terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

OS FATOS

Eu pensava ser uma espécie de autoridade da vida judaica cotidiana, com sua tendência a satirizar a si mesma e à comédia exagerada, e por muito tempo continuei me sentindo tão perplexo em privado quanto resistente em público, quando confrontando com judeus provocadores (pág. 134).

Para alguém que se orgulha de mergulhar fundo na literatura, de ser um rato de livrarias, parece meio vergonhoso comprar um livro por engano. Mas foi justamente isso que aconteceu comigo.

Interessado na biografia de Philip K. Dick, autor de, entre outras estórias, romances que deram origem às obras cinematográficas de scifi mais impactantes no último século – por exemplo, Blade Runner e Minority Report, só para ficar em duas – acabei comprando a autobiografia de um escritor e romancista norte-americano, o judeu Philip Roth. Agora, observem com atenção um aspecto. Acrescentei ao nome dele a alcunha de “o judeu”. Isso, em dias que devemos buscar ao máximo a tolerância, parece um disparate sem fim. Mas logo vocês entenderão que tem um motivo.

Cometido o erro me vi diante do seguinte dilema: ler ou não ler a história da vida de um autor do qual eu nunca tinha ouvido falar – mea culpa – ou buscar trocar o livro por outro que me parecesse interessante? Como sou curioso, resolvi explorar aquele mundo do qual eu não tinha a mínima ideia de onde iria me levar.

Me deparei, então, com a história típica de um menino norte-americano que busca, seguindo o padrão do american way of life, triunfar na vida. Isso significa subir um degrau na história familiar a partir da ascensão via universidade para uma carreira. O adendo é que ele estava inserido numa comunidade judaica, o que por si só levantava barreiras em seu entorno. Ou seja, por mais que se sentisse um americano típico, ele se viu obrigado a enfrentar e sobrepujar a estampa de ser judeu para se inserir no macrocosmo de oportunidades que a vida tinha para lhe oferecer.

Eu não conhecia nenhuma criança cuja família tivesse sido dividida por um divórcio. Fora das revistas de cinema e das manchetes dos jornais sensacionalistas, isso não existia, e certamente não na nossa comunidade judaica. Judeus não se divorciavam – não porque o divórcio fosse proibido pela lei judaica, mas porque eles eram assim. Se os pais judeus não chegavam em casa bêbados e batiam em suas mulheres – e em nossa vizinhança, onde para mim só viviam judeus, eu nunca soube de nenhum que tivesse agido dessa maneira -, isso também se devia ao fato de eles serem assim. Na nossa tradição, a família judia era um abrigo inviolável contra qualquer tipo de ameaça, desde o isolamento pessoal até a hostilidade dos góis. Apesar de eventuais atritos e disputas internas, dava-se como certo seu laço indissolúvel. Ouve, Israel, a família é Deus, a família é Uma (pág. 20).

Obviamente isto elevou à décima potência – e acho que todos nós ao reavaliarmos nossas vidas tendemos a superdimensionar cada passo, cada decisão tomada – a importância das escolhas, cada uma delas, na jornada seguida. Como todo garoto essas escolhas estão vinculadas – ou são etapas marcadas – por cada um dos seus relacionamentos amorosos e como eles influenciaram sua trajetória.

Isto posto, a obra “Os Fatos – a autobiografia de um romancista”, de Philip Roth – Editora Companhia das Letras – 2016, com 206 páginas – apresenta o caminho trilhado por este jovem rapaz e seu enfrentamento às tradições judaicas sem delas desmerecê-las ou mesmo desgostá-las. Mas, para isso, ele pontua suas escolhas amorosas como um caminho para sua inserção no mundo exterior, ao “preferir” companhias femininas externas a ele. Mais do que isso, grande parte do livro trata de como foi seu plano de inserção e fuga de um relacionamento que o escravizou, mesmo após terminado, e nesse sentido nos leva a refletir o quanto vale a pena para nós nos submetermos a algo em prol de um objetivo.

“(...) depois de ler todos os tipos de livros e devido à minha experiência, os homens têm um pouco de medo das mulheres. E por isso se comportam do jeito que se comportam. Claro que muitos não têm medo de mulheres individualmente, e talvez muitos não tenham medo de mulher nenhuma. Mas pela minha experiência, a maioria dos homens tem” – fala da personagem Maria Zuckerman – págs. 201-202.

Para tanto ele se utiliza de um subterfúgio: faz contraponto com um de seus principais personagens. Num diálogo entabulado com Nathan Zuckerman, também judeu, também escritor, seu alter-ego de inúmeros livros, ele sai do conforto da proteção da biografia e solta as amarras para que seja confrontado com os seus maiores medos. Deixa de ser protagonista da própria história e confirma a tese de seu personagem – ou seja, a sua própria – na qual aponta que os ficcionistas precisam de suas estórias para tratar de suas neuroses e de seus dilemas. Através de seus personagens, assim, empreendem uma verdadeira catarse de suas questões. Tendo a concordar com tal abordagem.

O livro desta forma não apresenta grandes emoções. Se vê travestido de uma história comum, de um rapaz norte-americano com suas típicas atribulações durante a vida – iniciação sexual, educação, carreira, casamento, liberdade, etc. Essas se potencializam porque vêm acompanhadas de relacionamentos problemáticos e a religiosidade judaica e suas tradições a compeli-las para um caminho não tão bem entendido a princípio pelo autor. Interessante observar que o estereótipo judaico parece ser o nascedouro dos grandes debates humanos. Ou seria uma mera coincidência o fato de Freud ser judeu? Ou de Woody Allen ter sua capacidade enquanto cineasta estar calcada em grande parte na sua habilidade para investigar os grandes porquês da humanidade através de sua obra? Perguntem-se, cada um de vocês, o que seria da arte se não fossem os judeus?