quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos

A fama constrói um mito, uma personagem, e empobrece o ser humano. Há exceções.
Pág. 28

A magia do futebol para mim está relacionada a minha formação enquanto ser humano. Todo apaixonado por este esporte deve ter tido este tipo de vivência desde a sua infância. E esta vivência auxiliou na formação do seu caráter, não somente como torcedor, mas também como cidadão.

Portanto, quando pensamos na formação de nossos filhos ou entes queridos, desejamos bons exemplos, pois por intermédio desses eles poderão frutificar. Os bons exemplos que o futebol me deu foram 3 basicamente: a lenda, a fantasia, de que se tudo pode com a união do talento e do planejamento, deificada na seleção de 1970; a valia do bem contra o mal, da arte contra a visão tacanha da vida, a partir da seleção de 1982; e que o paraíso é possível, com o time do Flamengo encabeçado por Zico e toda aquela geração maravilhosa.

Os últimos vinte anos, especialmente após a Copa de 2002, foram de tentativa de conciliação – que persiste até hoje e que nunca vai acabar – entre o estilo de jogo predominante no período de 1954 a 1974, de mais improvisação, habilidade e fantasia, e o dos vinte anos seguintes, de 1974 a 1994, de mais organização, disciplina tática, força física, planejamento e jogadas ensaiadas.
Pág. 113

Dentre os três exemplos por mim elencados acima, apenas um deles eu não acompanhei diretamente, tendo recebido apenas as memórias – eternizadas pela tecnologia do vídeo tape – daquela seleção que brilhou em gramados mexicanos, liderada pelo rei Pelé e todo um grupo maravilhoso de jogadores no seu talento complementar. Se tornou uma lenda, na medida em que lendas são construídas a partir de histórias de heróis das quais só ouvimos falar, mas não participamos diretamente. 


Daquele grupo para mim o grande mistério sempre foi Tostão. Craque de breve existência no meio futebolístico por questões médicas – um descolamento na retina não permitiria que ele continuasse sua carreira. E assim o adolescente e o jovem os quais eu me constituí cresceriam curiosos pela história daquele que havia participado de uma epopeia e havia escolhido para si o recolhimento da carreira médica, sem nunca mais se envolver com aquela magia que deveria ser trilhar os mesmos caminhos dos ídolos do esporte que tantos sonhos embalava Brasil afora.

Tostão era o exemplo do desapego, da humildade então, do brilho intenso, porém fugaz, tal qual um cometa, que depois de sua passagem se afasta, se mesclando com a multidão que a massa escura do universo disfarça. Esse “personagem” se vê desvendado na obra por mim lida recentemente, da própria lavra dele, que a partir do final dos anos 90 voltou ao ambiente esportivo, desta feita como comentarista e cronista, dos melhores e mais imparciais existentes. O livro atende pelo título “Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos – um olhar sobre o futebol”, da Editora Companhia das Letras – 2016 – 198 páginas.

Sou um colunista que tenta escrever de uma maneira concisa, clara e direta. Quando jogava, também era conciso. Às vezes exagero no didatismo e nas explicações óbvias. (...) Há leitores que gostam mais das minhas divagações fora do futebol e outros que gostam mais das minhas explicações técnicas e táticas. Gosto do estilo literário, mas tenho compromisso com a realidade do jogo. Págs. 125-126

Tostão divide o livro entre suas experiências próprias enquanto jogador, tanto do Cruzeiro quanto da Seleção; e a partir do seu olhar da analista do tema, quando assumiu tal posição oficialmente, por uma nova dinâmica de vida. A curiosidade sobre este personagem então vai guiando aqueles que são aficionados do tema. Talvez para leitores que não tenham o futebol como uma das paixões de vida seja uma obra dispensável. Mas para os que realmente gostam, é um deleite. Como crítica, apenas entendo que o capítulo 17 – Não foi por acaso – era dispensável, pois as opiniões por ele ali expostas já tinham ficado claras no decorrer do livro. Mas nada que prejudique o seu todo, até mesmo porque serve como consolidação de seus pensamentos.

Tostão comemorando mais um gol do Brasil durante a
Copa de 1970, no México.
Dois capítulos são de autoria de terceiros – Capítulo 6, “Bebi champanhe na taça Jules Rimet”, do Dr. Roberto Abdalla Moura, oftalmologista que acompanhou a seleção de 70 exclusivamente para lidar com Tostão e sua contusão; e Capítulo 18, “Futebol, ouro e lama”, do jornalista Juca Kfouri, que faz o contraponto entre a genialidade do artista e o meu em que vive. Não atrapalham o ritmo do livro, o que já é uma característica benfazeja. O escrito do Dr. Abdalla traz o sentimento de inveja por ter sido um torcedor privilegiado de última hora. As letras de Kfouri nos dão aquele sentimento de que muito há o que fazer para que o jogo seja considerado realmente limpo. O próprio Tostão tem reservas quanto a este aspecto:

Outro fator importante para a queda de nosso futebol é a relação promíscua que existe entre empresários, investidores, clubes, federações estaduais e a CBF¹. É a troca de favores, uma das pragas da cultura brasileira. Pág. 179

Mas esta não é a principal mensagem. Enfim, Tostão, em meio a toda sua vida, tem pregado pela placidez de encarar o que ela lhe oferece. Oportunidade para vivê-la intensamente nos limites propostos, não de fora para dentro somente, mas também de dentro para fora, tal como aquele que não usa computador até hoje para redigir seus textos, ditados ao telefone para um representante que depois os distribui para os diferentes veículos jornalísticos que os publicam. Desapego, tranquilidade, observação, talento, sagacidade no jogo de palavras e com a bola nos pés. Tempos vividos, sonhados e perdidos, perdidos na medida em que sempre se pode fazer algo melhor, mesmo que se tenha satisfação com o que tenha alcançado.


