Quando
iniciamos a leitura de uma obra literária múltiplas são as entradas, iscas que
se nos apresentam como o que nos prenderá até o final da narrativa. Em “A
Menina que Roubava Livros”, de Markus Zusak – Ed. Intrínseca, 2010 – 480 págs –
três foram esses ganchos, com um bônus que nos é indicado logo de início.
Primeiramente, os ganchos:
·
A
História e a Estória
Os
três últimos livros – incluindo este – de ficção tem algum tipo de vínculo com
a Segunda Guerra Mundial. Em “Inverno do Mundo”, de Ken Follet, esta se
apresenta quase como que o personagem principal, servindo o entrelaçar da
estória de cinco famílias como pano de fundo para que o leitor perceba com
clareza como o ser humano pode ser tão cruel consigo próprio. Em “Sob a Redoma”,
de Stephen King, o conflito entre moradores de uma pequena cidade sitiada de
modo estranho no interior dos Estados Unidos por vezes remete a como o
totalitarismo e o populismo, veias maiores daquela época por vezes citada,
poderiam ser ressuscitados anos depois, prejudicando o convívio entre iguais,
como uma sombra ou um zumbi que renasce dos mortos.
Estória – [...]
narrativa em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objetivo de divertir e/ou
instruir o ouvinte ou o leitor;
História – [...]
conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar,
a época, o ponto de vista escolhido [...] – Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa – Ed. Objetiva – 2004.
Porém,
na obra de Markus Zusak, australiano com origens européias, a estória de
Liesel, a protagonista, uma criança amante das letras, apresenta pinceladas de
amor e candura em meio à terrível luta pela sobrevivência numa Alemanha
nazista. Ou seja, a Segunda Guerra não esconde o que tem de pior, mas o livro
demonstra como as pessoas seguiram suas vidas em meio àquele caos e terror em
que muitos de nós, gerações posteriores, não temos a mínima idéia da
profundidade da cicatriz marcada, e vemos de repente o resgate desta memória,
nos dando um tapa, nos emocionando, e ao mesmo tempo informando que na vida
estamos num ciclo de vitórias e derrotas, grandes ou pequenas, mas que aquelas,
quando vêm – e muitas vezes podem estar imersas no gosto pela literatura – são como
uma brisa que nos dá o ar que necessitamos.
Markus Zusak
- Jesus,
Maria...
Ela o disse em
voz alta, com as palavras distribuídas por uma sala repleta de ar frio e
livros. Livros por toda parte! Cada parede era provida de estantes apinhadas,
mas imaculadas. Mal se conseguia ver a tinta. Havia toda sorte de estilos e
letras diferentes nas lombadas dos livros, pretos, vermelhos, cinzentos, de
toda cor. Era uma das coisas mais lindas que Liesel Meminger já tinha visto.
(Pág. 123)
· O cinema
Li
esta obra justamente quando sua adaptação chega às telas dos cinemas. Porém,
tenho como princípio que o livro sempre é melhor que o filme. Existem
sentimentos que dificilmente são transpostos da obra literária para a telona,
por melhor que seja o roteiro adaptado. Como transpor, para citar dois
exemplos, as pequenas notas nas quais a narradora principal – da qual falarei
mais adiante – coloca o andamento da estória sob um olhar todo peculiar, que no
caso do cinema passa a ser diretamente vinculado à ótica do telespectador? Por
exemplo (pág. 37):
UMA DEFINIÇÃO NÃO ENCONTRADA
NO DICIONÁRIO
Não ir embora: ato
de confiança e amor,
comumente decifrado
pelas crianças
E
como eu poderia me sentir mais tocado pela visão do roteirista do que pelo
sentimento gerado a partir do trecho que demonstra a forte relação entre pai e
filha, fazendo me lembrar da minha própria pequena:
Na cama, leu com
o pai, que percebeu haver algo errado. Era a primeira vez que se sentava com
ela em um mês, e isso a consolou, nem que fosse um tantinho. De algum modo,
Hans Hubermam sempre sabia o que dizer, quando ficar e quando deixá-la sozinha.
Talvez Liesel fosse a única coisa em que ele era realmente perito. (...) Fazia
alguns dias que o pai não se barbeava, e a cada dois ou três minutos esfregava
os pelos prurientes. Seus olhos de prata estavam foscos e calmos, levemente
calorosos, como sempre ficavam quando se tratava de Liesel. (...) Por alguns
momentos, ela observou o seu rosto. Depois, se tornou a deitar, encostou-se
nele, e juntos, os dois dormiram, bem nos arredores de Munique (...).
