segunda-feira, 28 de março de 2016

MARVELS

O termo “sétima arte” serviu para cunhar em que universo se enquadraria a produção cinematográfica em relação às demais áreas ditas “artísticas”: arquitetura, pintura, escultura, música, literatura e teatro (incluindo a dança). São as chamadas Belas Artes, conceito que surgiu na Europa no final do século XVIII, junto com a proliferação das Academias de Arte, e que designa atividades preocupadas com a criação do belo, independente da sua utilidade prática (1). Nesse sentido venho a tratar aqui daquela que está na lista das novas “artes”, além das 7 mais conhecidas: o mundo dos quadrinhos.

As histórias em quadrinhos (HQ’s) há muito vem conquistando espaço, não apenas entre o público infanto-juvenil, como também entre a parcela adulta de consumidores. A primeira história em quadrinhos moderna foi criada pelo artista americano Richard Outcault em 1895. "A linguagem das HQs, com a adoção de um personagem fixo, ação fragmentada em quadros e balõezinhos de texto, surgiu nos jornais sensacionalistas de Nova York com o Yellow Kid (Menino Amarelo)", diz o historiador e jornalista Álvaro de Moya, autor do livro História da História em Quadrinhos (2).

Nesse mundo peculiar as multinacionais mais conhecidas são Marvel e DC Comics. A Marvel foi Fundada no começo da década de 1930 por Martin Goodman, a Marvel Comics foi originalmente chamada de Timely Comics. Seu fundador era editor de revistas que faziam sucesso com histórias de faroeste. Visionário, Martin Goodman expandiu seu trabalho no sentido de um mercado muito promissor. Com a sede estabelecida em Nova York, Goodman detinha o poder na editora, acumulando diversos cargos. A primeira publicação só aconteceria em 1939 através de uma revista chamada Marvel Comics que mostrou pela primeira vez ao público os personagens Tocha Humana e Namor. A publicação foi um sucesso de vendas e estimulou a equipe responsável a lançar a segunda edição no ano seguinte, mas com o nome de Marvel Mystery Comics (3).

Já a DC Comics Inicialmente ela era chamada de National Comics, mas posteriormente assumiu a sigla que se referia a uma de suas mais famosas publicações, a Detective Comics, que entre outras criações trazia em suas páginas as aventuras do Batman. Em 1937 a empresa adotou o nome desta revista, batizando-se assim como Detective Comics, Inc. Em 1944 ela se uniu à National Allied Publications, responsável pela edição da Action Comics, na qual o Superman apareceu pela primeira vez. Com esta fusão o conglomerado empresarial passou a ser conhecido como National Comics, embora fosse informalmente denominado DC Comics, até este título ser oficialmente assumido (4).

As HQ's assim se consolidam mundialmente alicerçadas nestas duas empresas como expoentes, à parte as chamadas “independentes”, que muitas vezes possuem uma temática mais dramática, ou poética. Existem muitos outros personagens conhecidos mundo afora – Tintim, Asterix, Turma da Mônica, sem falar nos mangás japoneses, etc – que não estão neste contexto de geração de super-heróis majoritariamente ambientados nos Estados Unidos. Mas é inegável a influência que estas duas empresas tiveram e têm na popularização no imaginário de gerações de consumidores voltados para a exposição em pequenos quadros ilustrados dos grandes dramas humanos – ou mutantes, ou inumanos, ou alienígenas, whatever...

