segunda-feira, 28 de março de 2016

MARVELS

O termo “sétima arte” serviu para cunhar em que universo se enquadraria a produção cinematográfica em relação às demais áreas ditas “artísticas”: arquitetura, pintura, escultura, música, literatura e teatro (incluindo a dança). São as chamadas Belas Artes, conceito que surgiu na Europa no final do século XVIII, junto com a proliferação das Academias de Arte, e que designa atividades preocupadas com a criação do belo, independente da sua utilidade prática (1). Nesse sentido venho a tratar aqui daquela que está na lista das novas “artes”, além das 7 mais conhecidas: o mundo dos quadrinhos.

As histórias em quadrinhos (HQ’s) há muito vem conquistando espaço, não apenas entre o público infanto-juvenil, como também entre a parcela adulta de consumidores. A primeira história em quadrinhos moderna foi criada pelo artista americano Richard Outcault em 1895. "A linguagem das HQs, com a adoção de um personagem fixo, ação fragmentada em quadros e balõezinhos de texto, surgiu nos jornais sensacionalistas de Nova York com o Yellow Kid (Menino Amarelo)", diz o historiador e jornalista Álvaro de Moya, autor do livro História da História em Quadrinhos (2).

Nesse mundo peculiar as multinacionais mais conhecidas são Marvel e DC Comics. A Marvel foi Fundada no começo da década de 1930 por Martin Goodman, a Marvel Comics foi originalmente chamada de Timely Comics. Seu fundador era editor de revistas que faziam sucesso com histórias de faroeste. Visionário, Martin Goodman expandiu seu trabalho no sentido de um mercado muito promissor. Com a sede estabelecida em Nova York, Goodman detinha o poder na editora, acumulando diversos cargos. A primeira publicação só aconteceria em 1939 através de uma revista chamada Marvel Comics que mostrou pela primeira vez ao público os personagens Tocha Humana e Namor. A publicação foi um sucesso de vendas e estimulou a equipe responsável a lançar a segunda edição no ano seguinte, mas com o nome de Marvel Mystery Comics (3).

Já a DC Comics Inicialmente ela era chamada de National Comics, mas posteriormente assumiu a sigla que se referia a uma de suas mais famosas publicações, a Detective Comics, que entre outras criações trazia em suas páginas as aventuras do Batman. Em 1937 a empresa adotou o nome desta revista, batizando-se assim como Detective Comics, Inc. Em 1944 ela se uniu à National Allied Publications, responsável pela edição da Action Comics, na qual o Superman apareceu pela primeira vez. Com esta fusão o conglomerado empresarial passou a ser conhecido como National Comics, embora fosse informalmente denominado DC Comics, até este título ser oficialmente assumido (4).

As HQ's assim se consolidam mundialmente alicerçadas nestas duas empresas como expoentes, à parte as chamadas “independentes”, que muitas vezes possuem uma temática mais dramática, ou poética. Existem muitos outros personagens conhecidos mundo afora – Tintim, Asterix, Turma da Mônica, sem falar nos mangás japoneses, etc – que não estão neste contexto de geração de super-heróis majoritariamente ambientados nos Estados Unidos. Mas é inegável a influência que estas duas empresas tiveram e têm na popularização no imaginário de gerações de consumidores voltados para a exposição em pequenos quadros ilustrados dos grandes dramas humanos – ou mutantes, ou inumanos, ou alienígenas, whatever...

