sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

12 HUELLAS CELESTES

Orgulho. Se tiver um traço que distingue o povo uruguaio é o orgulho por sua própria história. Nós, brasileiros, se temos algo que nos vincula a eles poderíamos dizer o traço máximo com o qual contribuímos para esse sentimento não advém de nenhum conflito bélico, mas sim do esporte: o Maracanazo da Copa do Mundo de 1950 permanece como uma das bandeiras em termos de exemplo do que o Uruguai pode alcançar.

Este sentimento está explícito na obra “12 Huellas Celestes – Uruguay en los Mundiales” (12 Pegadas Celestes – Uruguai nas Copas do Mundo – tradução livre), de Alfredo Etchandy – Ediciones B Uruguay S.A. – 2014 – 191 páginas. Livro produzido e lançado 6 meses antes da última Copa do Mundo realizada no Brasil, peca pelas expectativas, a meu ver exageradas, em relação às possibilidades do selecionado celeste no torneio citado. Porém, esta é uma questão de fundo, a qual abordarei com calma mais para o final. Existem algum poucos erros de forma – traço infelizmente comum das obras literárias dedicadas ao futebol – mas que não atrapalham o excelente resultado de pesquisa histórica sobre o próprio esporte e a participação uruguaia nos Mundiais.

Assim, diria que o grande mérito do autor, alguém extremamente envolvido com os esportes, sendo um dos mais reconhecidos jornalistas esportivos do Uruguai, com sólida formação em Sociologia, Etchandy nos apresenta nos 3 primeiros capítulos – FIFA¹ / Os Jogos Olímpicos / a Copa do Mundo – dados históricos pinçados que nos dão a dimensão exata, mesmo que não detalhada, de cada um dos atos necessários para que o futebol se transformasse no que é hoje em dia. Desta forma, estava construído o cenário no qual o Uruguai brilharia, principalmente na primeira metade do século passado.

Alguns dados interessantes, por exemplo:

·         A origem comum entre o rúgbi e o futebol – (...) el 24 de octubre de 1863, cuando se efectuó uma reunión con participación de varios colegios e instituciones deportivas [britânicas]. La mayoría se pronuncio por la no utilización de las manos, creando las primeras reglas. (...) Los seguidores de la otra corriente , algunos años después, establecieron las reglas del football rugby, por lo que ambos deportes quedaron definitivamente separados y pasaron a transitar caminos diferentes. (pág. 10);
·         O fato da Confederação Sul-Americana, criada em 1916, ser bem mais velha que a União Europeia de Futebol (UEFA), que foi estabelecida somente em 1954 (pág. 13);
·         E o enaltecimento das duas medalhas de ouro olímpicas – 1924 e 1928 ganhas pelo Uruguai - como verdadeiros campeonatos mundiais, uma vez que a Copa do Mundo ainda não havia sido criada naquela ocasião (foi disputada pela primeira vez e ganha pelo país anfitrião – o próprio Uruguai – em 1930) – pág. 14 – com o devido reconhecimento da FIFA de tal entendimento a partir de seu Congresso realizado em 1914.

Este último ponto já faz a ponte direta com o outro aspecto por mim citado com um dos principais elementos da obra, que é a exposição do orgulho uruguaio de sua própria história. O tom vai num crescente nos capítulos seguintes – Uruguai nas Eliminatórias / Uruguai na Copa do Mundo / Brasil 2014 / Análise FOFA² Celeste / Conclusões.

O levantamento histórico feito pelo autor – cada um dos jogadores uruguaios que participou de cada uma das partidas em cada um dos Mundiais, assim como de sua fase eliminatória, uma vez criada – atende aos leitores aficionados pelo tema, principalmente os nascidos naquele país. Ou seja, um livro que caía como uma luva às vésperas do torneio mundial – objetivo que fica claro pelos 3 capítulos finais.