Pág. 235.
Toda
a poesia expressa neste relacionamento, viva na imaginação do leitor, não pode
encontrar algo igual, por melhor que seja o roteirista. Além disso, o filme já
teria um precedente que talvez o sobrepuje, que é “A Vida é Bela”, de Roberto
Begnini (1998). Neste um judeu, Guido, interpretado pelo próprio diretor, narra
ao seu pequeno filho as desventuras pelas quais vivem na Segunda Guerra
Mundial, fantasiando o suficiente para que o mesmo não seja tocado pelo horror que
os circunda¹.
·
O
Valor da Amizade
Chamou
a minha atenção, ao ver o trailer do
filme no cinema, que a protagonista era acompanhada por um menino em suas
peripécias. Ao ler o livro encontro este rico personagem, Rudy Steiner, um
contraponto a uma menina introspectiva que vê a vida se descortinar aos poucos,
com grande ajuda de seu amigo. A amizade para mim é um bem maior. Ela nos
auxilia a dar saltos sobre os piores obstáculos. É claro que aqui me remeto à
amizade verdadeira, aquela que está presente nos piores momentos. E que momento
poderia ser pior do que em meio a uma guerra? O fascínio do menino pelo
fenômeno Jesse Owens – atleta negro norte-americano vencedor de 4 provas na
Olímpiada de 1936, em Berlim, em pleno domínio nazista – apenas serve a mim
como um atrativo a mais, como a cereja do bolo sobre um personagem tão
influente na trajetória, à espera de um beijo ansiado.
Liesel (Sophie Nelisse) e Rudy (Nico Liersch)²
Os dois dobraram
algumas esquinas até chegar à rua Himmel, e Alex [Steiner] disse:
- Filho,você não
pode sair por aí se pintando de preto, escutou?
Rudy estava
interessado e confuso. (...)
- Por que não,
papai?
- Porque eles o
levam embora.
- Por quê?
- Porque você
não deve querer ser como os negros, nem como os judeus, nem como qualquer um
que... que não seja nós.
- Quem são os
judeus?
- Conhece aquele
meu freguês mais antigo, o Sr. Kaufmann? Da loja onde compramos seus sapatos?
- Sim.
- Bom, ele é
judeu.
- Eu não sabia.
A gente tem que pagar para ser judeu? Precisa de uma licença?
- Não, Rudy.
(...) É como ser alemão ou católico.
- Ah. O Jesse
Owens é católico?
- E eu sei lá! (...)
- Eu só queria ser
como o Jesse Owens, papai.
- Eu sei, meu
filho, mas você tem um lindo cabelo louro e olhos azuis grandes e seguros.
Devia ficar feliz com isso, está claro?
Mas não havia
nada claro. Rudy não compreendeu coisa alguma (...). Dois anos e meio depois, a
Sapataria Kaufmann foi reduzida a vidros quebrados e todos os calçados foram
jogados num caminhão, dentro de suas caixas. (Pág. 56)
E
o bônus a que citei no início? Trata-se justamente da qualidade da narradora
eleita. A própria Morte. Esta se apresenta como participativa, na medida exata
de suas intensas tarefas naquela época – como se não fosse o sempre. Mas, mais
do que isso, desmistificando um pouco a visão de sua perversidade, mas sim como
alguém que realmente se importa em facilitar as coisas, já tão complicadas por si
só, levando-se em conta que tem que lidar com os seres humanos em seus últimos
momentos – ou até, nos seus piores momentos, por vezes. Misericordiosa,
dedicada ao seu ofício, mas se deixando tocar pelo sentimento que gira em
torno, ela passa a ser uma parceira do leitor no olhar cândido sobre a estória
que está sendo narrada.
O
que eu diria no fim disto tudo? “A Menina que Roubava Livros” é uma estória de
amor entre pai e filha, entre amigos, entre a leitora e as palavras. Em que
pese triste, é uma bela estória, que merece ser lida por trazer em seu bojo o
que de pior e o que de melhor o ser humano tem a oferecer.
(2) http://livrosetsurus.blogspot.com.br/2013/08/primeiras-fotos-menina-que-roubava.html