quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Harry Potter 3.7

No início do ano passado minha filha ganhou os três primeiros livros da série Harry Potter – A Pedra Filosofal; A Câmara Secreta; e O Prisioneiro de Azkaban. Entramos em acordo para que ela os lesse antes de ver os filmes. Este acordo foi baseado em duas convicções, ambas da minha parte – a primeira é de que, como havia uma pressão externa por parte de suas amigas, aumentada desde nossa viagem à Disney, em 2013, de que ela deveria assistir os filmes, de que pudesse verificar, ela própria, como os livros são, na grande parte das vezes, melhores que as adaptações cinematográficas; e segundo o incentivo à leitura em si.

Acordo feito, ela iniciou a leitura do primeiro exemplar, porém a muito custo. Não chegou a terminá-lo, e raras foram as vezes que retomou para tentar avançar. O ano de 2014 passou e já próximo ao seu final ela me confessou ter visto o primeiro filme. Coloquei para ela, então, no auge do meu desassossego, de que ela estava dispensada das leituras dos livros. Propus-me ainda a lê-los, para que pudesse acompanhar sua aventura cinematográfica. Observando minha contrariedade ela retomou o compromisso de leitura, já a partir do segundo volume, tarefa esta, porém, não ainda iniciada.

Chegadas as férias de início de ano, coloquei para ela que durante nossa viagem à Bahia leria os três volumes. Dito e feito – em verdade terminei o último um dia após a minha meta, já tendo retornado à casa – agora me sinto mais tranqüilo quanto à possibilidade de ver os filmes. Após este longo prólogo, vou ao que interessa, qual seja, minhas primeiras impressões sobre a série.

J. K. Rowling fez jus a toda fama que construiu a partir das estórias centradas no personagem-título. Porém nota-se uma clara evolução no enredo em termos de adensamento e complexidade. Diria para vocês que o primeiro volume seria como aqueles filmes de adolescentes, em todos os seus dilemas e querelas, em que o ambiente colegial é apresentado e existem os embates entre os diferentes grupos de estudantes. O diferencial é que ambientação se dá numa escola de bruxos.


Harry assim, um garoto desajustado no mundo dos trouxas – como são denominados os que não são bruxos – tem uma reversão de expectativa sobre a própria pessoa, ao descobrir que é um astro no mundo da bruxaria dada a sua origem. Ele se cerca de dois amigos – Rony e Hermione – que formam o núcleo central da estória, juntamente com Alvo Dumbledore, diretor do colégio; Minerva McGonagall, vice-diretora; e o grande vilão, Lorde Valdemort. Harry e seus amigos tem como contraponto um grupo opositor, formatado no velho clichê de um garoto-bandido, digamos assim – Draco Malfoy – ladeado por dois brutamontes sem cérebro que o acompanham por todo lado – Crabbe e Goyle, acobertados pelo Prof. Snape.

De resto é o velho roteiro de duelos, dificuldades com aulas, matérias e o esporte escolar (Quadribol), as dúvidas constantes da adolescência – Harry entra em Hogwarts, o colégio, com 11 anos recém-completados - etc. O primeiro livro seria, assim, para continuar o paralelismo cinematográfico, uma perfeita Sessão da Tarde, leve como açúcar.

Porém, seguindo seu caminho, cada um dos livros apresenta um dos anos seguintes na formação de bruxo de Harry. E o nível de tensão e dramaticidade aumentam. Já passam a existir cenas mais violentas, e questões mais complexas, que talvez cumpram com o objetivo de inserir, de na maneira sub-reptícia, no universo dos leitores juvenis, temas como a depressão, por exemplo – o que não seria, no 3º livro, o efeito provocado pelos “dementadores” nas pessoas? Com isso, não é de se estranhar diferentes classificações etárias para cada um dos filmes da série. Ou seja, parece que existe um amadurecimento do enredo, como se a autora quisesse acompanhar o crescimento dos seus leitores fiéis – algo factível a partir da periodicidade de produção e lançamento das obras.