(1)    CBF = Confederação Brasileira de Futebol, responsável por gerir a Seleção Brasileira e os campeonatos em âmbito nacional, além de representar o futebol de nosso país em foros multilaterais gestores do esporte mundo afora.

domingo, 11 de dezembro de 2016

SOBRE A ESCRITA - A arte em memórias

(...) se você consegue escrever porque sente alegria, vai escrever para sempre.
(pág. 212)

Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. Beba até ficar saciado.
(pág. 229)

Ao me deparar na livraria com a obra “Sobre a Escrita – A arte em memórias”, do escritor norte-americano Stephen King – mais conhecido pelas suas obras ficcionais vinculadas ao terror, sci-fi, fantasia e que tais – fiquei curioso sobre qual seria a trama. Misto de autobiografia e manual de redação, “Sobre a Escrita” apresenta ao leitor King por King no que mais lhe interessa – a arte de escrever.

O autor, num momento de descontração

O livro foi publicado originalmente no ano de 2000. O exemplar o qual tive acesso é uma reedição de 2015, da Editora Objetiva, com 255 páginas, com a devida atualização ao final de uma lista de livros que ele teria lido entre 2000 e 2010. Ele está dividido, grosso modo, em 3 partes – a descrição da vida pregressa de King até se consolidar como escritor, apresentando desse modo as influências recebidas durante esta trajetória; o guia para o futuro escritor, exposto em dois capítulos denominados “Caixa de Ferramentas” e “Sobre a Escrita”; e um post-scriptum, no qual ele narra sua luta por renascer como escritor, “amaciado” pelo atropelamento sofrido e a experiência de quase-morte.

Meu interesse direto estava, então, pautado por duas razões: adoro o escritor Stephen King. E tenho pretensões literárias. Por que não associar os dois desejos numa única obra, colhendo as orientações daquele que considero um dos seres humanos que mais sabe contar uma boa estória, daquela que nos prende até a última página? De quebra, ainda saciaria minha curiosidade sobre a vida do mesmo.

Para o meu gosto como leitor, as partes autobiográficas foram um deleite. Expondo, com seu bom humor característico, acontecimentos, fatos, características e influências, somos brindados com uma leitura leve, que nos faz enaltecer ainda mais o gosto pelo escritor – “(...) todas as orações simples de Hemingway funcionaram bem para ele, não é? Mesmo quando estava bêbado como um gambá, o homem era um gênio” (pág. 108). Seria algo como, ao saber a sua vivência enquanto pessoa, valorizarmos ainda mais o que ele alcançou como mestre das letras – inclusive ele foi professor de redação um determinado período da vida.

No que diz respeito ao que parece ter sido o fator motivador principal do próprio King para escrever a obra – passar adiante o que ele entende como sendo a metodologia correta para se contar uma boa estória – posso falar, sem medo de incorrer em erro, ter sido um dos livros que mais me impactaram na vida. Não tendo feito um curso de redação, “Sobre a Escrita” preencheu tranquilamente esta lacuna em minha vida. A quantidade e qualidade de informações que foram repassadas não somente sobre como passar as ideias para o papel – o modus operandi em si do escritor como criador de uma estória, mas também como lidar com todo o entorno do escritor – local de trabalho, a importância da revisão, escrever como vocação, a trajetória pela publicação, etc – é tão rico que é difícil não ter os olhos abertos para cada passo a ser trilhado.

Talvez a única dificuldade, mas que não impacta sobremaneira ao objeto do livro, seja que sua experiência está atrelada à língua inglesa – e aos autores nativos da mesma. Assim os exemplos e a abordagem utilizados são voltados para aqueles que militam na cultura anglo-saxônica. Porém, sua abordagem pretende-se ser ampla, genérica o suficiente para atender os anseios dos pseudo-escritores oriundos de quaisquer idiomas. O que interessa é a metodologia, mais do que regras gramaticais, que “(...) se você não sabe, é tarde demais” (pág. 107). Para aqueles que não leram alguns dos livros do próprio King existem ainda alguns ligeiros spoilers, mas nada que impedirá o acesso a elas no futuro. Enfim, a impressão é que tive uma aula grátis de alto nível. Agora só resta por as mãos à obra.

As Regras do Rei

Da escrita

- Evite a voz passiva e os advérbios;

            O sujeito tímido escreve “a reunião será realizada às sete horas” porque, de alguma forma, a frase diz a ele “escreva dessa maneira e todos vão acreditar que você realmente sabe”. Livre-se desse pensamento traidor. Não seja um trouxa! Aprume-se, erga o queixo e assuma o controle da tal reunião! Escreva “a reunião será às sete”. É isso, meu Deus do céu! Você está se sentindo melhor, não está? (pág. 109).

            Com os advérbios, o escritor nos diz que tem medo de não se expressar com clareza, de não conseguir passar a mensagem (págs. 110-111).

- Escreva sobre o que você sabe;

            Acho que você deve começar interpretando “escreva sobre o que você sabe” da maneira mais abrangente e inclusiva possível. Se você é encanador, você conhece encanamentos, mas isso está muito longe de ser toda a dimensão de seu conhecimento; o coração também sabe coisas, bem como a imaginação. Graças a Deus. Se não fosse pelo coração e pela imaginação, o mundo da ficção seria terra de ninguém. Talvez nem existisse, na verdade. (...) Muito errado, eu acho, seria dar as costas para o que você conhece e gosta (ou ama, como eu amava as velhas histórias de horror em preto e branco da EC) (pág. 137).

- Descrição;

            A descrição é o que transforma o leitor em um participante sensorial da história. A boa descrição é uma habilidade que se aprende, uma das principais razões pelas quais você não consegue ser bem-sucedido a não ser que leia e escreva muito. (....) Você só vai aprender fazendo. A descrição começa com a visualização do que você quer que o leitor experimente. E termina com a tradução do que você vê em sua cabeça para as palavras no papel. Está longe de ser fácil (págs. 149-150).

- Narração;

            Como em todos os outros aspectos da arte narrativa, você vai melhorar com a prática, mas ela nunca vai levar à perfeição. (...) Pratique a arte, sem se esquecer de que seu trabalho é dizer o que vê, e depois seguir em frente com sua história (pág. 155).