Mas restava uma lacuna a ser suprida. E essa lacuna veio a ser preenchida com a série denominada Marvels, com roteiro de Kurt Busiek e desenhos de Alex Ross.
Edição comemorativa
Publicada originalmente em 1994, a minissérie em quatro edições conquistou público e crítica ao retratar os grandes eventos da trajetória do Universo Marvel do ponto de vista de um simples mortal, o fotógrafo Phil Sheldon, com texto impactante e pinturas hiper-realistas (5). A edição a qual tive acesso foi a comemorativa, lançada em 2010. Num olhar rápido, a obra pode ser melhor aproveitada por aqueles que acompanham a trajetória das “maravilhas” – como o personagem Sheldon chama os super-heróis e que dá origem ao termo “Marvels” – já há algum tempo, pois existe uma costura entre os momentos emblemáticos do universo Marvel – iniciando-se com o surgimento do Namor e do Tocha Humana, acima já citados; passando pelo explosão do Capitão América durante a Segunda Guerra Mundial; alcançado a emergência dos mutantes do X-men, não sem antes a ambientação com o Quarteto Fantástico em meio aos humanos, enfrentando Galactus. Finaliza, então, com o desencantamento – ou humanização – dos super-heróis via Homem-Aranha, a partir do episódio do fracasso em salvar Gwen Stacy, trazendo à baila que até mesmo eles falham.
Os quatro livros que compõem a série original e
que foram vendidos separadamente
 O impacto gerado por essa nova perspectiva traz o leitor para a imersão num pseudo-realismo. Um simulacro para a sensação a qual Busiek buscou expor a todos os aficionados é algo similar ao que foi feito, por exemplo, na obra cinematográfica A Onda. Em uma escola da Alemanha, alunos têm de escolher entre duas disciplinas eletivas, uma sobre anarquia e a outra sobre autocracia. O professor Rainer Wenger (o ator Jürgen Vogel) é colocado para dar aulas sobre autocracia, mesmo sendo contra sua vontade. Após alguns minutos da primeira aula, ele decide, para exemplificar melhor aos alunos, formar um governo fascista dentro da sala de aula. Eles dão o nome de "A Onda" ao movimento, e escolhem um uniforme e até mesmo uma saudação. Só que o professor acaba perdendo o controle da situação, e os alunos começam a propagar "A Onda" pela cidade, tornando o projeto da escola um movimento real. Quando as coisas começam a ficar sérias e fanáticas demais, Wenger tenta acabar com "A Onda", mas aí já é tarde demais (6).

A visão romantizada de que todos iriam reagir com benevolência e gratidão pelos super-heróis, por estes serem pessoas ou seres que vieram nos salvar dos perigos que nos rondam, desde a criminalidade mais pueril até os grandes vilões que desejam destruir o planeta Terra, é colocada em cheque por Busiek. Como em A Onda, aqueles que não acreditavam que pudesse haver um sentimento de reatividade ao desconhecido, mesmo que este fosse benéfico à própria humanidade, ou indo mais fundo, uma espécie de inveja ou temor de sermos dominados, escravizados, por aqueles que não poderíamos compreender, remete à tendência da humanidade na busca do controle absoluto, da mitigação das incertezas. O outro deve ser estigmatizado e colocado à margem da sociedade.
O personagem Phil Sheldon em meio ao seu drama pessoal
por compreender esse novo mundo com seres inusitados e os impactos
sobre o dia a dia. 
Esta mesma dinâmica talvez seja a causa maior do alastramento do sentimento depressivo dos dias atuais, afinal de contas, ninguém pode ter o controle sobre tudo o tempo inteiro. Há que se preservar o espaço ao acaso, ao diferente, que dá colorido à vida. Inclusive este é o gancho para as duas obras cinematográficas da DC e da Marvel que dentro em breve estarão nas telonas concomitantemente – Batman vs Superman & Capitão América: Guerra Civil. Nestes são colocados em lados opostos super-heróis que defendem maior controle sobre a ação de seus pares, para que estes não venham a prejudicar demasiadamente os seres humanos “comuns”, daqueles que defendem que toda a prática de controle acaba por acarretar numa espécie de fascismo velado.

Os Vingadores, da Marvel, por Alex Ross
Em resumo, a obra vale a pena ser vista e lida por dois motivos básicos. O primeiro é o traço realístico de Alex Ross, verdadeiras pinturas se comparados com os quadrinhos “de produção”. Inclusive na edição comemorativa somos brindados com desenhos de página inteira ao final com personagens “B” que poderiam ser emoldurados e gerar quadros para serem pendurados nas paredes de galerias.
A Liga da Justiça, da DC, por Alex Ross
E o segundo, tendo a mente aberta para este outro olhar construído por Busiek, de maneira a que observemos que somos iguais na exata medida daquilo em que somos diferentes.
Kurt Busiek (à esquerda) e Alex Ross
Os deuses também falham, assim como os seres humanos. Talvez, apenas, os erros sejam superdimensionados, afinal, como diz o Homem-Aranha, grandes poderes, grandes responsabilidades.

