domingo, 23 de fevereiro de 2014

A Menina que Roubava Livros

Quando iniciamos a leitura de uma obra literária múltiplas são as entradas, iscas que se nos apresentam como o que nos prenderá até o final da narrativa. Em “A Menina que Roubava Livros”, de Markus Zusak – Ed. Intrínseca, 2010 – 480 págs – três foram esses ganchos, com um bônus que nos é indicado logo de início. Primeiramente, os ganchos:

·         A História e a Estória

Os três últimos livros – incluindo este – de ficção tem algum tipo de vínculo com a Segunda Guerra Mundial. Em “Inverno do Mundo”, de Ken Follet, esta se apresenta quase como que o personagem principal, servindo o entrelaçar da estória de cinco famílias como pano de fundo para que o leitor perceba com clareza como o ser humano pode ser tão cruel consigo próprio. Em “Sob a Redoma”, de Stephen King, o conflito entre moradores de uma pequena cidade sitiada de modo estranho no interior dos Estados Unidos por vezes remete a como o totalitarismo e o populismo, veias maiores daquela época por vezes citada, poderiam ser ressuscitados anos depois, prejudicando o convívio entre iguais, como uma sombra ou um zumbi que renasce dos mortos.

Estória – [...] narrativa em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou o leitor;
História – [...] conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar, a época, o ponto de vista escolhido [...] – Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – Ed. Objetiva – 2004.
 
Porém, na obra de Markus Zusak, australiano com origens européias, a estória de Liesel, a protagonista, uma criança amante das letras, apresenta pinceladas de amor e candura em meio à terrível luta pela sobrevivência numa Alemanha nazista. Ou seja, a Segunda Guerra não esconde o que tem de pior, mas o livro demonstra como as pessoas seguiram suas vidas em meio àquele caos e terror em que muitos de nós, gerações posteriores, não temos a mínima idéia da profundidade da cicatriz marcada, e vemos de repente o resgate desta memória, nos dando um tapa, nos emocionando, e ao mesmo tempo informando que na vida estamos num ciclo de vitórias e derrotas, grandes ou pequenas, mas que aquelas, quando vêm – e muitas vezes podem estar imersas no gosto pela literatura – são como uma brisa que nos dá o ar que necessitamos.

          Markus Zusak


- Jesus, Maria...
Ela o disse em voz alta, com as palavras distribuídas por uma sala repleta de ar frio e livros. Livros por toda parte! Cada parede era provida de estantes apinhadas, mas imaculadas. Mal se conseguia ver a tinta. Havia toda sorte de estilos e letras diferentes nas lombadas dos livros, pretos, vermelhos, cinzentos, de toda cor. Era uma das coisas mais lindas que Liesel Meminger já tinha visto. (Pág. 123)

·         O cinema

Li esta obra justamente quando sua adaptação chega às telas dos cinemas. Porém, tenho como princípio que o livro sempre é melhor que o filme. Existem sentimentos que dificilmente são transpostos da obra literária para a telona, por melhor que seja o roteiro adaptado. Como transpor, para citar dois exemplos, as pequenas notas nas quais a narradora principal – da qual falarei mais adiante – coloca o andamento da estória sob um olhar todo peculiar, que no caso do cinema passa a ser diretamente vinculado à ótica do telespectador? Por exemplo (pág. 37):

UMA DEFINIÇÃO NÃO ENCONTRADA
NO DICIONÁRIO
Não ir embora: ato de confiança e amor,
comumente decifrado pelas crianças

E como eu poderia me sentir mais tocado pela visão do roteirista do que pelo sentimento gerado a partir do trecho que demonstra a forte relação entre pai e filha, fazendo me lembrar da minha própria pequena:

Na cama, leu com o pai, que percebeu haver algo errado. Era a primeira vez que se sentava com ela em um mês, e isso a consolou, nem que fosse um tantinho. De algum modo, Hans Hubermam sempre sabia o que dizer, quando ficar e quando deixá-la sozinha. Talvez Liesel fosse a única coisa em que ele era realmente perito. (...) Fazia alguns dias que o pai não se barbeava, e a cada dois ou três minutos esfregava os pelos prurientes. Seus olhos de prata estavam foscos e calmos, levemente calorosos, como sempre ficavam quando se tratava de Liesel. (...) Por alguns momentos, ela observou o seu rosto. Depois, se tornou a deitar, encostou-se nele, e juntos, os dois dormiram, bem nos arredores de Munique (...).
Pág. 235.