- A construção de personagens;

            O trabalho se resume a duas coisas: prestar atenção ao comportamento das pessoas reais à sua volta e dizer a verdade sobre o que vê. (...) Personagens fictícios são copiados diretamente da vida? Óbvio que não, pelo menos não em todos os detalhes (...). Para mim, o que acontece aos personagens enquanto a história se desenrola depende apenas do que vou descobrindo sobre eles no caminho – em outras palavras, como eles crescem. (...) eu já não acredito tanto no chamado estudo de personagem; acho que, no fim, é sempre a história que comanda (págs. 162-163).

- História x Tema;

            (...) começar com as questões e preocupações temáticas é receita certa para má ficção. A boa ficção sempre começa com a história e progride até chegar ao tema, ela quase nunca começa com o tema e progride até chegar à história. As únicas exceções que consigo pensar para esta regra são alegorias como A revolução dos bichos, de George Orwell (e suspeito que a ideia de história do livro possa ter vindo antes; se algum dia encontrar Orwell no outro mundo, pretendo perguntar a ele) (pág. 178).

- A relativa importância da pesquisa;

            Você pode adorar o que aprendeu sobre bactérias comedoras de carne, o sistema de esgotos de Nova York ou o potencial de QI de filhotes de Collie, mas seus leitores com certeza estarão mais interessados nos personagens e na história. (...) Quando você se afasta da regra “escreva sobre o que você sabe”, a pesquisa se torna inevitável, e pode contribuir muito para a história. Só não deixe que o rabo acabe abanando o cachorro; lembre-se, você está escrevendo um romance, não um artigo acadêmico¹. A história sempre vem em primeiro lugar (págs. 194, 196-197).

Estes acima são pequenos exemplos, pérolas do que King espalha através das páginas de seu livro. O objetivo da ficção [é] fazer o leitor se sentir à vontade e, depois, contar uma história... Fazer com que ele esqueça, sempre que possível, que está lendo uma história. Escrever é seduzir. Falar bem é parte da sedução. Se não fosse, por que tantos casais começariam a noite jantando e terminariam na cama? (pág. 118).

Em outros trechos – págs. 126 e 128 principalmente – ele alerta com ênfase na importância de se ler muito para se poder escrever bem e em quantidade. Na verdade, uma fórmula velha conhecida de quem se dedica à literatura, já que é evidente o ganho cultural e de vocabulário propiciado pela leitura constante.

Mais adiante ele ainda aponta para pequenos segredos do sucesso. Um programa de leitura e escrita de 04 a 06 horas por dia, todos os dias (pág. 130); a teoria da porta fechada – o espaço [para a escrita] pode ser humilde e só precisa realmente de uma coisa: uma porta que você possa fechar. A porta fechada é a maneira de dizer ao mundo e a você mesmo que o assunto é sério. Você assumiu o compromisso de escrever! (pág. 135); e o fato de se manter em saúde e ter um bom casamento (pág. 134). Claro que no quesito casamento o que importa mesmo é estar em paz consigo mesmo, na opção de relacionamento que vier a escolher. No caso dele – dado até mesmo o histórico com drogas e o relativo afastamento aos demais membros da família (um irmão e a mãe) – um casamento estável foi fundamental para que pudesse seguir adiante. Ele ressalta ainda que caso o escritor esteja ansioso por publicar, ao invés de perder tempo buscando uma editora poderá iniciar financiando sua própria publicação.

Tabitha e Stephen King
Por último, gostaria de ressaltar que para mim um dos trechos mais relevantes do livro ocorrem entre as páginas 179 e 193. Lá ele retrata toda a importância do processo de revisão da primeira versão, desde o olhar do próprio escritor, passando pela eleição do Leitor Ideal – aquele para o qual você escreve e fica à espera do feedback; no caso de King, a sua esposa, Tabitha King, também escritora; chegando ainda a um grupo seleto de leitores qualificados – editor, amigos, etc, mas não mais que 5 ou 6 pessoas. Seria seu público-teste. Ele inclusive indica uma fórmula mágica – dada a sua preocupação em reduzir o texto, King aponta que o ideal é 2ª versão = 1ª versão – 10% (pág. 190). Óbvio que isto passa por uma revisão qualitativa. Existem coisas às quais não se pode abrir mão. Mas também existem outras que se encaixam na arte do desapego. Longas histórias de vida são mais bem-recebidas em um balcão de bar, e só quando falta uma hora ou menos para fechar, e só quando você está pagando (pág. 193). Boa sorte! Boa leitura, e porque não dizer, boa escrita!

OBS.: existe um pequeno detalhe que me incomodou: a edição brasileira coloca tanto a versão em Inglês quanto em Português, entre as páginas 231 e 248, da revisão de um trecho da obra que depois viria a ser conhecida como “1408”, inclusive gerando mais uma dentre as tantas adaptações cinematográficas para os produtos de King, em 2007, com John Cusack no papel central, tendo como coadjuvante Samuel Lee Jackson. Acho que poderia se ater à versão em Português – a não ser que você seja um fã alucinado que tenha prazer em ler o original para depois ler também a tradução!


(1)   No que diz respeito à importância da pesquisa tenho a impressão que J.J. Benítez e a série Cavalo de Troia – ótima, por sinal -  não seguem o preceito pregado por King.

domingo, 13 de novembro de 2016

DE ZERO A UM

Se você inventou algo novo, mas não inventou uma forma eficaz de vendê-lo, possui um mal negócio – por melhor que seja o produto (pág. 138).

Em tempos da ditadura do politicamente correto o discurso empregado por Peter Thiel, um dos fundadores do Pay Pal, presente no livro escrito com a colaboração de Blake Masters, é de difícil deglutição. “De Zero a Um – O que aprender sobre empreendedorismo com o Vale do Silício” – Rio de Janeiro – Ed. Objetiva – 2014 – 215 págs. – é capitalismo na veia na sua forma mais radical. Porém, dado que tivemos recentemente a vitória de Donald Trump nas eleições americanas, pode ser que o público para este livro seja muito maior do que se imagina.