Estes denotam um otimismo imenso com relação às possibilidades uruguaias. O autor chega a elencar uma série de fatores que indicavam o motivo porque acreditava na possibilidade de conquista do campeonato:

·         Na América sempre triunfam os americanos – a Alemanha provou o contrário. Este argumento, estatístico, se perde em meio ao processo evolutivo e de disparidade em termos de organização do atual estágio de administração do negócio futebol. Se perder em meio a história é um grande pecado para um analista;
·         Colocou que entre os sul-americanos somente Brasil, Argentina e Uruguai teriam chances. Em que pese a eliminação precoce de Colômbia e Chile parecerem lhe dar razão, não se pode negar a evolução tática e técnica destas equipes;
·         Utiliza o ranking da FIFA – o Uruguai estava em 6º na ocasião do lançamento do livro – como um referendo para suas possibilidades, quando todos nós sabemos que classificações como essas são mera estatística, sendo o futebol tão querido justamente por ser um esporte em que o mais fraco pode subverter o rumo da História;
·         Ressalta mais de uma vez que o Uruguai já havia sido campeão no Brasil. Uma coisa é ter orgulho de uma façanha. Outra é fazer uma análise fria das possibilidades reais de vitória. Nós, brasileiros, sabíamos não ser os favoritos contra a Alemanha – em que pese não adiantarmos o 7 x 1, marca indelével que teve apenas um fator positivo: ter deixado de lado, para nós, o 2 x 1 de 50 como um mal menor.

Estes foram os principais pontos de uma série de 19 (dezenove)! Porém todos giraram em torno dos raciocínios acima apresentados. Acrescentaria ainda a confiança num grupo de jogadores que já havia apresentado seu valor em torneios anteriores – Uruguai foi o último campeão sul-americano, em 2011, na Argentina, além de ter ficado em 4º lugar no último mundial. Esqueceu-se mais uma vez que alguns anos haviam se passado e nada poderia garantir que tal desempenho se repetiria.

Agora, uma ressalva deve ser feita: fato é que o Uruguai, até o fenômeno da mordida de Suaréz, seu principal atacante, no jogo contra a Itália, ainda pela primeira fase, vinha cumprindo um belo campeonato, eliminando tanto a equipe Azzurra quanto a Inglaterra, favoritas para o grupo, derrubando inclusive o tabu de não vencer equipes européias em Mundiais que já alcançava mais de 40 anos. Enfim, como o próprio autor sinalizou logo no início de sua obra: El optimismo es un componente tradicional antes de cada participación, pero la verdad estará representada con lo que pase en el verde césped (pág. 8).

Observações:

A – A seleção brasileira de 1982, a que encantou minha geração no Mundial da Espanha, deixando sua marca perante todo o resto do mundo, também é citada por Etchandy: Brasil jugó un fútbol exquisito en matéria de ataque, pero con debilidades defensivas. El técnico era Telê Santana que nunca renunció al aspecto ofensivo. Eso le costó muy caro con Italia y cuando parecia que tênia clasificación asegurada perdió por 3 a 2 quedando afuera de torneo. Zico, Falcao, Toninho Cerezo y Sócrates eran las figuras del equipo. (pág. 61). Para aqueles que não conhecem o espanhol, exquisito significa muito bom.
B – Dois erros em termos de informação foram por mim identificados: o primeiro diz respeito às participações do lateral direito Cafu nas finais dos mundiais de 1994, 1998 e 2002. A frase utilizada pelo autor foi – “Cafú logro jugar tres instancias tan trascendentes, pero solamente triunfo en las dos primeras cayendo en la restante” (pág. 91). Na verdade Cafu perdeu a final de 1998 – Brasil 0 X França 3. O Brasil, tendo a sua presença, ganhou as finais de 1994 – vitória nos pênaltis sobre a Itália, após empate no tempo normal e na prorrogação (Cafu entrou no decorrer do jogo, no lugar do lateral titular, Jorginho) – e de 2002 – Brasil 2 x 0 Alemanha.
C – O segundo erro (ou omissão, como preferir) diz respeito às regras de convocação de jogadores para o torneio olímpico de futebol masculino. O autor prefere apontar somente para a mudança de regra a partir do torneio de 1992, disputado em Barcelona, Espanha, quando passou a vigorar a orientação atual – seleções sub-23, tendo a possibilidade de convocação de 3 jogadores acima de 23 anos (págs. 18 e 34). Porém, durante os torneios de 1984 (Los Angeles) e 1988 (Seul) já houve uma mudança em relação à aceitação de jogadores profissionais. Até então não era permitida a participação destes, o que favorecia os países da antiga Cortina de Ferro, que levavam os seus principais plantéis enquanto os países do Ocidente somente podiam comparecer com jogadores juniores. Em 1984 e 1988 os países podiam levar jogadores profissionais, mas desde que eles não tivessem participado de Copas do Mundo - http://www.bolanaarea.com/gal_olimpiadas.htm . O Brasil, por exemplo, em 1988, contava em seu plantel com Andrade (Flamengo). Em 1984 fomos representados praticamente pela equipe do Internacional de Porto Alegre, acrescida de Gilmar Popoca, do Flamengo.
D – Por último, acredito que todo um capítulo dedicado ao número 12 seria dispensável – págs. 155-159.