Devo ressaltar ainda que um dos grandes méritos de Rowling para alguém, como eu, que foi doutrinado nas obras de Agatha Christie, são as reviravoltas para explicar cada um dos mistérios usados como linha central em cada um dos volumes. O óbvio não prevalece, sempre surgindo uma solução inesperada para os dilemas e questões propostos. Isso aguça a curiosidade do leitor, que busca ler vorazmente as estórias de modo a ter a explicação tão ansiada, e a solução para o sofrimento do pequeno bruxo e seus amigos.

Por último a autora aproveita para passar valores que considera importantes para seu público infanto-juvenil. Nesse sentido, nada melhor do que a voz do personagem que representa a sapiência, o mago-diretor, Alvo Dumbledore:

Harry Potter e a Pedra Filosofal - 223 págs.

Sobre a morte: “(...) para a mente bem estruturada, a morte é apenas a grande aventura seguinte” – pág. 214;

Sobre a verdade: “A verdade (...) é uma coisa bela e terrível, e portanto deve ser tratada com grande cautela. (....) Não vou, é claro, mentir” – pág. 215.

Harry Potter e a Câmara Secreta – 252 págs.

Sobre a lealdade e solidariedade: “Porém (...) você vai descobrir que só terei realmente deixado a escola quando ninguém mais aqui for leal a mim. (...) Hogwarts sempre ajudará aqueles que a ela recorrerem” – pág. 197.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban – 318 págs.

Sobre a saudade: “Você acha que os mortos que amamos realmente nos deixam? Você acha que não nos lembramos deles ainda claramente em momentos de grandes dificuldades? O seu pai vive em você, Harry, e se revela mais claramente quando você precisa dele” – pág. 313.

Em resumo, é uma leitura leve, agradável, que se compreendida em seu intento, percebe-se o seu valor e o porquê de ter alcançado tão grande sucesso. Pós-Potter Rowling iniciou uma trajetória com outros romances, de cunho detetivesco e mais adulto. Mas isto é um tema para outra oportunidade, a confirmar seu talento.


OBS.: todas as edições aqui mencionadas foram publicadas pela Rocco, originalmente no ano de 2000.

sábado, 10 de janeiro de 2015

ETERNIDADE POR UM FIO

Em tempos de repúdio total a intolerância, “Eternidade por um fio”, de Ken Follet – Ed. Arqueiro – 2014 – 1072 págs., terceiro livro que fecha a trilogia “O Século”¹, cai como uma luva para nossa reflexão. A trilogia gira em torno da saga de cinco famílias durante o século XX, tendo os principais acontecimentos históricos como pano de fundo. Essas famílias estão espalhadas no Reino Unido, Rússia, Alemanha e Estados Unidos.


Nos dois primeiros volumes tivemos a atenção centrada em como se interrelacionavam a partir do contexto das duas grandes Guerras Mundiais. Já neste último, temos como cenário a Guerra Fria e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Pelo que pude perceber, a ênfase maior foi em relação a este último, sendo inclusive o capítulo de fechamento dedicado ao tema. O Vietnã, ponto relevante em termos de Guerra Fria, é utilizado apenas como um detalhe a mais em toda essa dinâmica, servindo mais de subterfúgio para justificar a permanência de um jornalista britânico – o personagem Jasper Williams – num dos principais palcos da história, os Estados Unidos.

A Inglaterra, tão presente nos dois primeiros volumes, é deixada de lado neste último. Tal pode ser debitado ao fato de que nestes, como a grande ênfase foi no desenrolar das duas primeiras Guerras Mundiais, ambientadas na Europa, os Estados Unidos é que esteve como coadjuvante de luxo. Desta feita os papéis estão invertidos.

A Guerra Fria também é demonstrada com requinte pelo olhar europeu. De um lado a Rússia, com suas idas e vindas durante o período em que dominou o mundo comunista enquanto União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). De outro, aquele que por muito tempo foi considerado o possível gancho para uma terceira guerra mundial – o muro de Berlim, e a tensão que separava as então existentes Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental.

E é aí que entra forte, mais do que nunca, o tema intolerância. Um dos principais veios da história é o tratamento dado pela polícia política da Alemanha Oriental – a Stasi – para com a família Franck. Esta, reconhecida por ter pensamentos contrários à doutrina comunista então prevalecente, é perseguida de todos os modos, não tendo nenhum de seus anseios permitidos oficialmente. É claro que isso acaba por levar a decisões radicais em suas vidas.