Na verdade o livro apresenta o pensamento do empreendedor nato, aquele que se joga de corpo e alma em busca do que imagina ser a nova empresa do século – a sua. Para se ter uma ideia, um dos pilares da argumentação de Thiel é a necessidade do monopólio para que o sistema capitalista funcione. Isso certamente provoca arrepios não somente nos quadros políticos associados à esquerda normalmente, mas também em toda uma lógica que pauta gerações de economistas que são doutrinados mundo afora a observar e buscar o mundo da concorrência perfeita como sendo o mais justo e necessário de todos.

Blake Masters (à esquerda) e Peter Thiel

Aqui obviamente ocorre uma clivagem entre os dois grupos por mim citados. Normalmente a esquerda tem outro objetivo. Indica que a presença do Governo como ente mantenedor do consumo equitativo na sociedade como sendo mais do que necessária. Já os economistas que apoiam “a mão livre do mercado” gerenciando o mundo em que vivemos aponta para o Estado mínimo como necessário neste aspecto.

Acontece que mesmo nesse último grupo existe o entendimento de que há necessidade de se evitar a presença de monopólios, por serem deletérios, em princípio, para o conjunto da sociedade. Ou seja, os únicos beneficiados com o monopólio seriam os seus detentores. Todos os demais, e principalmente os consumidores, seriam prejudicados.

O livro de Thiel vai na linha contrária. Até mesmo porque ele se localiza num contexto em que o monopólio é estabelecido per si como a cenoura que atrai o coelho rumo ao seu bem-estar máximo. “Todas empresas felizes são diferentes: cada uma conquista um monopólio ao solucionar um problema singular” (pág. 40). O Vale do Silício é a região nos Estados Unidos reconhecida por gerar grande parte das inovações que moldam o mundo hoje em dia, ou seja, soluções para problemas singulares. E todo inovador busca proteger seu investimento através de um monopólio temporário reconhecido pelo Estado – a patente.

Para um economista, todo monopólio parece igual, quer elimine desonestamente os rivais, obtenha uma licença do Estado ou abra caminho até o topo via inovação. Neste livro, não estamos interessados em empresas desonestas ou favorecidas por governos: por “monopólio” designamos o tipo de empresa que é tão boa no que faz que nenhuma outra consegue oferecer um substituto próximo. O Google é um bom exemplo de uma empresa que foi de 0 a 1: não tem concorrente em mecanismos de busca desde o início da década de 2000, quando definitivamente se distanciou de Microsoft e do Yahoo!

Os norte-americanos idealizam a concorrência e acham que é ela que nos salva da penúria socialista. Na verdade, capitalismo e concorrência são opostos. O capitalismo tem por premissa a acumulação de capital, mas sob concorrência perfeita todos os lucros desaparecem. A lição para os empreendedores é clara: se vocês querem criar e conquistar valor duradouro, não desenvolvam um negócio de produto indiferenciado. (págs. 30 e 31)

Na área da Propriedade Industrial é comum a definição de que patente é a barganha entre o inovador e o Estado pelo acesso à informação tecnológica gerada. O inovador recebe do Governo um monopólio temporário – a patente, válida por 20 anos – em troca de disponibilizar à sociedade todo o segredo de sua inovação, propiciando a oportunidade de um seguido desenvolvimento tecnológico a partir de sua criação. Outros inovadores, de posse desta informação, não partiriam assim do zero para produzirem novas criações tecnológicas, se baseando no conhecimento adquirido a partir da descrição da patente, que ora constitui a o estado da técnica naquele determinado setor.

Os monopólios promovem o progresso porque a promessa de anos, ou mesmo décadas, de lucros monopolistas fornece um poderoso incentivo à inovação. Depois os monopólios podem continuar inovando porque os lucros permitem que façam planos de longo prazo e financiem projetos de pesquisa ambiciosos, com os quais as empresas prisioneiras da concorrência sequer podem sonhar (pág. 39).

Salvo no caso de uma licença negociada com seu criador, o objeto da patente não pode ser produzido ou comercializado por terceiros nos países em que se encontra devidamente depositada e protegida. Pois bem, o que Thiel enaltece em sua obra é justamente a capacidade do monopólio ser o fator gerador do bem-estar da sociedade por induzir o aprimoramento da sua tecnologia associada, o que acaba por impactar em inúmeras possibilidades para os consumidores.

O livro se apresenta como um guia para estes que se pretendem inovadores, empreendedores num mundo de selvagem concorrência, para aqueles que almejam deter um monopólio que os diferencie dos demais e gere ganhos exponenciais. Para tanto ele traça os perfis mais adequados para as chamadas startups tecnológicas, dando exemplos da história do meio empresarial norte-americano, alguns dos quais ele participou diretamente. Fala especificamente sobre a estrutura ideal, tanto em termos humanos quanto em lógica de trabalho.

Tecnologia nova tende a surgir de empreendimentos novos: startups (...), pequenos grupos de pessoas unidas por um sentido de missão têm mudado o mundo para melhor. (...) As startups operam baseadas no princípio de que você precisa interagir com outras pessoas para realizar as coisas, mas precisa também permanecer pequeno o suficiente para realmente conseguir realiza-las. Positivamente definida, uma startup é o maior grupo de pessoas que você consegue convencer a participar de um plano para construir um futuro diferente. (...) Porque é isto que uma startup precisa fazer: questionar ideias já reconhecidas e repensar os negócios do zero (pág. 16/17).

Passa ainda por uma avaliação crítica dos preconceitos existentes a partir daqueles que se acham detentores do conhecimento absoluto sobre a tecnologia – os nerds – em relação ao processo de vendas de suas criações e os responsáveis pelo mesmo – os vendedores por eles mesmos contratados por não dominarem esse mundo comercial! (1) “No Vale do Silício, os nerds desconfiam da publicidade, do marketing e das vendas porque parecem superficiais e irracionais. Mas propaganda importa porque funciona. Funciona com os nerds, e funciona com você. (...) É fácil resistir às campanhas de vendas mais óbvias, de modo que cultivamos uma falsa confiança em nossa independência mental. Mas a publicidade não existe para fazê-lo comprar um produto imediatamente. Ela existe para implantar impressões sutis que impelirão vendas mais tarde(pág. 135). Publicidade e distribuição são assim apontados como a base para o segredo do sucesso. Na verdade, isto está em linha com o conceito moderno de inovação. Um invento, mesmo que protegido por uma patente, não é uma inovação até o momento em que ele chegue ao mercado – e seja adotado por ele. Se ele não consegue fazer essa passagem, é somente um papel na prateleira gerador de custos.