          (1)  Federação Internacional de Futebol – http://pt.fifa.com

      (2) Análise FOFA – Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças. Metodologia de análise utilizada comumente no campo da Administração de Empresas aqui aplicada ao selecionado uruguaio que se preparava para o Mundial no Brasil.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Casagrande e seus Demônios

Walter Casagrande Júnior, ou como é mais comumente conhecido, Casagrande (ou Casão), não pode ser proclamado, para mim, como um ídolo futebolisticamente falando. Talvez nem pessoalmente falando, uma vez que durante sua vida tomou decisões com as quais não concordo, porém o mesmo afirmou não se arrepender – “Não me orgulho de tudo o que fiz, mas não me arrependo de quase nada” (pág. 231).

 
Por outro lado, não há como deixar de admirar alguém que chegou ao fundo do poço, e cavou ainda um pouco mais, e de lá ressurgiu, não sem ajuda, que prossegue até hoje, para servir de exemplo que existem caminhos tortuosos demais que não devem ser seguidos, por mais prazerosos que pareçam ser. A luta contra o vício das drogas é uma constante na vida deste cara, de opiniões sinceras e de uma fragilidade humana que fica muito clara nessa sua biografia que analisaremos neste post – “Casagrande e seus Demônios – Casagrande e Gilvan Ribeiro – Ed. Globo – 2013 – 248 págs.

Para quem vive do esporte, não deixa de ser contraditório, pelo menos no discurso, se entregar às drogas. Muitos são os casos de atletas de alto nível que, sob a pressão do resultado, cedem ao que se oferece como um alívio momentâneo, sem perceber como estar mordendo uma isca que os levará cada vez mais distantes do seu ideal de bem viver – men sana in corpore sano.

Porém este não foi o caso de Casagrande. Ele já tinha na sua veia a alma do transgressor, seu relacionamento com as drogas surgiu antes mesmo de que o sucesso avassalador o engolfasse. Teve um breve interregno, enquanto jogava na Itália – Ascoli e Torino – porém, ao retornar ao Brasil, até mesmo já como comentarista, sua derrocada foi forte demais, levando-o a ficar internado, recluso, por 1 ano, tendo os vencimentos sempre pagos pela Rede Globo. Fundamental neste processo foi o locutor Galvão Bueno, que o apoiou tanto externamente, junto à emissora, quanto no seu processo de retomada de sua vida.

O livro em si teve a co-autoria de Gilvan Ribeiro, jornalista que o auxiliava nos tempos de escrita para a coluna do Diário de São Paulo, e somente o último trecho dele foi integralmente escrito pelo próprio jogador – talvez o trecho mais revelador de sua personalidade. É como se víssemos, enfim, a persona se revelando inteira. O restante da obra foi produto de inúmeras entrevistas com Gilvan, não somente de Casão, mas também das pessoas que estavam a sua volta e viveram com ele suas derrotas e vitórias.

A história ali retratada está aparentemente dividida em duas partes. Os autores resolveram atacar de cara o trecho mais pesado, o derradeiro mergulho fundo nas drogas que o levou à longa internação de 1 ano, mergulho este que gerou os tais “demônios” do título.

