(...) os criadores
de filmes devem estar preparados para ouvir a verdade; a sinceridade só terá
valor se a pessoa que a receber estiver aberta a ela e disposta, se necessário,
a abrir mão de coisas que não funcionam (pág. 112).
Como
superar o desafio de se contar uma história de sucesso da qual participou sem
se auto-proclamar um gênio? Este era um dos desafios subjacentes quando Ed
Catmull se propôs expor a trajetória da Pixar – e posteriormente da Disney – sob
sua direção e de John Lasseter. Isso tudo passando ainda pelo relacionamento
com, aí sim, um dos reconhecidos gênios do final do século XX e início do
século XXI, Steve Jobs (a quem inclusive é dedicado o livro).
Mesmo
que não tenha declarado este desafio no livro Criatividade S.A. – Superando as forças invisíveis que ficam no caminho
da verdadeira inspiração – Ed Catmull & Amy Wallace – 1ª edição – Rio
de Janeiro: Rocco, 2014 – 319 págs. – o presidente da Pixar Animation e Disney
Animation conseguiu ao final se distanciar na medida correta do que entende ser
o segredo do sucesso: a participação franca e aberta de todos os colaboradores
no gerenciamento e condução dos diferentes projetos.
Assim
sendo, o que imaginamos a princípio ser o relato de como manter a criatividade
numa empresa que progride, sucesso após sucesso, sem cair na tentação de cair
na mesmice de repetir fórmulas, em escala industrial, uma após a outra,
estimulando-se sempre a buscar o novo, o surpreendente, acaba por ser o
levantamento de como gerenciar diferentes personalidades. A extração contínua
do melhor de cada um deles deve respeitar o tempo e a hora exatos da maturação
das ideias. À exceção que confirmou a regra, descrita no livro, foi Toy Story 2, responsável por um tour de force de toda a equipe contra o
tempo para respeitar prazos de lançamento. Desde então a dinâmica de trabalho
foi redimensionada de modo a que todos tivessem o conforto necessário para
fazer valer aquilo no qual acreditaram desde o princípio – e não mergulharem no
esquema industrial de entregar algo sem o devido apreço pela qualidade.
Ed Catmull |
Voltando
ao que acreditamos ser o cerne da questão tão bem explorado por Catmull em
muitos momentos do livro, este poderia ter seu nome alterado de Criatividade
S.A. para Sinceridade S.A. Por muitas vezes este aspecto – sinceridade entre
todos – foi enaltecido como sendo a chama que manteve a criatividade acesa. Mas
o próprio Catmull admite o quão difícil é para, entre diferentes níveis
hierárquicos, fazer com que os subalternos não se sentissem temerosos de dar
sua opinião no sentido de contribuir para o desenvolvimento de um projeto,
mesmo correndo o risco de contrariar a ideia dos dirigentes da instituição.
Assim
sendo, o livro traça a trajetória desde o nascimento da Pixar, seus primeiros
sucessos, e as soluções gerenciais encontradas por seu núcleo diretor para
incorporar a todos os membros da instituição no processo de criação, apoiando
cada um na sua especificidade, de maneira a que tenham a percepção de sua
importância no processo até o produto final. Chega um determinado momento então
em que a junção da Pixar com a divisão de animação da Disney é costurada. E o
medo de ser engolido (de ambos os lados, há que se ressaltar, já que a Disney
naquela ocasião não vinha passando por uma boa fase) por outro sistema de
trabalho nasce. Catmull e Lasseter então passam a se dividir entre duas casas,
mas buscando respeitar seus valores e tentando introduzir o que consideram ser
o melhor modelo de gestão, aquele que faz com que todos tenham a centelha da
criatividade acesa.
Para
aqueles que adoram as animações da Pixar a obra é interessante por poder tomar
conhecimento dos bastidores dos grandes sucessos alcançados pela produtora. O
sonho de se fazer um filme inteiramente animado por computador, alcançado com Toy Story, foi apenas o primeiro motor
deste desenvolvimento. Catmull coloca de maneira clara que o livro acabou sendo
o resultado do segundo desafio que ele buscou, para não cair na rotina de ser
um “simples” gestor de uma empresa de sucesso, já que seu sonho de 20 anos
havia sido alcançado com o (quase) primeiro produto da empresa. Ele identificou
a criação de uma metodologia de gerenciamento de empresas da indústria
“criativa” e sua disseminação para quem queira se utilizar dela como sendo sua
nova pregação.
Eixo
central desta metodologia é o que Catmull denomina Banco de Cérebros. Trata-se de uma espécie de conselho que reunia
cabeças pensantes na Pixar para avaliar os diferentes projetos em distintas
etapas de seu desenvolvimento. Nem sempre as reuniões contavam com as mesmas
pessoas – com todos, quero dizer – mas quem estava presente tinha noção de que
cada um iria colocar como enxergava o que estava sendo exposto pelos diretores
responsáveis, utilizando-se da sinceridade extrema em prol do bem do projeto.
