domingo, 4 de setembro de 2016

CRIATIVIDADE S.A.

(...) os criadores de filmes devem estar preparados para ouvir a verdade; a sinceridade só terá valor se a pessoa que a receber estiver aberta a ela e disposta, se necessário, a abrir mão de coisas que não funcionam (pág. 112).

Como superar o desafio de se contar uma história de sucesso da qual participou sem se auto-proclamar um gênio? Este era um dos desafios subjacentes quando Ed Catmull se propôs expor a trajetória da Pixar – e posteriormente da Disney – sob sua direção e de John Lasseter. Isso tudo passando ainda pelo relacionamento com, aí sim, um dos reconhecidos gênios do final do século XX e início do século XXI, Steve Jobs (a quem inclusive é dedicado o livro).

Mesmo que não tenha declarado este desafio no livro Criatividade S.A. – Superando as forças invisíveis que ficam no caminho da verdadeira inspiração – Ed Catmull & Amy Wallace – 1ª edição – Rio de Janeiro: Rocco, 2014 – 319 págs. – o presidente da Pixar Animation e Disney Animation conseguiu ao final se distanciar na medida correta do que entende ser o segredo do sucesso: a participação franca e aberta de todos os colaboradores no gerenciamento e condução dos diferentes projetos.

Assim sendo, o que imaginamos a princípio ser o relato de como manter a criatividade numa empresa que progride, sucesso após sucesso, sem cair na tentação de cair na mesmice de repetir fórmulas, em escala industrial, uma após a outra, estimulando-se sempre a buscar o novo, o surpreendente, acaba por ser o levantamento de como gerenciar diferentes personalidades. A extração contínua do melhor de cada um deles deve respeitar o tempo e a hora exatos da maturação das ideias. À exceção que confirmou a regra, descrita no livro, foi Toy Story 2, responsável por um tour de force de toda a equipe contra o tempo para respeitar prazos de lançamento. Desde então a dinâmica de trabalho foi redimensionada de modo a que todos tivessem o conforto necessário para fazer valer aquilo no qual acreditaram desde o princípio – e não mergulharem no esquema industrial de entregar algo sem o devido apreço pela qualidade.

Ed Catmull
Voltando ao que acreditamos ser o cerne da questão tão bem explorado por Catmull em muitos momentos do livro, este poderia ter seu nome alterado de Criatividade S.A. para Sinceridade S.A. Por muitas vezes este aspecto – sinceridade entre todos – foi enaltecido como sendo a chama que manteve a criatividade acesa. Mas o próprio Catmull admite o quão difícil é para, entre diferentes níveis hierárquicos, fazer com que os subalternos não se sentissem temerosos de dar sua opinião no sentido de contribuir para o desenvolvimento de um projeto, mesmo correndo o risco de contrariar a ideia dos dirigentes da instituição.

Assim sendo, o livro traça a trajetória desde o nascimento da Pixar, seus primeiros sucessos, e as soluções gerenciais encontradas por seu núcleo diretor para incorporar a todos os membros da instituição no processo de criação, apoiando cada um na sua especificidade, de maneira a que tenham a percepção de sua importância no processo até o produto final. Chega um determinado momento então em que a junção da Pixar com a divisão de animação da Disney é costurada. E o medo de ser engolido (de ambos os lados, há que se ressaltar, já que a Disney naquela ocasião não vinha passando por uma boa fase) por outro sistema de trabalho nasce. Catmull e Lasseter então passam a se dividir entre duas casas, mas buscando respeitar seus valores e tentando introduzir o que consideram ser o melhor modelo de gestão, aquele que faz com que todos tenham a centelha da criatividade acesa.

Para aqueles que adoram as animações da Pixar a obra é interessante por poder tomar conhecimento dos bastidores dos grandes sucessos alcançados pela produtora. O sonho de se fazer um filme inteiramente animado por computador, alcançado com Toy Story, foi apenas o primeiro motor deste desenvolvimento. Catmull coloca de maneira clara que o livro acabou sendo o resultado do segundo desafio que ele buscou, para não cair na rotina de ser um “simples” gestor de uma empresa de sucesso, já que seu sonho de 20 anos havia sido alcançado com o (quase) primeiro produto da empresa. Ele identificou a criação de uma metodologia de gerenciamento de empresas da indústria “criativa” e sua disseminação para quem queira se utilizar dela como sendo sua nova pregação.