As portas do inferno estavam abertas. Os demônios invadiam a casa, sem qualquer cerimônia, andavam pelos cômodos, apareciam nas paredes, sentavam-se nos sofás. Como se a presença deles fosse algo natural. Eram feios, muito feios, horrendos mesmo. E grandes, enormes, mal cabiam no apartamento localizado na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo. (...) A confusão se tornava ainda maior pela quantidade de noites e manhãs que se emendavam, sem intervalo de um sono restaurador. Atingira algo em torno de dez dias em claro, sem dormir ou comer (pág. 21).

O trecho acima é o de abertura propriamente dita da narrativa. Daí vocês podem ter a medida de quão pesado o é. Há que ser forte para acompanhar a leitura e entender o quão frágeis somos. E ao mesmo tempo como forte pode ser o ser humano para sair de um transe como o narrado.

Como vinha dizendo anteriormente, o livro é dividido. Na primeira parte – os 10 primeiros capítulos temos no centro a luta contra as drogas:

·         Demônios à solta;
·         Água benta;
·         Overdoses;
·         A primeira internação;
·         Memórias do exílio;
·         A vida lá fora;
·         Os filhos;
·         Domingão do Faustão;
·         Inferno na torre;
·         Prisão em flagrante.

Na segunda parte – os dez capítulos finais – ele se debruça sobre suas outras lutas, futebolísticas e políticas, porque não dizer:

·         Democracia Corintiana;
·         A ditadura do amor;
·         Uma dupla (quase) perfeita;
·         Política em campo;
·         O Leão é manso;
·         Aventura na Europa;
·         Às turras com Telê;
·         Pegadinhas do Casão;
·         Futpopbolista;
·         História sem fim.

Nesta segunda parte se destacam o fenômeno da Democracia Corintiana – início dos anos 80, o Corinthians, grande clube paulista, tendo como jogadores um grupo liderado por Sócrates, Casagrande e Wladimir e o apoio do Diretor de Futebol Adílson Monteiro Alves, implanta um sistema de gerenciamento em que todos são chamados a opinar e votar sobre as principais decisões envolvendo o time (até aquelas nem tanto) em meio a um processo de reabertura democrática pelo qual passava o país – e do qual ele fazia questão de participar ativamente; o relacionamento com Sócrates, o craque recentemente falecido em função do alcoolismo; sua experiência na Europa e um depoimento muito sincero sobre o doping no futebol; e uma surpreendente faceta ditatorial e teimosa de Telê Santana.

Ou seja, muitas foram, e ainda serão, as lutas do cara ali retratado. Um livro, como disse anteriormente, porém com outras palavras, que não é para fracos. Mas que vale a pena ser lido, talvez todo direto, sem paradas – eu o li em 24h, entre Buenos Aires e Niterói. Ele cumpriu, entendo eu, o que se propôs. Basta vocês agora entrarem nessa viagem, no bom sentido, é claro.


Pra gente conseguir viver, a gente precisa ter fome de alguma coisa, tem de ter sede de alguma coisa. A gente não pode ficar no meio-termo. Isso seria pior do que a morte. Eu quero tudo completo, não me contento com nada pela metade. E é assim que espero ter me entregado nesta biografia: por inteiro. (pág. 242).

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Uma Breve História do Cristianismo

A proximidade com a religião, mais especificamente com a fé católica, reavivou em mim a curiosidade em torno de suas origens e evolução. Nesse sentido, quando vi a obra “Uma Breve História do Cristianismo”, de Geoffrey Blainey (Ed. Fundamento – 2012 – 335 páginas), não hesitei em adquiri-la. O autor igualmente escreveu o livro “Uma Breve História do Mundo”, seu best-seller e que o alçou ao panteão de historiadores reconhecidos mundo afora.

Porém, o desafio a que se propõe navega por mares caudalosos, normais quando se trata de religião. Observem os temas destacados na contracapa do livro:

            Quem foi Jesus? Um mito ou um homem de infinita sabedoria?
            Qual a origem dos Evangelhos e o que se sabe a respeito daqueles que o teriam redigido?
            Que fatos levaram a disseminação do Cristianismo ao redor do mundo?
          E qual o papel de outros personagens desta história, como Francisco de Assis, Martinho Lutero, John Wesley, João Paulo II e até os Beatles?