Toda a poesia expressa neste relacionamento, viva na imaginação do leitor, não pode encontrar algo igual, por melhor que seja o roteirista. Além disso, o filme já teria um precedente que talvez o sobrepuje, que é “A Vida é Bela”, de Roberto Begnini (1998). Neste um judeu, Guido, interpretado pelo próprio diretor, narra ao seu pequeno filho as desventuras pelas quais vivem na Segunda Guerra Mundial, fantasiando o suficiente para que o mesmo não seja tocado pelo horror que os circunda¹.





·         O Valor da Amizade

Chamou a minha atenção, ao ver o trailer do filme no cinema, que a protagonista era acompanhada por um menino em suas peripécias. Ao ler o livro encontro este rico personagem, Rudy Steiner, um contraponto a uma menina introspectiva que vê a vida se descortinar aos poucos, com grande ajuda de seu amigo. A amizade para mim é um bem maior. Ela nos auxilia a dar saltos sobre os piores obstáculos. É claro que aqui me remeto à amizade verdadeira, aquela que está presente nos piores momentos. E que momento poderia ser pior do que em meio a uma guerra? O fascínio do menino pelo fenômeno Jesse Owens – atleta negro norte-americano vencedor de 4 provas na Olímpiada de 1936, em Berlim, em pleno domínio nazista – apenas serve a mim como um atrativo a mais, como a cereja do bolo sobre um personagem tão influente na trajetória, à espera de um beijo ansiado.

Liesel (Sophie Nelisse) e Rudy (Nico Liersch)²
 
Os dois dobraram algumas esquinas até chegar à rua Himmel, e Alex [Steiner] disse:
- Filho,você não pode sair por aí se pintando de preto, escutou?
Rudy estava interessado e confuso. (...)
- Por que não, papai?
- Porque eles o levam embora.
- Por quê?
- Porque você não deve querer ser como os negros, nem como os judeus, nem como qualquer um que... que não seja nós.
- Quem são os judeus?
- Conhece aquele meu freguês mais antigo, o Sr. Kaufmann? Da loja onde compramos seus sapatos?
- Sim.
- Bom, ele é judeu.
- Eu não sabia. A gente tem que pagar para ser judeu? Precisa de uma licença?
- Não, Rudy. (...) É como ser alemão ou católico.
- Ah. O Jesse Owens é católico?
- E eu sei lá! (...)
- Eu só queria ser como o Jesse Owens, papai.
- Eu sei, meu filho, mas você tem um lindo cabelo louro e olhos azuis grandes e seguros. Devia ficar feliz com isso, está claro?
Mas não havia nada claro. Rudy não compreendeu coisa alguma (...). Dois anos e meio depois, a Sapataria Kaufmann foi reduzida a vidros quebrados e todos os calçados foram jogados num caminhão, dentro de suas caixas. (Pág. 56)

E o bônus a que citei no início? Trata-se justamente da qualidade da narradora eleita. A própria Morte. Esta se apresenta como participativa, na medida exata de suas intensas tarefas naquela época – como se não fosse o sempre. Mas, mais do que isso, desmistificando um pouco a visão de sua perversidade, mas sim como alguém que realmente se importa em facilitar as coisas, já tão complicadas por si só, levando-se em conta que tem que lidar com os seres humanos em seus últimos momentos – ou até, nos seus piores momentos, por vezes. Misericordiosa, dedicada ao seu ofício, mas se deixando tocar pelo sentimento que gira em torno, ela passa a ser uma parceira do leitor no olhar cândido sobre a estória que está sendo narrada.

O que eu diria no fim disto tudo? “A Menina que Roubava Livros” é uma estória de amor entre pai e filha, entre amigos, entre a leitora e as palavras. Em que pese triste, é uma bela estória, que merece ser lida por trazer em seu bojo o que de pior e o que de melhor o ser humano tem a oferecer.

      (2) http://livrosetsurus.blogspot.com.br/2013/08/primeiras-fotos-menina-que-roubava.html