Outro libelo contra a intolerância é a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Como disse anteriormente, este é um dos pilares do terceiro volume. Um personagem surgido ao final do segundo volume – George Jakes - “abre mão de uma carreira promissora para trabalhar no Departamento de Justiça do governo Kennedy e acaba se vendo no turbilhão” desta luta. Negro, ele inicia sua trajetória participando de um movimento que viaja pelos estados do Sul dos EUA, sofrendo graves conseqüências por isso. Mas nada impede que ele se engaje cada vez mais, mesmo tendo que algumas vezes dar dois passos atrás para poder contornar uma sociedade que ainda tem dificuldades para enxergar que a cor da pele não faz a mínima diferença.

O livro se mostra de grande valia para uma compreensão de como um dado movido num campo da política internacional pode afetar outro, em outro extremo do mundo. Em como as ações pela melhoria de nossa sociedade mundial por vezes têm que pagar um preço muito duro para alcançar seus objetivos de bem estar, tomando gerações e gerações em sua luta. Será que veremos ainda uma luz a este respeito? Quando a palavra escrita – e desenhada – ainda é objeto de pena de morte por terceiros vemos que ainda estamos longe. Mas há que perseverar. E deixar que tais histórias bizarras sirvam apenas como argumentos para a escrita de romances, ficando apenas na ficção.

Observações de um crítico chato

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Há que se ter clareza que é um livro com o olhar ocidental. Talvez fosse o autor de outra origem a visão fosse distinta. Portanto, condescendência de que a visão é totalmente pró um determinado lado, não se busca a imparcialidade aqui. Ou seja, caso se tenha um olhar diferente, tolerância é solicitada;
·         A tradutora, Fernanda Abreu, por vezes se mostrou confusa quanto aos critérios, ora optando por traduzir literalmente, mantendo a terminologia do original em inglês, ora adaptando – “Observou Evie desenhar, dentro de O de ‘mãos’, o símbolo de quatro braços (...)” – pág. 286 – se no original era ‘hands’ a palavra em que letra ele teria desenhado o tal símbolo? / “George sabia que Tim Tedder estava em Saigon fazendo a ponte entre a CIA e o Exército da República do Vietnã, o ARNV”. Eu teria preferido deixar o nome por extenso em inglês. Pareceria-me mais coerente – pág. 485;
·         No capítulo 42 ela troca os nomes de um personagem. Ora ele é Robert Wharton (págs. 723 e 739), ora ele é Albert Wharton (págs. 734 e 737);
·         Por último, um erro bobo de concordância – “Seus pais nunca falava muito (...)” – pág. 906. Num livro de mais de 1000 páginas realmente deve ser cansativo fazer a revisão! Tolerância, meus caros, tolerância!

(1)  Que contém ainda “Queda de Gigantes” e “Inverno do Mundo”, já comentados neste mesmo blog.

sábado, 3 de janeiro de 2015

História do Brasil para Ocupados

“Os mais importantes historiadores apresentam de um jeito original os episódios decisivos e os personagens fascinantes que fizeram o nosso país”. Sempre prezei muito promessas feitas e cumpridas. O organizador do livro “História do Brasil para Ocupados”, Ed. Casa da Palavra – 2013 – 504 págs, Luciano Figueiredo, cumpre exatamente com a promessa feita na frase acima apresentada no início deste parágrafo. O que não quer dizer exatamente que eu seja somente elogios para o livro.

Reunir 66 historiadores de renome certamente não deve ter sido tarefa fácil. Somente por esse esforço a obra já seria digna de elogio. Num grupo tão grande diversas são as matizes apresentadas. Por mais isentos que queiram ser nos artigos apresentados, as cores de suas ideologias por vezes derrapam e são mostradas. Em outras ocasiões, a depender da personalidade do autor, elas são escancaradas. Mas mesmo esse aspecto de fundo não impede que apreciemos o fato de que temos à mão um compêndio dos principais momentos e temas que giram em torno da História de nosso país desde seu “achamento” – em que pese se circunscrever majoritariamente até a ditadura militar, não indo muito além, e mesmo assim em raras ocasiões.