Ou seja, a partir daí se esclarece a primeira dúvida que poderia surgir na cabeça do leitor. O autor na verdade fala sobre o Cristianismo e suas diversas vertentes – Católica, Ortodoxa e Protestante – assim como sua influência sobre outros aspectos e religiões. O tema é tão abrangente e profundo que poderia ser considerado, para ser rico em detalhes, a obra de uma vida.

Mas o objetivo do autor não era esse. Se tem uma crítica que pode ser falsa é a superficialidade do livro. Isto é uma característica. Ele dá uma breve introdução ao tema – daí o termo “Breve” no título – deixando ao leitor o gosto de “quero mais”. Aqueles que se sentirem instigados por um dos temas tocados deverão, por sua própria conta, assim, se aprofundar em seu estudo. Outro aspecto a se destacar logo no início é de que uma obra de História, ou seja, o aspecto de análise político-científica se sobrepõe, na maior parte do tempo, às avaliações de cunho religioso.

Esta é a crítica mais geral que podemos fazer a esta obra. Mas, dado que estamos tão próximos de uma data importante – o Natal – acho que vale a pena buscar apontar para vocês outros aspectos que me chamaram atenção, e que sabe ajudar o professor Blainey, como o faz em Harvard e Melbourne, a instigar alguns nessa jornada.

Vale aqui uma pequena crítica de forma: logo no início do livro é disposto em um mapa as 10 nações de maior população cristã em números absolutos- Estados Unidos, Brasil, México, Rússia, Filipinas, Nigéria, República Democrática do Congo, China, Itália e Etiópia. Acredito que o mais correto seria uma avaliação percentual.

A Bíblia e as Circunstâncias que a Cercam

Uma das questões que giram em torno do Cristianismo é como um dos seus símbolos de maior penetração foi construído. A Bíblia, na verdade um conjunto de livros (1), é o meio pelo qual a mensagem de Jesus Cristo se propagou pelos 4 cantos do mundo. Hoje em dia já se tem a exata noção do papel do entorno histórico em sua constituição. Histórias foram adaptadas para que, com as características daquele tempo, fossem mais facilmente assimiláveis pelos ouvintes – história oral, antes da reprodução escrita – e leitores futuros. As cenas ali descritas diziam respeito a uma realidade vivida e ainda muito vívida para o público-alvo. O Antigo Testamento teria, por exemplo, sido escrito com o seguinte contexto:
 
Deus dominava a cultura judaica. Era o Deus dos judeus, embora não exclusivamente. Chamado “O Eterno”, era invisível e imortal, detentor de enorme poder e conhecimento e de uma imensa capacidade de sentir amor e raiva. Tendo criado o ser humano à sua imagem, tendo-o dotado do livre-arbítrio, concedeu-lhe o direito de escolher entre o bem e o mal. Se obedecesse às leis de Deus, seria ajudado por Ele. Deus era o pai; os judeus, os filhos: os filhos de Israel. A maior parte dos hinos que eles cantavam – os salmos – tinham sido compostos durante o exílio na Babilônia e o triunfante retorno a Jerusalém. Por experiência própria, podiam afirmar confiantemente: “Deus é nossa força e nosso refúgio, um auxílio sempre presente na adversidade”. (pág. 18)

Tal coletânea, porém, tinha que ter, para sua penetração ser bem sucedida, o uso de uma língua dominante naqueles tempos. Caso fosse constituída hoje em dia, em qual idioma o seria? Inglês, muito provavelmente. Alguns exemplos foram pontuados pelo autor, de como o grego teria então predominado, influenciando muitos dos ritos modernos e denominações utilizados ainda hoje em dia:

Atualmente, palavras gregas ainda são importantes nas igrejas católicas e na maior parte das protestantes, além, é claro, da igreja ortodoxa. “Cristo” e “Bíblia” são palavras gregas. “Anjo” tem origem grega, com o significado de mensageiro. Depois da morte de Cristo, os doze discípulos foram honrados com o nome grego de “apóstolos”, e mais tarde Paulo e Barnabé – um judeu de Chipre – receberam o mesmo título. “Bispo” vem do grego, em que significa “inspetor”. “Eucaristia”, a principal cerimônia da igreja cristã, é a palavra grega para “ação de graças”. “Pentecostes” também é do grego, e quer dizer 50 dias depois da Páscoa. Ainda hoje, em locais diversos aonde chegou a doutrina cristã, ouve-se a oração “Senhor, tem piedade” em sua versão grega, “Kyrie eleison”. (pág. 48)