Mas restava uma lacuna a ser suprida. E essa lacuna veio a ser preenchida com a série denominada Marvels, com roteiro de Kurt Busiek e desenhos de Alex Ross.
Edição comemorativa
Publicada originalmente em 1994, a minissérie em quatro edições conquistou público e crítica ao retratar os grandes eventos da trajetória do Universo Marvel do ponto de vista de um simples mortal, o fotógrafo Phil Sheldon, com texto impactante e pinturas hiper-realistas (5). A edição a qual tive acesso foi a comemorativa, lançada em 2010. Num olhar rápido, a obra pode ser melhor aproveitada por aqueles que acompanham a trajetória das “maravilhas” – como o personagem Sheldon chama os super-heróis e que dá origem ao termo “Marvels” – já há algum tempo, pois existe uma costura entre os momentos emblemáticos do universo Marvel – iniciando-se com o surgimento do Namor e do Tocha Humana, acima já citados; passando pelo explosão do Capitão América durante a Segunda Guerra Mundial; alcançado a emergência dos mutantes do X-men, não sem antes a ambientação com o Quarteto Fantástico em meio aos humanos, enfrentando Galactus. Finaliza, então, com o desencantamento – ou humanização – dos super-heróis via Homem-Aranha, a partir do episódio do fracasso em salvar Gwen Stacy, trazendo à baila que até mesmo eles falham.
Os quatro livros que compõem a série original e
que foram vendidos separadamente
 O impacto gerado por essa nova perspectiva traz o leitor para a imersão num pseudo-realismo. Um simulacro para a sensação a qual Busiek buscou expor a todos os aficionados é algo similar ao que foi feito, por exemplo, na obra cinematográfica A Onda. Em uma escola da Alemanha, alunos têm de escolher entre duas disciplinas eletivas, uma sobre anarquia e a outra sobre autocracia. O professor Rainer Wenger (o ator Jürgen Vogel) é colocado para dar aulas sobre autocracia, mesmo sendo contra sua vontade. Após alguns minutos da primeira aula, ele decide, para exemplificar melhor aos alunos, formar um governo fascista dentro da sala de aula. Eles dão o nome de "A Onda" ao movimento, e escolhem um uniforme e até mesmo uma saudação. Só que o professor acaba perdendo o controle da situação, e os alunos começam a propagar "A Onda" pela cidade, tornando o projeto da escola um movimento real. Quando as coisas começam a ficar sérias e fanáticas demais, Wenger tenta acabar com "A Onda", mas aí já é tarde demais (6).

A visão romantizada de que todos iriam reagir com benevolência e gratidão pelos super-heróis, por estes serem pessoas ou seres que vieram nos salvar dos perigos que nos rondam, desde a criminalidade mais pueril até os grandes vilões que desejam destruir o planeta Terra, é colocada em cheque por Busiek. Como em A Onda, aqueles que não acreditavam que pudesse haver um sentimento de reatividade ao desconhecido, mesmo que este fosse benéfico à própria humanidade, ou indo mais fundo, uma espécie de inveja ou temor de sermos dominados, escravizados, por aqueles que não poderíamos compreender, remete à tendência da humanidade na busca do controle absoluto, da mitigação das incertezas. O outro deve ser estigmatizado e colocado à margem da sociedade.
O personagem Phil Sheldon em meio ao seu drama pessoal
por compreender esse novo mundo com seres inusitados e os impactos
sobre o dia a dia. 
Esta mesma dinâmica talvez seja a causa maior do alastramento do sentimento depressivo dos dias atuais, afinal de contas, ninguém pode ter o controle sobre tudo o tempo inteiro. Há que se preservar o espaço ao acaso, ao diferente, que dá colorido à vida. Inclusive este é o gancho para as duas obras cinematográficas da DC e da Marvel que dentro em breve estarão nas telonas concomitantemente – Batman vs Superman & Capitão América: Guerra Civil. Nestes são colocados em lados opostos super-heróis que defendem maior controle sobre a ação de seus pares, para que estes não venham a prejudicar demasiadamente os seres humanos “comuns”, daqueles que defendem que toda a prática de controle acaba por acarretar numa espécie de fascismo velado.

Os Vingadores, da Marvel, por Alex Ross
Em resumo, a obra vale a pena ser vista e lida por dois motivos básicos. O primeiro é o traço realístico de Alex Ross, verdadeiras pinturas se comparados com os quadrinhos “de produção”. Inclusive na edição comemorativa somos brindados com desenhos de página inteira ao final com personagens “B” que poderiam ser emoldurados e gerar quadros para serem pendurados nas paredes de galerias.
A Liga da Justiça, da DC, por Alex Ross
E o segundo, tendo a mente aberta para este outro olhar construído por Busiek, de maneira a que observemos que somos iguais na exata medida daquilo em que somos diferentes.
Kurt Busiek (à esquerda) e Alex Ross
Os deuses também falham, assim como os seres humanos. Talvez, apenas, os erros sejam superdimensionados, afinal, como diz o Homem-Aranha, grandes poderes, grandes responsabilidades.