Entre os 66 autores é óbvio que o leitor irá se surpreender com descrições que nos indicam como a História se repete:
Ao amanhecer, a paisagem era de devastação, e foi assim descrita pelo Jornal do Commercio, na edição do dia 15: “(...) paralelepípedos revolvidos, que serviam de projéteis para essas depredações, coalhavam a via pública; em todos os pontos destroços de bondes quebrados e incendiados, portas arrancadas, colchões, latas, montes de pedras, mostravam os vestígios das barricadas feitas pela multidão agitada” – pág. 353 – “O Povo Contra a Vacina” – José Murilo de Carvalho.

Qualquer semelhança com as recentes manifestações não é mera coincidência, inclusive porque o autor ressalta a multiplicidade de interesses aí envolvida nesta revolta do início do século passado.

Outro aspecto interessante é a identificação de alguns traços que permeiam a nossa sociedade, nem todos belos. Por exemplo, encontrei a melhor definição e explicação sobre como a corrupção se entranhou no Brasil, e da própria corrupção em si enquanto fenômeno da humanidade, em mais um artigo de José Murilo de Carvalho – somente por essa coincidência já posso depreender que dentre todos foi o meu autor favorito:
José M. de Carvalho

Nosso cipoal de leis incita à transgressão e elitiza a justiça. A tentativa de fechar qualquer porta ao potencial transgressor, baseada no pressuposto de que todos são desonestos, acaba tornando impossível a vida do cidadão honesto. A saída que este tem é, naturalmente, buscar meios de fugir ao cerco. Cria-se um círculo vicioso: excesso de lei leva à transgressão, que leva à mais lei, que leva a mais trangressão. “Basta de Corrupção” – José Murilo de Carvalho – pág. 265 (artigo 263-268).

Luciano Figueiredo
Assim Luciano Figueiredo, enquanto organizador, buscou atingir cada leitor, que certamente terá uma predileção específica sobre um determinado tipo de tema. O livro é subdividido em blocos: 1 – Pátria; 2 – Fé; 3 – Poder; 4 – Povo; 5 – Guerra; e 6 – Construtores. Por vezes os temas acabam por se mesclar – ora se está num determinado bloco e acabamos esbarrando com argumentações que facilmente se integrariam com outro, mas que eram necessárias pela lógica do discurso.

Aí se encontra minha principal crítica. Acredito que para uma obra de consulta se deve facilitar a vida de quem a busca. E num livro dedicado a temas históricos não se deveria reinventar a roda: o melhor parâmetro ainda é o temporal. Ou seja, diferentemente de Figueiredo, eu teria preferido seguir uma linha cronológica que propiciasse uma referência de fácil administração para aqueles que gostariam de se aprofundar sobre uma determinada época e um tema a ela circunscrito. Gostaria ainda que a formação dos autores fosse expressa logo na primeira página do artigo, como toda obra acadêmica, e não numa extensa lista ao final. Estes aspectos de forma, de todo modo, não prejudicam demasiado a obra para que esta deixe de ser referenciada como necessária na estante de todo pesquisador. Guardadas as devidas provocações ideológicas existentes, é claro, e se atendo aos fatos. Afinal, estamos falando de História – a Política encontra-se aí mesclada, mas cabe a cada um fazer a interpretação que melhor lhe apetece.

José Murilo de Carvalho é doutor em Ciência Política pela Universidade de Stanford. Foi professor visitante em várias universidades, entre as quais Stanford, Notre Dame, Oxford e École des Hautes Études en Sciences Sociales e, desde 2004, é professor visitante da Escola de Guerra Naval (EGN). É professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Letras e Academia Brasileira de Ciências (págs. 491-492).


Luciano Figueiredo é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenou a área de pesquisa, divulgação e editoração do Arquivo Nacional, fundou e dirigiu as revistas Nossa História e Revista da História da Biblioteca Nacional até 2011. Foi pesquisador na John Carter Brown Library (Providence/RI) e no Boston College. Atualmente é professor associado na Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do CNPq e editor da revista Tempo (pág. 493).