De todo modo, já no Novo Testamento, quando se tem o testemunho dos dias de Cristo na Terra, a Bíblia apresenta então, por intermédio dos Evangelhos, um Deus mais preocupado com a pregação da mensagem, com o espírito que queria deixar como herança para a humanidade, do que com regras rígidas. Isso era algo que deveria transcender questões de forma e idiomáticas, pois seria algo inteligível em qualquer língua:

O jejum, adotado pelo cristianismo, vem de um ramo do judaísmo. Os fariseus jejuavam nas segundas-feiras e nas quintas-feiras. O próprio Cristo, pelo que se sabe, não enfatizava a prática regular do jejum, embora tivesse jejuado enquanto meditava e orava no deserto. Ele compareceu a tantos casamentos, ceias e banquetes, que fica difícil vê-lo como um adapto do jejum extremo. Além disso, ele acreditava mais no espírito do que nas regras. (pág. 59)

Nesse trecho acima citado, fica mais claro do que nunca a veia do historiador do autor, se atendo aos fatos e circunstâncias, deixando de lado a crença e regras ditadas por quaisquer das religiões citadas.

De todo modo uma semente havia sido plantada por um homem chamado Jesus Cristo e ela viria a frutificar tão intensamente que é inegável sua influência sobre a cultura dos povos até os dias de hoje:

Muito antes da era moderna do ativismo agnóstico, mentes ricas em inteligência questionavam ou defendiam a precisão e a autenticidade dos primeiros manuscritos, para selecionar os melhores. Até o século XX, mais horas de estudo foram dedicadas à vida de Jesus do que à Física, à Química e talvez a todas as ciências combinadas. Em meio a tanta controvérsia, a maioria dos cristãos chegou a um acordo. Eles acreditam que um homem chamado Jesus viveu e morreu, e que sua vida e seu espírito transmitiram uma mensagem fascinante. (pág. 51)

Mas será que tal mensagem passou incólume às diatribes políticas?

Questões Mundanas e o Cristianismo

Uma das grandes contendas que permanece até os dias de hoje é a que opõe o Cristianismo e o Islamismo, como se duas religiões fossem excludentes e não pudessem conviver. Isso é um total contrassenso, dado que está na origem de todas as religiões a tolerância e o bem viver para com o outro. Porém entende o autor, ao contrário, que tal característica é recente:

Um aspecto que nos intriga atualmente é o fato de a tolerância não figurar, naquela época [século XVI], como objetivo no universo de cristãos, hindus, budistas, chineses, astecas ou incas. A ampla tolerância religiosa é quase uma invenção dos tempos modernos – praticamente impensável séculos atrás. O importante era sustentar a visão religiosa apropriada, e não a liberdade de rejeitá-la. O direito de desobedecer ao governo e à Igreja, o direito de ser livre em matéria de consciência, são preceitos que surgiram muito lentamente, depois de fortes tensões provocadas pela Reforma. (pág. 221)

Porém, ora os cristãos por intermédio das cruzadas, ora os muçulmanos no seu processo de tomada de grande parte da Europa, valeram-se do suporte religioso para validar seus interesses políticos. E o autor aponta para alguns destes fatos:

Maomé combinava intensas visões religiosas a ambiciosos objetivos militares. Para estabelecer uma base segura na Arábia central, empregou o poderio bélico na conquista de Meca, em 630. Ele morreu dois anos depois. Seus seguidores muçulmanos, orgulhosos nacionalistas árabes, interessados ao mesmo tempo em progresso religioso e econômico, ampliaram suas vitórias. O sucesso veio rapidamente, em parte porque avançaram sobre as pegadas das recentes conquistas dos persas em muitas regiões da Ásia Menor e do Egito. Os habitantes de várias dessas regiões preferiam os muçulmanos aos persas. Até certos setores do cristianismo receberam relativamente bem os exércitos muçulmanos. (pág. 91)