(5)   http://www.universohq.com/reviews/marvels/ - inclusive neste artigo as HQs são denominadas de “nona arte”. A este respeito interessante ver http://quadro-a-quadro.blog.br/por-que-quadrinho-e-a-nona-arte/. Neste existe a seguinte descrição:

Mas o homem, em sua infinita insatisfação e busca por expressão, inventou o cinema. E o cinema maravilhou apreciadores e encantou criadores. E Ricciotto Canudo o considerou a mais completa das artes, pois englobava todas as outras artes. E em 1923 publicou o "Manifesto das Sete artes" organizando-as da seguinte forma:

1ª Arte – Música (som);
2ª Arte – Dança/Coreografia (movimento);
3ª Arte – Pintura (cor);
4ª Arte – Escultura (volume);
5ª Arte – Teatro (representação);
6ª Arte – Literatura (palavra);
7ª Arte – Cinema (integra os elementos das artes anteriores).

A partir daí as artes passaram a ter classificação e a serem vistas tanto por apreciadores quanto por criadores com olhos cartesianos. E quando Canudo chegou à clareira no final da estrada, outros homens continuaram seu trabalho de sistematização das artes:

8ª Arte – Fotografia (imagem);
9ª Arte – Quadrinhos (cor, palavra, imagem);
10ª Arte – Jogos de Computador e de Vídeo (no mínimo integra as 1ª, 3ª, 4ª, 6ª, 9ª arte);
11ª Arte – Arte digital (integra artes gráficas computorizadas 2D, 3D e programação).



sexta-feira, 18 de março de 2016

1808, 1822 e 1889

O jornalista Laurentino Gomes se propôs um desafio: escrever sobre os grandes momentos da História do Brasil no século XIX de maneira mais acessível ao leitor comum, não acadêmico. Ele citou alguns exemplos desta dificuldade na introdução do primeiro deles, 1808, livro ganhador do prêmio Jabuti de melhor livro-reportagem e Livro do Ano de Não-Ficção, além de melhor Ensaio, Crítica ou História Literária pela Academia Brasileira de Letras:
Laurentino Gomes e suas obras

A obra mais importante sobre o período é o livro D. João VI no Brasil, do diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima. [...] O estilo árido do texto de Oliveira Lima, porém, torna-o cansativo até para leitores mais familiarizados com o idioma peculiar das teses de pós-graduação (GOMES, 2007:18)

Acredito que este desafio ele tenha vencido. Tive a oportunidade de ler não somente 1808, mas na sequência as demais obras que compõem esse tríduo produzido a partir do esforço do jornalista em retratar os momentos que caracterizaram a geração da atual república brasileira, e porque não dizer, suas mazelas e suas principais qualidades, entranhadas tal qual raízes naquela amálgama de interesses e relações do poder para com o poder e do poder para o com povo.

Suas obras não necessariamente seguem uma ordem cronológica. No estilo reportagem ao qual se atêm, elas buscam na identificação dos principais atores e fatos, e sua respectiva caracterização, uma maneira de atender aos diferentes públicos. Pesquisadores e estudantes que tenham interesse num aspecto específico ali retratado poderão ir a um determinado capítulo que o trata. Aqueles que têm interesse em ter acesso ao quadro geral lerão tranquilamente cada um dos livros com deleite, observando que os maiores nomes da História passada do país eram também simples seres humanos, com suas fraquezas e fortalezas de caráter. Chama a atenção, principalmente, como o sentimento mundano da luxúria se fazia presente e muitas vezes ditava o encaminhamento do dia. Óbvio que neste caso o principal personagem foi D. Pedro I, central em 1822, o segundo livro.

Dom João VI
Se fôssemos, portanto, levados a estigmatizar os três livros produzidos, diríamos que cada um deles tem o seu personagem central. 1808 tem em D. João VI aquele monarca que, ao mesmo tempo titubeante na maior parte dos assuntos que tinha que tratar, mostrou-se de uma determinação sem igual ao tomar a decisão de levar toda a corte de Portugal para o Brasil, escapando de Napoleão. O francês assim colocou: “Foi o único que me enganou”, em suas memórias escritas pouco antes de morrer no exílio da Ilha de Santa Helena (GOMES, 2007:25).