(5)   http://www.universohq.com/reviews/marvels/ - inclusive neste artigo as HQs são denominadas de “nona arte”. A este respeito interessante ver http://quadro-a-quadro.blog.br/por-que-quadrinho-e-a-nona-arte/. Neste existe a seguinte descrição:

Mas o homem, em sua infinita insatisfação e busca por expressão, inventou o cinema. E o cinema maravilhou apreciadores e encantou criadores. E Ricciotto Canudo o considerou a mais completa das artes, pois englobava todas as outras artes. E em 1923 publicou o "Manifesto das Sete artes" organizando-as da seguinte forma:

1ª Arte – Música (som);
2ª Arte – Dança/Coreografia (movimento);
3ª Arte – Pintura (cor);
4ª Arte – Escultura (volume);
5ª Arte – Teatro (representação);
6ª Arte – Literatura (palavra);
7ª Arte – Cinema (integra os elementos das artes anteriores).

A partir daí as artes passaram a ter classificação e a serem vistas tanto por apreciadores quanto por criadores com olhos cartesianos. E quando Canudo chegou à clareira no final da estrada, outros homens continuaram seu trabalho de sistematização das artes:

8ª Arte – Fotografia (imagem);
9ª Arte – Quadrinhos (cor, palavra, imagem);
10ª Arte – Jogos de Computador e de Vídeo (no mínimo integra as 1ª, 3ª, 4ª, 6ª, 9ª arte);
11ª Arte – Arte digital (integra artes gráficas computorizadas 2D, 3D e programação).



4 comentários:

  1. Eu gostava e hoje adoro o mundo da Marvel porque ele me aproxima mais do meu filho. Ele me tira dúvidas a respeito dos poderes de cada um. E reconhece , antes de mim, Stan Lee em suas aparições. Adoro quando isto acontece.

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  2. Excelente resenha Leopoldo. O que mais me cativou foi realmente a proposta inovadora de 'Marvels" de conferir protagonismo a um personagem comum e os seus dilemas para desenvolver um olhar capaz de apreender e compreender o fascínio e o impacto que o advento das "maravilhas" lançaria na vida de qualquer um de nós. Esta HQ apresenta uma série de camadas subjacentes sobre tolerância, preconceito, receio do desconhecido e (um que me chamou muita atenção) ingratidão. Como se comover pelo sacrifício de personagens que nos fazem mergulhar em um estado de insignificância e desimportância? Como alcançar algum sentido de grandeza em fatos e atos que ameaçam nossa própria existência? Seria possível sermos empáticos aos super-heróis se eles realmente existissem? Somos todos potencialmente inclinados à intolerância quando nos sentimos ameaçados pelos que são diferentes e tidos como potencialmente danosos? Discussão bem atual, não? Gostei da analogia que fez com o filme "A Onda". Em tempo: tenho, além desta versão alemã, uma versão mais antiga, feita para a TV nos EUA, nos anos 80. O final é mais otimista que a versão recente. Não sei se sabe mas, de fato, essa experiência foi realizada por um professor em uma escola de Palo Alto (EUA), nos anos 60.

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    1. Sim, Carlos Maurício. Conheço ambas as versões de A Onda. Sou velho o suficiente para ter visto a norte-americana na tv, a trocentos anos atrás. E sim, sabia q tinha verdadeiramente ocorrido.

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  3. Meu amigo o que posso dizer? Você sabe o quanto sempre fui entusiasta dos "quadrinhos"!!! Aprendi, aprendo e continuarei aprendendo muito. E me divertindo "de montão"!!! Logo, vida longa para as HQs e que continuemos tendo sagas maravilhosas como MARVELS, Cavaleira das Trevas, 300, etc. Como diria o "CARA": Excelsior!!

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