Visão de parte do mapa da região conhecida como Vale do Silício, na Califórnia. Este mapa, na fonte original
e completa - www.siliconmaps.com - é interativo, indicando os endereços das diversas empresas ali listadas.

Antes de terminar, acaba enaltecendo a necessidade de se criar o próprio futuro – lugar comum, não é mesmo? – e indica uma receita de bolo. Thiel a denomina como as 7 perguntas (ver abaixo) que toda empresa deveria se fazer caso queira lançar-se num negócio (ou ainda, caso um empreendedor queira criar um negócio baseado num produto).

A obra assim se apresenta como um manual para aqueles que desejam empreender tecnologicamente. Em termos literários não é um super livro. Inclusive o autor se vale de ilustrações dispensáveis em seu terço final, sinal talvez de que o seu discurso não fosse robusto o suficiente para gerar um livro inteiro. Por outro lado, dada sua ênfase em vendas, à importância da presença dos fundadores para inspirar as empresas – e para tanto não poderia deixar de citar Jobs e a Apple – mais parece um catálogo para vender sua própria expertise e gerar a possibilidade de ganhos com palestras do que qualquer outra coisa. Diria que ele não atingiu o objetivo a que se propôs no início – “o que se segue não é um manual ou um registro de conhecimentos, mas um exercício de pensamento” (pág. 17). Pois seu discurso de imposição aponta justamente para o caminho contrário.

Vale a pena ser lido? Vale, até por usar um linguajar fácil – precisa vender, lembrem-se! – e por ir na contracorrente do discurso disseminado. Aí está a sua força, o contraponto, associado ainda aos exemplos reais – muito elucidativo o caso da Tesla na área de tecnologias limpas, com posterior expansão para outros setores. Mas o leitor não deve se iludir: creio que experiências próprias é que contam, e os mercados, e o próprio capitalismo, se adaptam a diferentes contextos. Conhecer as experiências de terceiros é importante, para evitar erros já incorridos, mas se a essência de se empreender é realmente se arriscar, pode-se estar frente a um paradoxo. Neste aspecto, outro livro por nós aqui já resenhado – Criatividade S.A., de Ed Catmull (Pixar) – é muito superior, a  meu ver.

As 7 Perguntas (pág. 163)

A pergunta sobre a engenharia – Você consegue criar tecnologia revolucionária em vez de melhorias graduais?;

A pergunta sobre o momento certo – Agora é o momento certo para iniciar seu negócio específico?;

A pergunta sobre o monopólio – Você está começando com uma porção grande de um mercado pequeno?;

A pergunta sobre as pessoas – Você dispõe da equipe certa?;

A pergunta sobre distribuição – Você dispõe de um meio de não apenas criar, mas entregar seu produto?

A pergunta sobre a durabilidade – Sua posição no mercado será defensável em dez e vinte anos no futuro?; e

A pergunta sobre o segredo – Você identificou uma oportunidade única que os outros não veem?


(1)   Como na arte de atuar, as vendas funcionam melhor quando ocultas. Isso explica por que quase todos cujo trabalho envolva distribuição – quer estejam em vendas, marketing ou publicidade – ocupam cargos cujos nomes nada têm a ver com essas atividades. Pessoas que vendem publicidade são chamadas de “executivos de conta”. Pessoas que vendem clientes trabalham em “desenvolvimento de negócios”. Pessoas que vendem empresas são “banqueiros de investimentos”. E pessoas que vendem a si mesmas se chamam de “políticos”. Existe uma boa razão para essas redescrições: nenhum de nós quer ser lembrado de que estão nos vendendo algo (pág. 137).

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O Alfaiate Polonês

Esta talvez seja uma das resenhas mais difíceis que eu tenha enfrentado. A autora de O Alfaiate Polonês – Babilonia Cultura Editorial – 2016 – 180 págs., Débora Finkielsztejn, é uma amiga de longa data. Para ser mais específico, da turma de 1989 da Faculdade de Economia, na Universidade Federal Fluminense.


Débora trilhou caminhos diversos antes de aportar na epopeia de se tornar escritora. Talvez aquele que mais tenha lhe tocado sobre o mundo dos livros tenha sido sua jornada enquanto livreira – proprietária da Livraria Da Conde, como foi, durante 10 anos, não fosse ela de uma família sempre presente no meio artístico. Estar imersa a grandes autores deve ter aguçado sua curiosidade quanto a transpor a fronteira e ir para o outro lado, a ver o que impulsiona os escritores a colocar no papel ideias, estórias e histórias, e principalmente, sentimentos.

Débora Finkielsztejn (à esquerda) ao lado da amiga
Viviane Aben-Athar, durante lançamento do livro,
na Livraria da Travessa, em Ipanema, no último dia
24 de Outubro.

Sim, porque a estória de O Alfaiate Polonês, essa pequena joia de estreia, gira em torno de sentimentos. A família Luittermann, judeus separados pela guerra, tem sua trajetória narrada, atravessando distintas gerações, até que surge a possibilidade da reunião. Como personagem central, Avraham, filho mais velho do núcleo central da narrativa. Ele tem a nobre companhia, como coadjuvante, de seu irmão, Shlomo, que nos guia no primeiro terço da obra.

