“[...] a fonte do poder na estrutura do conhecimento é
a capacidade de desenvolver e adquirir conhecimento novo e negar acesso ao que
se detém, combinada com a capacidade de controlar os canais pelos quais o
conhecimento é comunicado” – GANDELMAN, 2004 – pág. 279.
Propriedade privada, propriedade
comum e propriedade intelectual (PI). A obra de Marisa Gandelman, “Poder e
Conhecimento na Economia Global – o regime internacional da propriedade
intelectual, da sua formação às regras de comércio atuais”, Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro – 2004 – 317 págs. - gira em torno do eixo formado
pelos conceitos que suportam estes três tipos de relacionamentos entre os
criadores, suas obras e a sociedade em que estão inseridos.
O livro, baseado na dissertação
de Mestrado em Relações Internacionais da autora, defendida em maio de 2002,
foi resultado de uma extensa pesquisa, na qual a mesma teve a oportunidade de
mesclar as teorias em torno da propriedade em si com o desenvolvimento
internacional da temática relacionada à PI. Em meio às inúmeras obras visitadas
pela autora dois especialistas surgem como os que incutiram maior influência
nas idéias e conclusões alcançadas ao final: Susan Strange, por intermédio das
obras “Cave! Hic dragons: a
critique of regime analysis” e “States and Markets” e C. B. Macpherson, em
“Property, Mainstream and Critical Positions”.
Na jornada empreendida por
Gandelman muito úteis serão ao leitor a trajetória histórica da regulamentação
internacional da PI em dois de seus principais campos – patentes e direitos de
autor. A propriedade intelectual protege uma vasta gama de direitos gerados a
partir da inventividade do homem. Além dos dois supracitados temos marcas,
indicações geográficas – quem já tomou Champagne entende do que eu estou
dizendo -, desenhos industriais, topografia de circuitos integrados, softwares,
belas artes, etc. “A propriedade intelectual, em outras palavras, é um direito
de propriedade privada sobre os produtos da mente humana” (pág. 114). Para um
leigo na matéria específica, mas com um relativo domínio das teorias de
Relações Internacionais (RI), será como navegar num novo mundo que se
descortina com grande potencial para estudos posteriores. Para aqueles que
conhecem PI, será o aumento de seu conhecimento em nível de detalhe sobre o
tema em questão, observado sob uma nova ótica, a internacionalista. Estes,
portanto, são os dois públicos alvos da autora, ambos nos quais estou inserido.
Tendo isso em mente faria duas
críticas ao texto em termos de desenvolvimento – uma delas está diretamente
relacionada ao viés adotada ex-ante
pela pesquisadora; e outra na qual ela não tem “culpa”, digamos assim, pois foi
prejudicada pelo timing histórico.
Gandelman inicia sua dissertação abordando a Teoria dos Regimes. Tal fato já
aponta para uma não-conformidade com o status
quo vigente. Ao querer questionar como a sociedade atual lida – ou seja, o
regime em voga – ela já induz um entendimento por parte do leitor de que este
não deve ser adequado. Certamente as leituras de Strange e Macpherson
influenciaram por esse tipo de abordagem. “Para Macpherson, a propriedade [...] é produto de circunstâncias históricas particulares e tem sua origem no surgimento da sociedade de mercado capitalista” (pág. 119). Mas o seu erro não está no fato de
ter adotado uma determinada linha de pensamento. Todos têm
o direito de pregar por uma determinada linha, porém numa obra que se diz
científica, e que deveria pautar pela isenção de idéias a priori, o equívoco está em não explicitar isso desde o principio.
Por este
caminho a autora acaba chegando à conclusão de que se faz necessário, para o
bem da humanidade, que a PI deixe de ter seu desenvolvimento enquanto matéria
pautada pelo incentivo à propriedade privada para focar na necessidade de se
mudar o sistema em favor do estabelecimento desta como uma propriedade comum.
Sabemos que tal discussão traz em seu bojo um antigo debate entre o que antes
era conhecido como “esquerda e direita”, conceitos a meu ver deslocados no
tempo, uma vez que os interesses econômicos não observam matizes políticas de
nenhuma ordem, e tal dicotomia já se encontra ultrapassada no tempo. Ora, um
país pode ter um Governo de “esquerda” que não necessariamente não deixará de
buscar proteger os anseios de sua indústria nacional, que muitas vezes são pela
proteção de sua propriedade privada. E quando isso se dá? Na medida em que o
contexto em que tal “estrutura de poder” claramente é voltada para ser
maximizada em favor daqueles que o detém. E se aqueles que o possuem são os que
poderão fazer com que sua economia se movimente, que empregos sejam gerados e
oportunidades abertas para toda a população, que Governo se oporia? Volto a
dizer: teses que indiquem um retorno ao antigo debate entre o “capitalismo” e o
“comunismo” se perdem no tempo, uma vez que o navegar do mundo atual já foi
redirecionado para outras paragens. O que se busca atualmente é sim, como fazer
com que o sistema seja mais igualitário, porém sem o radicalismo de alterá-lo
em seu cerne. Propriedade Intelectual terá como força motriz, sempre, a
propriedade privada. Ela pode ser privada, de propriedade de um Governo ou de
uma Empresa, mas será privada. E mesmo em ambos os casos deverá ser um privilégio
temporário, em favor da sociedade.
