Eu pensava ser uma
espécie de autoridade da vida judaica cotidiana, com sua tendência a satirizar
a si mesma e à comédia exagerada, e por muito tempo continuei me sentindo tão perplexo
em privado quanto resistente em público, quando confrontando com judeus
provocadores (pág. 134).
Para
alguém que se orgulha de mergulhar fundo na literatura, de ser um rato de
livrarias, parece meio vergonhoso comprar um livro por engano. Mas foi
justamente isso que aconteceu comigo.
Interessado
na biografia de Philip K. Dick, autor de, entre outras estórias, romances que
deram origem às obras cinematográficas de scifi
mais impactantes no último século – por exemplo, Blade Runner e Minority
Report, só para ficar em duas – acabei comprando a autobiografia de um
escritor e romancista norte-americano, o judeu Philip Roth. Agora, observem com
atenção um aspecto. Acrescentei ao nome dele a alcunha de “o judeu”. Isso, em
dias que devemos buscar ao máximo a tolerância, parece um disparate sem fim.
Mas logo vocês entenderão que tem um motivo.
Cometido
o erro me vi diante do seguinte dilema: ler ou não ler a história da vida de um
autor do qual eu nunca tinha ouvido falar – mea
culpa – ou buscar trocar o livro por outro que me parecesse interessante?
Como sou curioso, resolvi explorar aquele mundo do qual eu não tinha a mínima
ideia de onde iria me levar.
Me
deparei, então, com a história típica de um menino norte-americano que busca,
seguindo o padrão do american way of life,
triunfar na vida. Isso significa subir um degrau na história familiar a partir
da ascensão via universidade para uma carreira. O adendo é que ele estava
inserido numa comunidade judaica, o que por si só levantava barreiras em seu
entorno. Ou seja, por mais que se sentisse um americano típico, ele se viu
obrigado a enfrentar e sobrepujar a estampa de ser judeu para se inserir no
macrocosmo de oportunidades que a vida tinha para lhe oferecer.
Eu não conhecia
nenhuma criança cuja família tivesse sido dividida por um divórcio. Fora das
revistas de cinema e das manchetes dos jornais sensacionalistas, isso não
existia, e certamente não na nossa comunidade judaica. Judeus não se
divorciavam – não porque o divórcio fosse proibido pela lei judaica, mas porque
eles eram assim. Se os pais judeus não chegavam em casa bêbados e batiam em
suas mulheres – e em nossa vizinhança, onde para mim só viviam judeus, eu nunca
soube de nenhum que tivesse agido dessa maneira -, isso também se devia ao fato
de eles serem assim. Na nossa tradição, a família judia era um abrigo inviolável
contra qualquer tipo de ameaça, desde o isolamento pessoal até a hostilidade
dos góis. Apesar de eventuais atritos e disputas internas, dava-se como certo
seu laço indissolúvel. Ouve, Israel, a
família é Deus, a família é Uma (pág. 20).
Obviamente
isto elevou à décima potência – e acho que todos nós ao reavaliarmos nossas
vidas tendemos a superdimensionar cada passo, cada decisão tomada – a importância
das escolhas, cada uma delas, na jornada seguida. Como todo garoto essas
escolhas estão vinculadas – ou são etapas marcadas – por cada um dos seus
relacionamentos amorosos e como eles influenciaram sua trajetória.
Isto
posto, a obra “Os Fatos – a autobiografia de um romancista”, de Philip Roth –
Editora Companhia das Letras – 2016, com 206 páginas – apresenta o caminho
trilhado por este jovem rapaz e seu enfrentamento às tradições judaicas sem
delas desmerecê-las ou mesmo desgostá-las. Mas, para isso, ele pontua suas
escolhas amorosas como um caminho para sua inserção no mundo exterior, ao “preferir”
companhias femininas externas a ele. Mais do que isso, grande parte do livro
trata de como foi seu plano de inserção e fuga de um relacionamento que o
escravizou, mesmo após terminado, e nesse sentido nos leva a refletir o quanto
vale a pena para nós nos submetermos a algo em prol de um objetivo.
“(...) depois de
ler todos os tipos de livros e devido à minha experiência, os homens têm um
pouco de medo das mulheres. E por isso se comportam do jeito que se comportam.
Claro que muitos não têm medo de mulheres individualmente, e talvez muitos não
tenham medo de mulher nenhuma. Mas pela minha experiência, a maioria dos homens
tem” – fala da personagem Maria Zuckerman – págs. 201-202.
Para
tanto ele se utiliza de um subterfúgio: faz contraponto com um de seus
principais personagens. Num diálogo entabulado com Nathan Zuckerman, também
judeu, também escritor, seu alter-ego de inúmeros livros, ele sai do conforto
da proteção da biografia e solta as amarras para que seja confrontado com os
seus maiores medos. Deixa de ser protagonista da própria história e confirma a
tese de seu personagem – ou seja, a sua própria – na qual aponta que os
ficcionistas precisam de suas estórias para tratar de suas neuroses e de seus
dilemas. Através de seus personagens, assim, empreendem uma verdadeira catarse
de suas questões. Tendo a concordar com tal abordagem.
O
livro desta forma não apresenta grandes emoções. Se vê travestido de uma
história comum, de um rapaz norte-americano com suas típicas atribulações
durante a vida – iniciação sexual, educação, carreira, casamento, liberdade,
etc. Essas se potencializam porque vêm acompanhadas de relacionamentos
problemáticos e a religiosidade judaica e suas tradições a compeli-las para um
caminho não tão bem entendido a princípio pelo autor. Interessante observar que
o estereótipo judaico parece ser o nascedouro dos grandes debates humanos. Ou
seria uma mera coincidência o fato de Freud ser judeu? Ou de Woody Allen ter
sua capacidade enquanto cineasta estar calcada em grande parte na sua
habilidade para investigar os grandes porquês da humanidade através de sua
obra? Perguntem-se, cada um de vocês, o que seria da arte se não fossem os
judeus?