Como algo a criar um laço afetivo com o leitor brasileiro, e o carioca em particular, tal qual Débora, a ambientação de parte da estória se passa no Rio de Janeiro, nos trazendo, de leve, as referências geográficas, mescladas, mais uma vez, aos sentimentos que evocam. Assim como somos assaltados por outros pensamentos e dizeres que nos vêm à boca em meio a dilemas ocorridos na Polônia, França, Israel, Canadá... Mesmo que nunca tenhamos tido a oportunidade de estar em tais países – ainda mais em difíceis épocas passadas – os problemas que os seres humanos enfrentam, superados ou não, se fazem presentes no esforço individual de cada personagem, criando uma conexão com a alma de quem estar por ler aquela trajetória. Como reagiríamos em tal situação? Será que a decisão por ele tomada foi a melhor de todas? Não haveria outras possibilidades para o eterno reconstruir da vida?

Durante o primeiro dos muitos eventos de lançamento do livro, fomos brindados com um debate na Livraria Da Vinci. Naquela ocasião, uma das perguntas foi sobre se o livro teria um público circunscrito à comunidade judaica, a partir do momento que tem como eixo central uma família seguidora da estrela de Davi. No mesmo instante pensei – e por obra de D’us tal aspecto foi abordado por um dos debatedores – que uma boa estória é uma boa estória e ponto. Ela pode ser de uma família italiana, africana, indiana, budista, hippie, ou qualquer outra religião professada. Ela irá singrar os mares da boa literatura, atraindo os leitores, independentemente de sua caracterização central. E assim é o que se passa com os Luittermann. Somos chamados a refletir sobre o que nos une, sobre laços familiares e de amizades construídas em meio às dificuldades. Tal tema é de um universalismo que independe de quaisquer outros aspectos.

Mas, para mim em particular, sair do macro e ir para o micro, a buscar aspectos que pudessem ser lidos somente por quem conhece a autora de perto, também se transformou numa deliciosa aventura. Esta expectativa, por assim dizer, de uma “investigação particular”, não é algo que fácil de partilhar. É como perguntar para o artilheiro qual é o sentimento quando se marca um gol. Somente ele saberá. E somente nós que convivemos com Débora poderemos empreender esta jornada específica.

Da minha parte ficou a impressão que uma personagem em particular representava a Débora em suas colocações, em sua visão de mundo. Trata-se de Rachel. E o mais interessante é que Rachel, com “ch”, também é uma de nossas amigas em comum, aquela com a qual Débora dividia sua angústia com aulas imersas entre Keynes, Marx, David Ricardo entre outros. Posso estar enganado? Posso, mas quem comanda o que a imaginação sugestiona?


Desta forma, mesmo que inconscientemente, todo um grupo foi homenageado. A Rachel/Débora representou, para esta pequena família formada na Rua Tiradentes, Ingá, em Niterói, a cereja do bolo de um presente que nos foi franqueado. Aos demais leitores fica a certeza de uma prazerosa leitura, daquelas para usufruir num final de tarde, no Arpoador, ou se tiver aquela chuvinha, debaixo dos lençóis. Shalom!

sábado, 8 de outubro de 2016

O CAMINHO DO PEREGRINO

Laurentino Gomes me conquistou, assim como a maioria de seus leitores, por intermédio da série de livros que traça a trajetória da história política brasileira nos anos 1800. Ao topar com um livro escrito por ele aguardamos, deste modo, alta qualidade descritiva sobre o tema a que se propõe expor.

Em “O Caminho do Peregrino: seguindo os passos de Jesus na Terra Santa” – Ed. Globo – São Paulo – 2015 – 200 págs. - ele não foge da sua expertise, mas vai além. Se associando ao expert em religião – e uma espécie de mentor espiritual – Osmar Ludovico, aproveita a oportunidade da realização de uma viagem em conjunto para o ambiente histórico de Israel para descrever não somente a origem de uma terra conturbada em meio aos conflitos políticos, como também para expor como a religiosidade cristã pode ser o caminho para muitas de nossas inquietudes. Ambos, peregrinos. Ambos professores. O que temos a aprender com eles? Vejam abaixo.


O Filho Pródigo

O livro é dividido da seguinte forma: Laurentino se encarrega da descrição política do terreno que eles, enquanto peregrinos, trilham. Ludovico expõe cada uma das meditações por eles empreendida junto a um grupo de brasileiros que os acompanhou na empreitada. Momentos de reflexão que geram encantamento e paz.
Osmar Ludovico e Laurentino Gomes
 No início da obra Laurentino coloca seu início na vida religiosa, seu afastamento e posterior reaproximação. Ele diz:

Venho de uma família católica, rural e conservadora, do interior do Paraná. Era uma tradição que o filho mais velho se tornasse padre. Por isso, na adolescência, fui seminarista da Pia Sociedade São Paulo (a congregação dos padres e irmãos paulinos) por três anos. Saí ao descobrir que não tinha vocação para o sacerdócio. Anos depois, ao me tornar jornalista, afastei-me quase que totalmente de qualquer prática religiosa. Nos meus tempos de redação, julgava que seria um sacrilégio alguém ousar dizer que era cristão, orava ou acreditava em qualquer coisa que não fosse o universo visível, racional e comprovável, prometido e autorizado pela ciência e pelas ideologias políticas do século XX (págs. 29 e 30).

Porém algo estava guardado para ele mais adiante. Após um encontro casual, realizado profissionalmente e que redundou num jantar com o teólogo Leonardo Boff, aquela fagulha parecia ter reacendido.

Algum tempo depois, tomei coragem e fui assistir a uma missa no mosteiro trapista de Campo do Tenente, no Paraná, perto do hotel onde estava hospedado. No sermão, o abade, padre Bernardo Bonowitz, discorreu sobre as dimensões de Cristo o Evangelho de São João: “Jesus, a água que eu bebo; Jesus, o pão que eu como; Jesus, o ar que eu respiro”. Ao ouvir essas palavras, fui tomado por um choro compulsivo e, de certa forma, constrangedor perante os demais fiéis que lotavam a igreja. Começava ali meu processo de renascimento espiritual, que coincidiu com um período de crise pessoal, repleto de dor e sofrimento (pág. 31).