Em relação ao
segundo erro, este não pode nem mesmo ser chamado assim. A autora foi
prejudicada por estar, quando da escrita da dissertação, ainda em meio ao início
de um debate de como a PI poderia dar conta de novos direitos. Um grande acerto
de Gandelman foi observar a tendência desta em absorver, cada vez mais, outros
tipos de “direitos” que até então não alcançava, como que numa ampliação de seu
escopo de atuação (1). E essa tendência se dá justamente por conta de algo
muito comum a todas as sociedades – a busca pela manutenção de um modelo, de
uma lógica de atuação que valida um cenário vencedor. A “ampliação do conceito
de propriedade (...) tem a função de manter uma determinada configuração de
distribuição de forças na estrutura da economia política internacional” (pág.
227). Se este status quo, como dito
acima, demonstra falhas, cabe a iniciativa de seus membros em alterá-lo de modo
a que estas possam favorecer a todos de maneira mais igualitária. E foi isso
que ocorreu em 2004, ou seja, dois anos após a defesa da dissertação aqui
analisada.
Naquele ano, o
Brasil, acompanhado de mais 12 países, teve a iniciativa de apresentar, perante
a Assembléia Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI – www.wipo.int), agência especializada das Nações
Unidas, um documento denominado “Agenda para o Desenvolvimento”. Este prega que
a propriedade intelectual não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para o
desenvolvimento socioeconômico dos países. A própria autora antecipou este
movimento ao caracterizar uma crise de regime como sendo “quando o hegemônico
está em decadência, passa a dar prioridade aos seus interesses particulares, em
detrimento da promoção do bem coletivo que é a estabilidade da ordem” (pág. 45).
Desse modo o
Governo Brasileiro não tentava mudar o sistema em si, mas como ele vinha sendo
conduzido, tentando aproximá-lo para as teses defendidas pelos países em
desenvolvimento, reflexo de algo que ocorria, pelo menos, desde a década de 70
do século passado, quando a Organização da Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) liderou a redação de um estudo sobre o
relacionamento entre PI e transferência de tecnologia que não era
necessariamente bem visto pela própria OMPI, que “(...) não só discordava da
crítica que o estudo fazia ao sistema internacional de proteção às patentes,
como não acreditava na necessidade de tais mudanças apontadas em favor dos
países em desenvolvimento” (pág. 192). Tal acontecimento político-diplomático
gerou uma série de desdobramentos, mas o maior deles, a meu ver, foi justamente
consolidar a possibilidade de se alterar o status-quo
preservando o que ele tinha de melhor em benefício do povo brasileiro. Talvez,
quem sabe, esse seja o “modo suave” de se alterar o sistema, atuando por dentro
do mesmo, numa nova versão, um pouco mais hard
do que a pregada por outro especialista, Joseph Nye, em sua emblemática obra “O
Paradoxo do Poder Americano” (2). Quem viver, verá.
(1) Um dos exemplos desta tendência é a discussão em torno
de como proteger os Conhecimentos Tradicionais. Entendem-se como tais àqueles
gerados no seio de comunidades indígenas, ribeirinhas, etc, os quais vêm sendo
explorados sem ter o devido reconhecimento e retorno para aqueles que são os
legítimos proprietários originais. A tentativa de adequação desta nova
propriedade enquanto privada, uma vez que ela parte de um berço comunitário –
não existe um dono único – traz dificuldades para os especialistas na matéria.
Talvez uma solução para tal dilema seja o devido entendimento de que
“propriedade privada” não significa necessariamente excluir a “propriedade
comum” e vice-versa.
(2) Editora UNESP, São Paulo – 2002 –
293 pgs. Nye defende que um dos instrumentos de poder americano é o chamado
“poder suave” (soft power). Os EUA,
ao influenciarem o mundo com sua cultura, por intermédio de seus filmes, músicas,
etc, fariam com que, pouco a pouco, outras sociedades e Governos ambicionassem
ter o seu mesmo nível de qualidade de vida, pautando suas decisões pelas teses
norte-americanas.