Obviamente o autor corre um sério risco neste trecho de sua obra, sob a possibilidade de resvalar para um preconceito arraigado na cultura ocidental. Porém, por todo o livro ele pontua o uso indevido da prática religiosa ora por um determinado grupo, ora por outro. As mulheres, por exemplo, formam uma classe que muito sofreu pelo mau uso e o pouco entendimento dos leigos sobre os preceitos do Cristianismo, tendo o povo muitas vezes sido massa de manobra, mesmo para resolver questiúnculas:

Em uma notória atividade durante a Reforma, as mulheres estiveram em evidência. Mais do que os homens, elas eram acusadas de bruxaria. De cada quatro condenados à morte por bruxaria, três eram mulheres, e a acusação tinha partido de outras mulheres. Essas acusações freqüentemente aconteciam depois de disputas e brigas domésticas, e eram acirradas por diferenças religiosas. (pág. 219)

A força das palavras embutidas no modo de vida cristão teria sido assim testado ao extremo para sobreviver a tantos desvios de sua real mensagem. Os caminhos trilhados poderiam ser diversos, mas o fim não poderia ser esquecido. A Igreja Ortodoxa, tão pouco conhecida pelo Ocidente, é um exemplo de tal fato. “Durante séculos, a Igreja Ocidental, baseada em Roma, foi o ramo mais fraco do cristianismo. Foi também a que menos se expandiu. Seus bispos não percebiam o vigor do avanço dos missionários ortodoxos pelo interior da Europa Oriental, em direção à Sibéria”. Sua influência nos Balcãs chega até ao ponto de ser considerada a precursora da literatura eslava, a partir do momento em que dois irmãos, Cirilo e Metódico (o nome não poderia ser mais apropriado) “traduziram os documentos e liturgias principais para a língua eslava, inclusive criando um alfabeto” (pág. 104).

Distinto é o modo de vida na Igreja Ortodoxa – padres e religiosos de baixo escalão podem casar (já bispos têm que deixar a mulher, que entra para um convento), participando ativamente da vida regular dos pequenos povoados em que se inserem. Somente este aspecto os tornou no passado extremamente fortes em passar a mensagem adiante perante as comunidades das quais eram membros. Por outro lado, a Igreja Católica Ocidental convivia com o isolamento de seus representantes e com práticas avessas ao que pregavam, inclusive possuindo amantes (pág. 97).

De todo modo, com o passar dos anos a modernidade e a flexibilidade se fizeram necessárias para que a Igreja Católica avançasse. Mesmo o embate perante a ciência demonstrou-se falso, dado que no próprio seio religioso surgiram as primeiras universidades. “Os cristãos provavelmente não fizeram questão de enfrentar as bem equipadas forças da ciência. Afinal, os sérios equívocos na cronologia da história da Terra não eram suficientes para abalar suas crenças” (pág. 287). O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi o maior exemplo desta guinada.

Como administrar uma enorme instituição global como aquela, em um mundo que passava por mudanças drásticas? (...) O latim foi eliminado da liturgia, substituído pela língua local ou nacional, (...). Na missa, o padre passou a ficar de frente para as pessoas; até então, ele ficava de costas para a assistência e de frente para o altar. Foi admitido um novo tipo de música, mas leve; (...). (Pág. 307)

Algo que por vezes se escapa às pessoas é que em nenhum momento foi afirmado por Cristo – pelo menos nas palavras registradas – de que sua Igreja seria estática. A constante evolução deve ser sempre em prol da mensagem maior de amor entre todos. Para os judeus, desde sempre Deus era justo. “Seu amor ilimitado e eterno foi citado duas dúzias de vezes no salmo 136. (...) Se seu mundo fosse arrasado por um desastre natural, ou um conquistador estrangeiro invadisse sua terra, eles acreditavam ter merecido. Foram essas crenças judaicas que Jesus absorveu desde criança. Algumas ele reformulou mais tarde, quase ao fim de sua curta vida, mas aceitou instintivamente e seguiu sinceramente a maior parte delas” (pág. 19).

Conclusão

Alguns de vocês sabem que sou católico praticante. Minha fé, em que pese as leituras elucidativas da origem da minha religião, não foi abalada de forma nenhuma. Continua forte. Creio, porém, ser necessário ter tal conhecimento até mesmo para poder dialogar com quaisquer pessoas, preservando o bem estar e o bom convívio entre todos.