E aqui nos encontramos com a primeira de muitas lições. Seria realmente necessário estar passando por um momento de crise pessoal para esta reaproximação? Pela minha própria experiência, algo similar me ocorreu. Eu, também passando por uma fase negra, fui levado pelas mãos de minha esposa – que por sua vez havia sentido essa ânsia pelo retorno alguns anos antes, também envolvida por um momento de crise. Aqui temos então três histórias distintas com uma similaridade no seu transcurso.

A resposta, porém, a minha pergunta inicial, é não. Mas é claro que a religião, qualquer que seja, tem por uma característica ser uma saída para momentos de agonia dos seres humanos. Quando não vemos solução, apelamos para o divino. O importante, no entanto, é perceber que o divino efetivamente responde. E a resposta não precisa ser exatamente um milagre – se bem que ao olharmos para trás nos remetemos a tal sentimento. Pode ser uma mudança de hábito simples, uma nova atitude perante a vida motivada pelas palavras certas.

E qual é a principal resposta presente nas religiões? É o olhar amoroso para com o próximo. É abstrair dos seus próprios problemas, olhar ao redor e ver que o mundo e a vida são muito maiores do que eles. E que você sim tem a possibilidade de transformá-los para melhor.

Mas estamos nos adiantando. Vamos seguir expondo, então, a construção da narrativa proposta pelos autores, o que fará com que dentro em breve retornemos para esse mesmo ponto, fechando um círculo virtuoso. Laurentino passa então a discorrer sobre essa nova etapa de redescoberta – a viagem à Israel. E o que ele identifica enquanto historiador?

História Política

A descrição de Laurentino Gomes para a Terra Santa e seus dilemas é pautada justamente pelo paradoxo de uma capital – Jerusalém – ser o centro de 3 religiões – Judaísmo, Catolicismo, e Islamismo – ou seja, do discurso acima apontado do amor para o próximo, e ao mesmo tempo ser o pomo da discórdia que gera conflitos sangrentos até hoje. Tudo poderia ter começado por cisma no seu de uma família especial:

A saga bíblica dos hebreus começa cerca de 1800 anos antes de Cristo, quando um grupo de nômades vindo da Mesopotâmia e liderado por Abraão chega à Palestina (...). Abraão teve dois filhos. O primeiro, Ismael, nasceu de uma relação com sua escrava, Agar. Seria o patriarca dos povos árabes. Com sara, sua mulher já idosa, Abraão teve Isaac, o patriarca dos hebreus, que a Bíblia define como “o povo escolhido” de Deus. Um filho de Isaac, Jacó, mudou seu nome para Israel, que significa “o homem que luta com Deus” ou “o homem que vê Deus”. Teve doze filhos – os patriarcas das chamadas doze tribos de Israel (págs. 23 e 24).

Esta é a semente comum das três religiões, todas tendo aquelas terras como seu berço. Tendo esta passada por inúmeras ocupações, o nascimento de Cristo se dá em meio ao domínio pelo Império Romano. O ambiente, os enfrentamentos, são descritos por Laurentino Gomes, que aponta os principais atores envolvidos.

A versão clássica de 1959
Um bom retrato de tal época pode ser visto no filme “Ben Hur”, tanto o original, com Charlton Heston como protagonista, representando o personagem que dá título ao filme, quanto a versão mais recente, que conta com Rodrigo Santoro no papel de Jesus. A família de Ben Hur era da casta real local, subordinada à Roma, que preferia a pax romana ao invés de lutar contra os invasores. Porém, nesse meio tempo surge Jesus, com sua mensagem de paz e amor, convivência e tolerância, não sendo bem visto tanto pelos sacerdotes locais por representar uma perda da liderança de seu rebanho, como também sendo interpretado como um possível líder rebelde. Ben Hur acaba envolto no conflito ao acobertar um membro dos zelotes, “(...) grupo mais radical, que pregava a resistência armada contra os romanos (...). De certa forma, o próprio cristianismo podia ser considerado uma seita ou dissidência do judaísmo oficial nos seus primeiros anos (...)” (pág. 47). Todos estes, presentes no filme aqui mencionado – romanos, sacerdotes, zelotes, etc.

O herói na luta pela sobrevivência, na versão de 2016
A saga de Ben Hur, após sua equivocada prisão, representa também a redescoberta religiosa do homem, na medida em que ele se afasta na luta pela sobrevivência diária, e procede com a reaproximação durante a jornada. Desse modo, a título de exemplo tanto político quanto religioso e sentimental, esta obra cinematográfica ajuda muito a compreender o turbilhão de emoções a que somos submetidos todos os dias, afinal, também lutamos pela sobrevivência diariamente, não!?


A sobrevivência, assim, mais do que um ato de força, trata-se também de um ato de fé. Somos confrontados a todo momento com as dificuldades da vida, e se não temos fé, não percebemos que são etapas necessárias de crescimento em nossa peregrinação rumo a felicidade, nossa e do próximo. “Quantos de nós, hoje, não reagimos assim diante do mistério e da revelação ante os nossos olhos? Preferimos seguir nossa rotina, cumprir nossos horários e obrigações diárias, sem perceber que, muitas vezes, há uma mensagem transformadora sendo transmitida em um olhar, uma frase, um sorriso, um gesto inesperado de bondade ou pelo céu estrelado sobre nossa cabeça em uma noite qualquer” (pág. 73).

Muitos são as ocasiões em que nos perdemos. Mas muitas também são as nossas oportunidades de reconstrução. Ultrapassar a maré alta para encontrar a tranquilidade em águas calmas requer muita força de vontade. E a vontade aqui pode ser traduzida por fé também. “Muitas vezes, basta uma pequena frustração, uma interrupção nos nossos planos ou uma simples palavra adversa para ventos impetuosos movam ondas gigantes na nossa alma. Perdemos a tranquilidade e o equilíbrio emocional e nos vemos prestes a submergir, impotentes e perdidos. Uma tempestade no coração nem sempre está relacionada a uma causa específica. Somos nós mesmos a origem das tempestades internas” (pág. 89).

E já como somos nós a origem de nossas tempestades, como apontado por Ludovico, o que devemos fazer para ser origem das nossas bonanças? Transformar problema em solução? Primeiramente temos que identificar que problemas são estes. Este é o primeiro passo.

