segunda-feira, 17 de julho de 2023

Torto Arado

 

O papel de quem analisa um texto muitas vezes é ingrato. Ingrato no sentido de que, por questões de gosto, acaba sendo enviesado e não necessariamente imparcial. Por melhor que seja a obra, esta poderá sofrer críticas, pois ao olhar de um ou de outro ela pode não se adequar a uma preferência de estilo.

 

Fonte: https://www.brasildefatopb.com.br/2021/11/12/torto-arado-o-limiar-entre-a-ficcao-e-a-realidade

Torto Arado, obra premiada de Itamar Vieira Júnior, ganhadora que foi dos prêmios Leya 2018, Oceanos e Jabuti, chegou a mim credenciada para ser um grande prazer, em que pese a dura mensagem passada. Editada pela Todavia em 2018, esta obra, classificada como romance da literatura brasileira, traça em suas 262 páginas a trajetória da dura vida da família das duas irmãs Bibiana e Belonísia, egressas de uma comunidade quilombola. 

Marcadas por uma tragédia logo em seu princípio, aquilo que parecia ser algo a pesar em sua educação, acabou não esmorecendo a nenhuma das protagonistas em buscar seus objetivos. Mas cada uma delas trilhou um caminho diferenciado, se colocando a serviço de uma causa por reconhecimento da validade de uma luta tão comum àqueles que têm em sua história as mazelas de uma vida de dificuldades. 

O livro se divide em 3 partes, sendo cada uma delas narrada por um personagem. As duas primeiras são divididas entre as duas irmãs, sendo a primeira – Fio de Corte – por Bibiana, a segunda, que dá nome ao livro (Torto Arado) por Belonísia; e a terceira e última, Rio de Sangue, por uma entidade. A prosa de Itamar Vieira Júnior, sem diálogos, direta, contínua, narra a estória com uma fluidez, em seções curtas, que prendem o leitor, principalmente nas duas primeiras partes. Uma obra que seria digna, no popular, de ser adaptada para uma novela das 18h, na Globo. 

Porém, e aí chegamos à questão de gosto, creio que na última parte, entre flashbacks necessários para um melhor entendimento da estória em sua totalidade, parte para o que alguns classificam como realismo fantástico, dando a impressão de uma escolha a ser facilitada para o encerramento do que estava sendo descrito. Óbvio que as religiões afro são bem representadas, dada a raiz utilizada como linha central a ser traçada. Mas isso seria a melhor alternativa para dar o desfecho final ao enredo? Uma solução é sugerida, veladamente, para uma encruzilhada que se apresentava perante a família central da trama. 

De todo modo, acredito também que determinados textos transcendem a uma bem querência de gosto estilístico. Torto Arado se presta a dar voz a uma parcela da população que vinha, a algumas centenas de anos, tendo suas tradições deixadas de lado em prol de um progresso de uma minoria. Pode até ser a semente de um melhor entendimento por parte daqueles que não tiveram a oportunidade travar conhecimento com o ambiente do outro, este sendo entendido como alheio ao mainstream. 

Ela te tira assim, enquanto leitor, da zona de conforto, em que pese ser ao mesmo tempo atrativa. Não há como retirar da mesma a qualidade de fazer com que você fique curioso com o final, mesmo que esse não seja exatamente aquele que almejamos. Minha sensação, enfim, é de que o livro podia mais, mas não posso negar que ele entrega o que promete desde a primeira página, o que eu considero um grande mérito.

 

sábado, 8 de julho de 2023

Ruído, uma falha no julgamento humano

 

Meu interesse por esta nova obra de Daniel Kahneman, mesmo autor de Rápido e Devagar, foi despertada pelo impacto gerado justamente por esse primeiro trabalho citado. Desta feita, juntamente com os pesquisadores Olivier Sibony e Cass R. Sunstein, o professor de psicologia, agora com o auxílio de seus colegas das cadeiras de estratégia e política empresarial e de direito de constitucional respectivamente, aprofunda o debate sobre os métodos de tomada de decisão avaliando como o viés e o ruído a eles associado pode colaborar para um mau direcionamento de uma tarefa, projeto, atividade, o que seja.

 

Fonte: https://www.3gen.com.br/resenha-noise-a-flaw-in-human-judgment/

O livro, editado pela Objetiva em 2021, contém 426 páginas, sendo que a partir da página de número 367 são apresentados três apêndices para expor uma metodologia de análise de ruído, além dos agradecimentos de praxe, notas e índice remissivo. Os apêndices trazem um aspecto o qual me incomoda muitíssimo, que é a percepção de que o livro foi concebido com o objetivo não de ter somente um melhor detalhamento ou uma abordagem diferenciada da teoria apresentada no trabalho anterior, mas sim uma maneira de se obter um ganho financeiro extra – ora, afinal eles apresentam uma metodologia de análise de ruído, para ser aplicada como uma consultoria! E as notas, deixadas para o final, são objeto de crítica de minha parte, já que adoro ler observações no decorrer do texto – para os mais ansiosos, fica o trabalho de ter que ficar acessando o final da obra sempre que encontram uma nota de rodapé, o que, a meu ver, é cansativo para o leitor. 

