptação aos tempos para passar conceitos aos fiéis envoltos numa sociedade constituída de valores distintos dos atuais, o livre arbítrio, a inteligência como dádiva humana, etc – esteja mais bem resumida quando tocamos no tema do pecado original. O pecado original deve ser entendido como um conceito, uma metáfora para uma mensagem. Da mesma forma que o homem tem a vocação para o bem, existe o outro lado da moeda, representado pelo potencial para o pecado. Isto como uma alternativa equânime para todos, e não para um só homem – creio que vocês já devem ter entendido que a estória de Adão e Eva é uma alegoria, mais uma das parábolas da Bíblia. O pecado original não seria, assim, um único ato, mas a potencialidade intrínseca na qual vivemos em relação a ele e que, infelizmente, muitas vezes incorremos. Seria assim, uma alegoria da falibilidade humana, e não um único ato de um único homem que nos condenou.

Questão muitas vezes resumida de forma errônea, o pecado original tem tal força enquanto base de entendimento da religião católica que mereceu um capítulo inteiro (5) pelo autor na tentativa de já preparar o terreno para algo que ele vem a retomar quando o leitor já se encontra maduro na leitura de sua obra. Ele coloca assim a questão, já na reta final do livro (pág. 228), citando o monge beneditino dom Bede Griffiths:

Mas no ser humano, a vida divina reflete-se numa consciência, numa inteligência semelhante a ela. Essa energia é recebida por uma vontade, por uma capacidade de ação iluminada pela inteligência e, portanto, livre. Podemos receber essa luz divina e nossa dependência em relação ao Bem supremo. Mas também podemos nos apropriar dessa luz divina, fazer de nós mesmos o juiz e o mestre, agir como se esse poder viesse de nós mesmos. Esse é o pecado original, essa é a grande ilusão.

Conclusão

Ao terminar de ler uma obra, muitas vezes nos perguntamos se o autor atingiu o seu objetivo. Numa obra de ficção esta análise se vê facilitada, pois ao terminarmos – ou mesmo antes, bem antes – já percebemos se fomos cooptados pela estória ao ponto de não queremos largá-la.

O que Horta se propôs foi abordar alguns dos pontos centrais da Bíblia – e de suas características – de modo a facilitar a apreensão de sua mensagem. Obviamente ele não tinha como intenção encerrar todas as polêmicas – por exemplo, ele não encontra uma explicação, simplesmente constata que é intrínseca à obra a parcialidade aos Israelitas em detrimento de outros povos. Mas talvez, mesmo essa, seja uma característica comum ao nascedouro de toda e quaisquer religiões. Elas têm um pilar central que surgiu de uma determinada camada da humanidade, e esta parcela servirá como referência para o desenrolar dos acontecimentos e da explicação dos conceitos.

 Luiz Paulo Horta


De todo modo, fica clara a linha central: a ênfase no fato de que o catolicismo está baseado no poder do amor, que o amor deve ser o esteio principal das ações dos cristãos, ferramenta primordial para construirmos um mundo melhor. O que foi explanado durante todo o decorrer do livro – e da Bíblia – é a história da relação entre os homens servindo como base para a construção de todo um arcabouço de conceitos de modo a se tentar gerar uma sociedade melhor. A Santíssima Trindade poderia ser entendida assim: três em um, a relação fortalecendo o amor, não importando o seu formato – o instrumento não pode ser maior que a mensagem. “Que Deus é o Ser absoluto, nenhum cristão poderá negar. Mas, diz o padre Bezançon, a própria realidade do Cristo nos transporta da filosofia para a vida. Com o Cristo, ficamos sabendo que Deus é relação” [pág. 242].