1822, como dito acima, tem sua base no desenvolvimento de D. Pedro I enquanto condutor da independência brasileira. Porém, mesmo tendo este status, até mesmo naquele que seria o seu maior momento – o grito do Ipiranga – havia um quê de desassossego sexual o impulsionando, com os hormônios agindo indômitos. Isto porque tal grito teria se dado em meio a uma viagem empreendida que tinha, entre outros objetivos, “apaziguar os ânimos na província [São Paulo], dividida entre dois grupos políticos (...)” (GOMES, 2010:101).

Dom Pedro I
Era a primeira vez que a população simples do vale do Paraíba e cidades vizinhas via um membro da família real portuguesa. Todos se surpreendiam com a simplicidade e os modos quase grosseiros do príncipe regente. (...) D. Pedro se comportava como um adolescente em férias. (...) Dias mais tarde, já em Santos, encantou-se com uma jovem mulata ao atravessar a rua. Cercou-a fazendo galanteios e tentou segurá-la pelos braços. Irritada e sem reconhecer o príncipe, a moça desferiu-lhe uma bofetada e saiu correndo. (GOMES, 2010:102, 103)

Ou seja, a imagem de um homem sério e cioso de suas responsabilidades, acaba por ser desanuviada, dado que esta era passada para que o simbolismo de uma época fosse preservado. De todo modo, fica claro em 1822 que a instalação do império no Brasil foi a melhor solução para manter a sua unidade territorial. E digamos assim: D. Pedro também contribuiu para povoar a nova nação, traçando – com trocadilho – uma diretriz de miscigenação que veio a nos caracterizar.

Sua vida privada foi intensa e tumultuada. Embora não bebesse, gostava de farras, noitadas, amigos de má reputação e, em especial, das mulheres. (...) Nos dois casamentos oficiais, D. Pedro teve oito filhos, sete com Leopoldina e um com Amélia. Fora do casamento, o número é lendário. Octávio Tarquino de Sousa assegura que, entre naturais e bastardos, teve uma dúzia e meia de filhos. Alguns cronistas chegaram a lhe atribuir mais de 120 rebentos ilegítimos, cifra nunca comprovada, mas não de todo impossível. Em menos de um ano, entre novembro de 1823 e agosto de 1824, teve três filhos, todos com mulheres diferentes (...)”. (GOMES, 2010:121, 122)

Dom Pedro II
Passada a Independência, Laurentino Gomes se ateria então ao desenvolvimento do Segundo Reinado em direção à proclamação da República. Neste terceiro livro – 1889 – teríamos, portanto não somente um personagem central, mas pelo menos dois: D. Pedro II e Marechal Deodoro da Fonseca.
Deodoro da Fonseca

Teríamos ainda, para fazer justiça histórica, Benjamin Constant, que até então para mim era somente o nome do Instituto para Cegos, como um dos principais artífices para o surgimento da República no país.
Benjamin Constant
Civis articulados, gerenciando uma revolta que viria a partir dos quartéis, foi o retrato do ocorrido naquela ocasião – e talvez em alguma outra mais à frente na História. No próprio subtítulo do livro esses três personagens são exaltados – “Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil”.

Floriano Peixoto
Eu teria dado espaço, ainda, no subtítulo a Floriano Peixoto, por ter sido um personagem relevante no início de nossa trajetória republicana, quer seja no papel dúbio durante o processo de proclamação, quer seja pelas atitudes ditatoriais durante o seu mandato enquanto presidente, personagem que ficou conhecido como o “Marechal de Ferro”, tão complexo que foi considerado de difícil caracterização por seus biógrafos, mas que com certeza teve grande importância na consolidação da geografia e da política brasileira no início do século XX.


Dessa maneira, os livros se completam para se ter um cenário completo do século XIX e o impacto que este veio a ter sobre o perfil de nosso país. Na linha do que foi dito no parágrafo anterior, em 1808 teríamos a destacar ainda Carlota Joaquina – a meu ver, talvez em exagero. No subtítulo é citada ainda “a corte corrupta”, o que, infelizmente para nós, acabou por ser um traço recorrente entre a classe política de nosso país. Já em 1822 temos a destacar ainda o papel de José Bonifácio, D. Leopoldina e Thomas Alexander Cochrane, o famoso Almirante Cochrane – esses dois últimos, devo mais uma vez dizer, que creio em exagero.