Eixo central desta metodologia é o que Catmull denomina Banco de Cérebros. Trata-se de uma espécie de conselho que reunia cabeças pensantes na Pixar para avaliar os diferentes projetos em distintas etapas de seu desenvolvimento. Nem sempre as reuniões contavam com as mesmas pessoas – com todos, quero dizer – mas quem estava presente tinha noção de que cada um iria colocar como enxergava o que estava sendo exposto pelos diretores responsáveis, utilizando-se da sinceridade extrema em prol do bem do projeto. Em dado momento do livro Catmull coloca que o segredo é que, uma vez ultrapassado o sentimento de medo quanto à possíveis retaliações, todos compreendiam que a crítica que estava sendo feita era ao projeto, e não a pessoa que o administrava. E que uma vez colhidas as propostas de aperfeiçoamento – que poderiam ser utilizadas ou não – aguardava-se uma melhora no produto para a reunião expositiva seguinte.

Características do Banco de Cérebros (págs. 117/118)

Seria um erro pensar que meramente reunindo a cada dois meses um grupo de pessoas numa sala para uma discussão franca iria curar automaticamente os males da sua empresa. Em primeiro lugar, é preciso algum tempo até que um grupo desenvolva o nível de confiança necessário para o uso da franqueza, para que as pessoas expressem reservas e críticas sem medo de represálias, e aprendam a linguagem das boas observações. Em segundo lugar, nem mesmo o Banco de Cérebros mais experiente pode ajudar as pessoas que não compreendam suas filosofias, que se recusam a ouvir críticas sem cair na defensiva, ou que não possuem talento para digerir um feedback e recomeçar. Em terceiro lugar, (...), o Banco de Cérebros evolui com o passar do tempo. Criar um Banco de Cérebros não é algo que você faz uma vez e tira da sua lista de coisas a fazer. Mesmo quando ele é composto por pessoas talentosas e generosas, muitas coisas podem dar errado. As dinâmicas mudam – entre pessoas, entre departamentos – e a única maneira de garantir que seu Banco de Cérebros está executando sua tarefa é observá-lo e protegê-lo continuamente, fazendo adaptações quando necessário.

Antes de terminar, importante ressaltar duas pessoas, além do autor, que tiveram no decorrer do livro lugar de destaque: enquanto Catmull era, digamos, o mentor do gerenciamento das diversas linhas de trabalho, sempre buscando soluções para os dilemas enfrentados – inclusive ele ressalta o foco contínuo em enfrentar problemas até encontrar as soluções, quase uma obsessão – tinha ao seu lado John Lasseter como o gênio criativo a quem todos ouviam. Porém, Lasseter, do mesmo modo que Catmull, tinha a visão de dar a necessária abertura para que todos pudessem contribuir, nem sempre sua opção prevalecendo ao final. O outro personagem, com direito a um capítulo (págs. 296-312) totalmente dedicado ao relacionamento com ele – além de todo o livro em si – é Steve Jobs.

Catmull, Jobs e Lasseter
Posso dizer que Catmull foi responsável pelas palavras mais generosas em direção a Jobs que alguém já escreveu. Muitas vezes retratado como uma pessoa irascível, de difícil relacionamento, para Catmull ele era muito mais do que isso. Alguém que o estimulava a trabalhar no limite, no seu melhor, desafiando-o a encontrar soluções mais criativas das que a dele próprio, mas também defendendo sua equipe com unhas e dentes (deve-se observar que ele foi o investidor de primeira viagem na Pixar, quando ninguém acreditava no sonho dos seus gestores). Um cara que era um estrategista, ao ponto de saber o momento certo em que Pixar e Disney deveriam se unir, de modo a que os produtos da primeira contaminassem de qualidade a segunda, que já estava ficando de um certo modo “arcaica” no seu perfil de gerenciamento, associado a capacidade da Disney e seus canais de distribuição para turbinar os produtos Pixar. Os três unidos – Catmull, Lasseter e Jobs – prometeram ser leais uns aos outros, na medida em que lealdade representa ser sinceros sobre os erros e acertos que estavam cometendo e sobre a busca por soluções. E tiveram sucesso, como pudemos testemunhar.