Problemas

Dois dos males que mais afligem a humanidade têm suas raízes fincadas na falta da comunicação, do diálogo, e da importância que os bens materiais assumiram em nossas vidas. Ninguém aqui está dizendo que viver com o que de melhor o dinheiro pode oferecer é ruim. Mas enquanto esta for a principal mola propulsora para seus atos, o homem enfrentará mais problemas que soluções. Quando o dinheiro passa a ser exatamente o que é – um acessório em nossas vidas – a dimensão do que verdadeiramente interessa – o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo – encontra espaço para nos preencher da alegria de que necessitamos para viver. Os bens materiais passam assim a ser um bônus, e nada mais do que isso.

Como potestade, o dinheiro pode se assenhorear do coração do homem, estabelecendo com ele uma relação de senhor e servo. Engana-se, portanto, o homem que acha que possui o dinheiro; na realidade, é o dinheiro que o possui. (...) Mas não entrega o que promete; ao contrário, nos faz infelizes, insatisfeitos, endividados, egoístas, desconfiados, consumistas, sem amigos e insensíveis ao drama humano da miséria e da pobreza. Uma potestade que enfatiza o ter, impedindo-nos de viver com ideais elevados, valores éticos, de ver a nobreza das causas, de sonhar com um mundo melhor e ser ativos na promoção do bem comum (págs. 122 e 123).

O dinheiro, portanto, nos individualiza, na pior acepção do termo. O ser humano é ser sociável. Quando ele se enclausura, atrás de suas posses, ele perde a capacidade de dialogar.

Jesus Cristo, representado por Rodrigo Santoro (Ben Hur 2016)
Temos dificuldade de ouvir o outro. Às vezes, ouvimos de forma truncada e seletiva. Ou, então, simplesmente não ouvimos. Em outras ocasiões, nos expressamos mal, não conseguimos dizer tudo que desejamos ou simplesmente nos calamos. Há colocações fora de hora, palavras truncadas e interpretações equivocadas. Todo mundo fala, todo mundo ouve, mas ninguém se entende. Dos obstáculos à comunicação surgem as dificuldades no casamento, na família e na comunidade em que vivemos. O surdo e gago levado a Jesus representa cada um de nós em nossas dificuldades relacionais de compreender e ser compreendido (pág. 94).

Mas o que o futuro nos reserva? Que tipo de revelação temos que ter acesso para sair desta espiral de incomunicabilidade e ganância material?

Revelação

O texto do Evangelho nos diz que, logo depois da pesca milagrosa, Simão Pedro “prostou-se aos pés de Jesus dizendo: Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador”. O que aconteceu a Pedro continuou acontecendo a milhares de homens e mulheres ao longo da história, e até os dias de hoje. Encontramo-nos com Jesus Cristo e não conseguimos mais permanecer de pé, caímos diante Dele. Sua presença desarma nosso espírito e também nosso corpo. Algumas vezes, a experiência do encontro divino altera o batimento cardíaco, provoca uma lágrima no canto do olho ou um longo e profundo suspiro (pág. 83).

A revelação, processada como acima descrita por Ludovico, é apenas o estopim da mudança. Algo de milagrosa, algo de querer interior, não importa. O que vale aqui é que não se perca o momento e se possa seguir em frente, aproveitando esta oportunidade para construir um mundo melhor, a partir das próprias atitudes. “É um erro acreditar que Deus precisa de uma Igreja perfeita para realizar a obra da redenção” (pág. 79). Ele precisa de cada um de nós! “Deus nos confia uma missão, um chamado, uma tarefa. Ele nos quer a Seu serviço, espalhando Sua mensagem de amor e esperança por todo o mundo. Deseja que sejamos instrumentos em Suas mãos para construir um mundo melhor, mais pacífico, mais justo, com mais generosidade e solidariedade. É através do amor ao próximo que realmente encontramos um significado para a nossa vida” (pág. 86).

E será que, nessa jornada, na nossa peregrinação, nosso rebanho tem que ser de uma única ovelha? Será que esse esforço por transformar o mundo não seria melhor se fosse feito dividindo-o com aqueles que mais se importam conosco e vice-versa? Acredito que sim. Quanto mais bem acompanhados estivermos nessa linda aventura de escrever nossa própria história melhor. Porém, para “conhecer e definir alguém há que se aguardar paciente e silenciosamente que o outro se revele, se exponha, num processo lento e gradual. Só assim podemos ser visitados pela singularidade e unicidade do outro que se revela. Só então podemos descrever essa pessoa, ainda que de forma inconclusiva, a partir do conhecimento baseado no convívio e na amizade” (pág. 176). E a partir daí elegê-lo como um daqueles com os quais partilharemos as dores e as alegrias de nossa vida.

Enfim, o que o futuro nos reserva?

Dependendo dos objetivos que traçarmos, esta caminhada sofrerá mais ou menos desvios. As pedras, os obstáculos, serão tão maiores como os enxergarmos ou como venhamos a enfrentá-los.

“Para aqueles que aspiram a eternidade, Jesus Cristo diz que é amando que a alcançaremos. Não se trata de uma doutrina ou de uma religião, mas do exercício cotidiano de amar a Deus e ao próximo como a nós mesmos. A qualidade de nossos vínculos e dos nossos afetos são eternos. O amor é divino, perene, santo e jamais passará. A vida eterna tem a ver com nosso amor a Deus e o cultivo desse relacionamento através da nossa devoção e oração em segredo, isto é, fora do público. Mas também é amar e servir ao nosso próximo. Cuidar do próximo como cuidamos de nós mesmos. Isso é resultado do exercício possível da afetividade no dia a dia, em outras palavras, tem a ver com o aqui e o agora, com o chão da vida. Viver a vida cotidiana determina a nossa vida eterna” (pág. 102).


O livro de Laurentino Gomes e Osmar Ludovico nos serve, assim, como uma breve mensagem e indicação de como darmos os primeiros passos rumo à vida eterna. E com inspiração divina, tudo fica mais fácil.