Em termos de forma dois comentários. Primeiro Laurentino se preocupa no início de 1822 fazer um breve apanhado do que já havia exposto em 1808. Assim dizendo, quem não tivesse a intenção de ler o primeiro, poderia partir diretamente para o segundo. Já em 1889 não existe tal preocupação. Denota-se que em termos de formação do caráter nacional, realmente os dois últimos livros parecem ser os mais relevantes, mas isso é muito subjetivo. Minha sugestão seria dar igual importância a todos os três. Por último, a se notar que no segundo livro as notas de referência encontram-se ao final de cada capítulo, no que por um gosto particular meu, entendo ser de mais fácil acesso ao leitor. Porém no terceiro livro ele torna a colocá-las no final da obra.

Após a leitura dos três livros fica a curiosidade de como o autor vê os desdobramentos mais recentes de nossa política. A título de sugestão para o mesmo – se é que ele já não o está fazendo - atacar com o seu olhar o período pós-ditadura. Seria um exercício interessante para melhor entendermos os dilemas dos dias atuais. Afinal, como o próprio colocou:

Em 1984, (...) ruas e praças de todo o Brasil foram palco de coloridas, emocionadas e pacíficas manifestações políticas, nas quais milhões de pessoas exigiam o direito de eleger seus representantes. A Campanha das Diretas, que pôs fim a duas décadas de regime militar, abriu caminho para que a República pudesse, finalmente, incorporar o povo na construção do seu futuro. É esse desafio que os brasileiros se encarregam atualmente. (GOMES, 2013:380) – grifo nosso.

Referências:

Laurentino Gomes – 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007 – 365 páginas;

______________ - 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010 – 352 páginas;


______________ - 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil – São Paulo: Globo, 2013 – 416 páginas.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Sr. Holmes

Uma das funções de um crítico de literatura é verificar se o autor da obra entrega aquilo que promete. No caso do uso de um personagem já com uma trajetória, ainda mais quando o autor em questão não é o criador original, a expectativa aumenta, e o desafio se torna mais complexo.

A complexidade estaria centrada em alguns pontos. Personagens revisitados o são normalmente por terem alcançado certo relevo no mundo literário. Esse relevo, por sua vez, está pautado pelo sucesso atingido junto aos leitores, que tem como base a capacidade narrativa do escritor e a anima independente criada, ou seja, muitas vezes a personagem ganha tal força no imaginário do leitor que passa a ter uma persona própria, imune a eventuais tropeços em obras de menor valor – no caso, se for um personagem com uma grande gama de estórias. Se for o personagem de uma única estória, e tem o impacto acima apontado, ele entrou para eternidade – junto com o autor, por supuesto!

Outro aspecto é que tais personagens, por si só, já prometem muita coisa quando incluídos numa trama. Antes de adentrar no mundo daquele que será aqui analisado, o célebre Sherlock Holmes, detetive britânico cuja pousada se dava em Baker Street, podemos exemplificar nos utilizando do mundo cinematográfico. O que esperamos de filmes como do James Bond, Mad Max e Jason Bourne? Ação, muita ação, é o elemento comum a todos. Mas cada um com sua devida sutileza. James Bond necessariamente viria acompanhado das mulheres e de seu savoir faire – o que ganhou certa aspereza com a ascensão Daniel Craig ao papel; com Mad Max imagina-se uma corrida insana em busca da sobrevivência em condições precárias; e com Jason Bourne, um sem número de truques e habilidades na luta corporal garimpadas em meio a uma fuga desesperada por sua liberdade.

Chegamos a então a Sherlock Holmes. Cria original de Sir Arthur Conan Doyle, o personagem surge para o mundo no livro Um Estudo em Vermelho, publicado pela primeira vez em 1887, pela revista Beeton's Christmas Annual (1). Com o passar do tempo suas deduções lógicas, extraídas dos mínimos detalhes observados, acompanhadas das considerações de seu nobre companheiro de aventuras, o Dr. John Watson, tornaram-se marca indelével de seu caráter. Portanto, o que se imagina quando temos Holmes numa trama? Um mistério de resposta insondável a partir do qual somente ele poderá brilhar em sua resolução.