Steve Jobs (págs. 296/297)

Hoje em dia, a palavra gênio é muito usada – demais, eu acho -, mas com Steve penso que ela se justifica. Contudo, quando o vi pela primeira vez, ele frequentemente era arrogante e brusco. Essa é a parte de Steve a respeito da qual as pessoas adoram escrever. Sei que é difícil entender pessoas que se desviam da norma de forma tão radical, como fazia Steve, e suspeito que focalizam seus traços mais extremos o fazem porque esses traços são divertidos e, de certa forma, reveladores. Porém, permitir que eles dominem a biografia de Steve é perder a história mais importante. No tempo em que trabalhei com Steve*, ele não só ganhou a espécie de experiência prática que seria de esperar dirigindo duas empresas dinâmicas e bem-sucedidas, mas também ficou mais esperto a respeito de quando parar de forçar as pessoas e quando continuar a forçá-las, se necessário, sem abusar delas. Ele tornou-se mais justo e sábio, e sua compreensão de parceria tornou-se mais profunda – em grande parte devido ao seu casamento (...) e seu relacionamento com os filhos que tanto amava. Essa mudança não o levou a abandonar seu famoso compromisso com a inovação, somente solidificou-o. Ao mesmo tempo, ele tornou-se um líder mais bondoso e autoconsciente. E penso que a Pixar teve seu papel nesse desenvolvimento. *26 anos

Assim sendo, o Banco de Cérebros acima apontado foi replicado, com outro nome, na Disney – Banco de Histórias – tendo como primeiro sucesso imediato a reformulação do projeto que veio a gerar Bolt, o Supercão. E os canais de venda desta última incorporaram os produtos Pixar. Mas isto são somente alguns dos pontos neste relacionamento – e na metodologia de gerenciamento em si por eles (Catmull e Lasseter) gerada (e aceita por Jobs, dado o seu desconhecimento do aspecto produtivo na arte da animação). Diria que vale a pena ler o livro então pelos seguintes motivos: lição de vida, aprendizagem de relacionamento, contextualização de um mito, valorização da sinceridade e os bastidores da história recente do cinema animado. Se nenhum destes aspectos o tocou, basta dizer que toda boa história, se bem narrada e bem escrita, de maneira leve, na qual existe a demonstração do amor pelo semelhante, vale a pena ser lida.

Princípios (págs. 313-316)

Mesmo informando ser refratário ao estabelecimento de princípios – “Sei que quando resumimos uma ideia complexa num slogan para imprimir numa camiseta, estamos nos arriscando a dar a ilusão de entendimento – e no processo, de tirar da ideia sua força” – Catmull deixou a parte final de seu livro com uma série de “pontos de partida”. Abaixo vou elencar os 3 que mais me chamaram atenção:

·         Inteligência e Ideias

Dê uma boa ideia a uma equipe medíocre e ela irá estragá-la. Dê uma ideia medíocre a uma grande equipe e ela irá corrigi-la ou oferecer uma coisa melhor. Se você puder ter a equipe certa, então terá as ideias certas.

Quando for contratar pessoas, dê ao potencial para crescer mais peso do que ao atual nível de qualificação delas. O que elas serão capazes de fazer amanhã é mais importante do que aquilo que podem fazer hoje.

Procure sempre contratar pessoas mais inteligentes que você. Dê sempre uma chance ao melhor, mesmo que isso possa parecer uma ameaça em potencial.

Se há em sua organização pessoas que sentem que não têm liberdade para sugerir ideias, você perde. Não despreze ideias de fontes inesperadas. A inspiração pode vir, e vem, de qualquer lugar.

·         Lidar com o medo

Se existe medo numa organização, há uma razão para isso, sua tarefa é (a) descobrir o que o está causando, (b) entendê-lo e (c) tentar eliminá-lo.

Se há mais verdade nos corredores do que nas reuniões, você tem um problema.

Muitos gerentes acham que, se não forem notificados a respeito de problemas antes dos outros, ou se forem pegos de surpresa numa reunião, é sinal de respeito. Cresça.

A estrutura de comunicação de uma empresa não deve refletir sua estrutura organizacional. Todos devem poder falar com todos.

·         O papel das mudanças e do fracasso

Mudanças e incertezas fazem parte da vida. Nossa tarefa não é resistir a elas, mas construir a capacidade de recuperação quando ocorrem eventos inesperados. Se não procurar sempre descobrir aquilo que não é visto e compreender sua natureza, você estará despreparado para liderar.

O fracasso não é necessariamente ruim. Na verdade, ele não é ruim. É uma consequência necessária de se fazer algo novo.

Confiar não significa que você confia que ninguém irá estragar tudo – significa que você confia em seus funcionários até mesmo quando eles estragam tudo.


As pessoas responsáveis pela implantação de um plano devem receber poderes para tomar decisões quando as coisas dão errado, mesmo antes de receberem uma aprovação. Encontrar e corrigir problemas é tarefa de todos. Qualquer um deve poder parar a linha de produção.