Ou seja, todos os leitores que o Kahneman ganhou anteriormente são brindados com algo como se fosse uma compensação pelo esforço anterior. Mas, ao contrário, entendo que acaba mais decepcionando do que agradando seus fãs. Talvez isso possa ter sido por pressão da editora, para o lançamento de um novo best seller, ou a avidez dos demais autores – que podem ter influenciado tal jornada mais “comercial” – mas fato é que o livro é apresentado como sendo resultado de uma “extensa pesquisa”, na qual “examinam a diferença entre viés e ruído tanto nas organizações públicas quanto nas privadas”. E mais, “investigam a psicologia humana com o intuito de oferecer soluções práticas para aperfeiçoar nossa capacidade de percebê-los, prevenindo erros na vida pessoal e profissional”. Desta forma, nunca saberemos o que de fato levou a esse resultado, mais pobre, a meu ver. 

Em relação a narrativa e a qualidade do texto, ao contrário do livro anterior – é inescapável que façamos uma comparação – que prende o leitor do início ao fim, este se perde depois do primeiro terço, pois o leitor esbarra na necessidade dos autores em exemplificar, com uma análise estatística, como chegaram às conclusões alcançadas, o que torna o trabalho mais árido para quem busca algo mais leve. Existem momentos de maior riqueza, porém, como se um raio de luz invadisse uma sala, na qual eles conseguem fazer paralelismos com relatos de experiências havidas ou situações, algumas ficcionais outras reais, para bem explicar o que estavam buscando teorizar. Nesses momentos, leitores de primeira hora encontram algo mais fluido, que auxilia na compreensão do todo. Porém, infelizmente, são muito menos constantes do que gostaríamos. 

Desta forma, seu fosse chegar a um veredicto sobre a validade ou não da aquisição e leitura de tal obra, minha análise seria negativa. Sempre que chego a um ponto como esse me entristece um pouco, dada minha paixão pela leitura, mas minha obrigação para com vocês é ser sincero. Caso estejam procurando algo acadêmico, na área de estatística, que combine com análise psicológica, administrativa e legal, pode ser que se sintam atraídos. Mas, volto a dizer, “Ruído” foi para mim, uma espécie de cilada. Esperava algo que não se consubstanciou, o que transformou a jornada em uma grande via Crúcis. Deixarei abaixo alguns trechos, na esperança de que despertem algo de atrativo para vocês. 

Claro que uma batalha contra o ruído não é a única consideração para os tomadores de decisão e as organizações. Reduzir o ruído costuma sair caro: uma escola poderia eliminar o ruído nas notas dos alunos se cinco professores lessem todos os trabalhos, mas um ônus desses dificilmente é justificável. Na prática, pouco ruído talvez seja inevitável, o efeito colateral necessário de um sistema mais justo de apuração que leva em conta os casos individualizados, não trata as pessoas como engrenagens numa máquina e confere ao tomador de decisão a sensação de liberdade de ação. Um pouco de ruído pode ser até desejável, se a variação produzida capacita o sistema a se adaptar com o tempo – como em situações em que a mudança dos valores morais desencadeia um debate que leva a mudanças na práxis ou na lei” (pág. 362); 

Quando médicos oferecem diferentes diagnósticos para um mesmo paciente, podemos estudar a discordância sem saber de que mal ele foi acometido. Quando executivos de um estúdio estimam o mercado para um filme, podemos examinar a variabilidade de suas respostas sem saber quanto o filme rendeu no final ou mesmo se foi de fato produzido. Não precisamos saber quem está com a razão para medir o grau de variabilidade dos julgamentos em um mesmo caso” (pág. 11); e 

(...) se você afirma compreender um conceito matemático ou compreender o que é o amor, não está sugerindo que é capaz de fazer previsões específicas. Entretanto, no discurso das ciências sociais, e na maioria das conversas do dia a dia, alegar compreender uma coisa é alegar compreender o que a causa. (...) Médicos que compreendem o mal de um paciente alegam que a patologia que diagnosticaram é a causa dos sintomas que observaram. Compreender é descrever uma cadeia causal. A capacidade de fazer uma previsão é uma forma de medir se tais cadeias causais foram identificadas. E a correlação, ou a medida da precisão preditiva, é uma medida de quanta causação podemos explicar” (pág. 150)