Correndo todos os riscos acima descritos, o escritor Mitch Cullin – “nascido no Novo México, Estados Unidos, em 1968, (...) autor prolífico, com livros traduzidos para mais de 10 idiomas” – se aventura em explorar o famoso detetive britânico na sua obra Sr. Holmes – Ed. Intrínseca, 2015 – 240 páginas. Nesse sentido, de modo a ter mais liberdade, situa a estória em 1947, ano em que Holmes alcança a idade de 93 anos. Uma primeira livre adaptação é a colocação da fama de Sherlock não apenas nos seus dotes enquanto detetive, mas também graças ao sucesso dos livros que descrevem suas aventuras, que teriam sido escritos não por Sir Conan Doyle, mas sim pelo próprio Watson. Além disso, ele encontra-se vivendo numa espécie de chácara, em Sussex, Inglaterra, com o objetivo de se isolar do restante da sociedade, tendo como companhia uma governanta – Sra. Munro – e seu filho, o jovem Roger, sendo sua atividade mais constante cuidar do apiário que possui. Enfim, teríamos como quadro geral um Holmes praticamente aposentado, vivendo do seu amor pelas abelhas.

É neste cenário que Cullin se aproveita, então, para expor ao leitor uma série de questionamentos em forma de roteiro – como seria a vida de alguém que viveu de sua capacidade intelectual a partir do momento em que se vê envolto em falhas de memória? Como lidaria alguém tão independente com a perspectiva solitária do limiar entre a vida e a morte? Ou seja, compramos Holmes, mas recebemos uma tese sobre o impacto do envelhecimento sobre o ser humano.

Posso dizer que não é um livro alegre. Ao contrário, gerou em mim certa tristeza, como um pesar por uma vida desperdiçada, a qual nem mesmo a fama pelos feitos alcançados amenizou a solidão em que se circunscreveu. A favor de Cullin o fato da escrita dele ser suave, quase como um poema. Na verdade diria até que sim, é uma visão poética do tema. Para aqueles que apreciam palavras e observações sutis, que tocam o coração e deixam marcas, não deixa de ser um aprendizado. Mas aí vem o meu questionamento: envelhecer pode até ter seu lado ruim, mas em nenhum momento no livro se apresenta o outro lado, quaisquer benefícios que possam ter sido alcançados, pois o próprio Holmes, em que pese sua afetividade para com o menino que o ladeia, demonstra um amargor, um procurar de uma solução para uma questão intransponível: qual o verdadeiro sentido da vida? Nem ele, o maior detetive de todos os tempos, tem resposta para este enigma. Mas na verdade, será que precisamos ter?

Resumindo: não é uma obra para muitos. Observando o argumento elaborado no início, a expectativa gerada não corresponde ao mérito do personagem. A estória em si tem seu valor, tendo gerado inclusive um filme no qual o personagem é interpretado por Ian Mckellen – o Magneto (velho) de X-Men (2). Uma estória que convida à reflexão. Mas os leitores tradicionais do personagem se verão frustrados, a meu ver (3).

(2)   http://www.adorocinema.com/filmes/filme-223770/criticas-adorocinema/ - “o foco realmente não está no aspecto policial, e sim no potencial emotivo da trama. O possível melodrama (indicado pela amizade frágil entre uma criança órfã e um gênio moribundo) é atenuado por tiradas constantes de humor sarcástico tipicamente britânico, que tornam a obra agradável, embora levemente monótona.
Mr. Holmes pretende ser um filme inofensivo, palatável para todos os públicos, e por isso abre mão de aspectos mais sombrios que seriam pertinentes à psicologia de um homem traumatizado, que nunca experimentou paixões amorosas, guarda rancor do melhor amigo Watson e alimenta uma crescente misantropia”.


(3)   A obra tem, em paralelo, duas estórias investigativas (não necessariamente emocionantes), vistas em flashback pelo personagem principal. Aparentemente apenas uma delas foi aproveitada no filme, mas digo isso sem tê-lo visto. A conferir.