Pouco citei as inúmeras passagens e exemplos dos credos protestantes existentes no livro. Mas tal não foi proposital, pois como dito no começo desta resenha, o autor pouco se aprofundou em cada uma delas. Preferi destacar aqui aspectos de cunho mais universal, que afetam a todos, dúvidas muitas vezes existentes e que poucos têm coragem de externar. Creio, deste modo, ser útil o livro e estes comentários como um guia inicial de estudos para quem queira seguir adiante nestes temas.

Por último, vou destacar uma passagem que exemplifica a filosofia cristã, que para mim é o que de mais importante se deve preservar – acredito que não por acaso se encontrava logo no início da obra:

Jesus transmitia uma mensagem de amor. Todo mundo merecia ser amado: jovem e velho, mulher e homem, de todas as etnias. Romanos e judeus. Ele mesmo amou o doente, o deficiente e o saudável, o criminoso e o justo. Até os coletores de impostos que sustentavam o Império Romano tinha direito a receber amor. “Assim vos digo: amai os vossos inimigos, abençoai os que vos maldizem, fazei o bem a quem vos odeia”. Esse era o modo como Jesus expressava sua benevolência – inimaginavelmente ampla, na visão da maioria das pessoas.

        (1)  “(...) na realidade se trata de um conjunto, de uma coleção de livros; com efeito, são dezenas de livros recolhidos num só volume, exatamente 73, divididos em duas partes, como em duas estantes de uma livraria:

·         Antigo Testamento: 46 livros, escritos antes do nascimento de Jesus;
·         Novo Testamento: 27 livros, escritos depois da ressurreição de Jesus.

(...)

Antigo Testamento

·         Pentateuco: os primeiros cinco (penta) livros, considerados fundamentais para vida de fé e para vida social dos judeus, e por isso chamados também de Lei;
·         Livros históricos: são 16 e ocupam a maior parte do Antigo Testamento;
·         Livros sapienciais: são sete; importância maior reveste o livro dos 150 Salmos, que é o livro de oração dos judeus e dos cristãos;
·         Livros proféticos: são 18 livros (17 com nome de algum profeta e as Lamentações);

Novo Testamento

·         4 Evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas, João;
·         21 Cartas: 13 de São Paulo, três de João, duas de Pedro, uma de Tiago, uma de Judas, irmão de Tiago, e a carta aos Hebreus;
·         Atos dos Apóstolos de Lucas;
·         Apocalipse de João, o Evangelista.

(...)

Estes livros que acabamos de enumerar estão em todas as Bíblias? Todas as bíblias são iguais? Não, nem todas as bíblias são iguais. A Bíblia Católica tem 73 livros. A Bíblia dos irmãos reformados, um pouco menos, pois faltam alguns livros do Antigo Testamento (AT), tais como: Sabedoria, 1º e 2º livros dos Macabeus, Judite, Tobias, Eclesiástico, Baruc, os capítulos 11-16 de Ester e os capítulos 13-14 do livro de Daniel.

Por que estas diferenças? (...) É que temos duas versões do AT: uma em aramaico (a língua dos judeus) e a outra em grego, naquele tempo a língua dominante, como hoje é o inglês. Esta versão é chamada também dos Setenta (que teria sido traduzida por 70 sábios) e tem mais livros; foi feita para ajudar os judeus que viviam fora do seu país, a Palestina, e que tinham contato com a cultura grega. Os judeus ortodoxos e também os reformados (depois da separação da Igreja Católica por parte de Lutero) usam somente o AT, que foi escrito em aramaico e que tem menos livros, daí a diferença.


E a Igreja Católica, quais das duas versões da Bíblia usa? Os católicos usam as duas versões: o AT em aramaico e aquele em grego, e é por isso que a Bíblia católica contém mais livros. E por que a Igreja Católica usa também o texto grego da Bíblia? Porque ele já foi usado pelos autores do Novo Testamento, pelos próprios Apóstolos. (...)” – Iniciação à Vida Cristã: eucaristia: livro da família – Ed. Paulinas – 2013 – págs. 49-51.