Em dado momento do livro Catmull coloca que o segredo é que, uma vez
ultrapassado o sentimento de medo quanto à possíveis retaliações, todos
compreendiam que a crítica que estava sendo feita era ao projeto, e não a
pessoa que o administrava. E que uma vez colhidas as propostas de
aperfeiçoamento – que poderiam ser utilizadas ou não – aguardava-se uma melhora
no produto para a reunião expositiva seguinte.
Características do
Banco de Cérebros
(págs. 117/118)
Seria um erro
pensar que meramente reunindo a cada dois meses um grupo de pessoas numa sala
para uma discussão franca iria curar automaticamente os males da sua empresa.
Em primeiro lugar, é preciso algum tempo até que um grupo desenvolva o nível de
confiança necessário para o uso da franqueza, para que as pessoas expressem
reservas e críticas sem medo de represálias, e aprendam a linguagem das boas
observações. Em segundo lugar, nem mesmo o Banco de Cérebros mais experiente
pode ajudar as pessoas que não compreendam suas filosofias, que se recusam a
ouvir críticas sem cair na defensiva, ou que não possuem talento para digerir
um feedback e recomeçar. Em terceiro
lugar, (...), o Banco de Cérebros evolui com o passar do tempo. Criar um Banco
de Cérebros não é algo que você faz uma vez e tira da sua lista de coisas a
fazer. Mesmo quando ele é composto por pessoas talentosas e generosas, muitas
coisas podem dar errado. As dinâmicas mudam – entre pessoas, entre
departamentos – e a única maneira de garantir que seu Banco de Cérebros está
executando sua tarefa é observá-lo e protegê-lo continuamente, fazendo
adaptações quando necessário.
Antes
de terminar, importante ressaltar duas pessoas, além do autor, que tiveram no
decorrer do livro lugar de destaque: enquanto Catmull era, digamos, o mentor do
gerenciamento das diversas linhas de trabalho, sempre buscando soluções para os
dilemas enfrentados – inclusive ele ressalta o foco contínuo em enfrentar
problemas até encontrar as soluções, quase uma obsessão – tinha ao seu lado
John Lasseter como o gênio criativo a quem todos ouviam. Porém, Lasseter, do
mesmo modo que Catmull, tinha a visão de dar a necessária abertura para que
todos pudessem contribuir, nem sempre sua opção prevalecendo ao final. O outro
personagem, com direito a um capítulo (págs. 296-312) totalmente dedicado ao
relacionamento com ele – além de todo o livro em si – é Steve Jobs.
Catmull, Jobs e Lasseter |
Posso
dizer que Catmull foi responsável pelas palavras mais generosas em direção a
Jobs que alguém já escreveu. Muitas vezes retratado como uma pessoa irascível,
de difícil relacionamento, para Catmull ele era muito mais do que isso. Alguém
que o estimulava a trabalhar no limite, no seu melhor, desafiando-o a encontrar
soluções mais criativas das que a dele próprio, mas também defendendo sua
equipe com unhas e dentes (deve-se observar que ele foi o investidor de
primeira viagem na Pixar, quando ninguém acreditava no sonho dos seus gestores).
Um cara que era um estrategista, ao ponto de saber o momento certo em que Pixar
e Disney deveriam se unir, de modo a que os produtos da primeira contaminassem
de qualidade a segunda, que já estava ficando de um certo modo “arcaica” no seu
perfil de gerenciamento, associado a capacidade da Disney e seus canais de
distribuição para turbinar os produtos Pixar. Os três unidos – Catmull,
Lasseter e Jobs – prometeram ser leais uns aos outros, na medida em que
lealdade representa ser sinceros sobre os erros e acertos que estavam cometendo
e sobre a busca por soluções. E tiveram sucesso, como pudemos testemunhar.
Steve Jobs (págs. 296/297)
Hoje em dia, a
palavra gênio é muito usada – demais,
eu acho -, mas com Steve penso que ela se justifica. Contudo, quando o vi pela
primeira vez, ele frequentemente era arrogante e brusco. Essa é a parte de
Steve a respeito da qual as pessoas adoram escrever. Sei que é difícil entender
pessoas que se desviam da norma de forma tão radical, como fazia Steve, e
suspeito que focalizam seus traços mais extremos o fazem porque esses traços
são divertidos e, de certa forma, reveladores. Porém, permitir que eles dominem
a biografia de Steve é perder a história mais importante. No tempo em que
trabalhei com Steve*, ele não só ganhou a espécie de experiência prática que seria
de esperar dirigindo duas empresas dinâmicas e bem-sucedidas, mas também ficou
mais esperto a respeito de quando parar de forçar as pessoas e quando continuar
a forçá-las, se necessário, sem abusar delas. Ele tornou-se mais justo e sábio,
e sua compreensão de parceria tornou-se mais profunda – em grande parte devido
ao seu casamento (...) e seu relacionamento com os filhos que tanto amava. Essa
mudança não o levou a abandonar seu famoso compromisso com a inovação, somente solidificou-o.
Ao mesmo tempo, ele tornou-se um líder mais bondoso e autoconsciente. E penso
que a Pixar teve seu papel nesse desenvolvimento. *26 anos
Assim
sendo, o Banco de Cérebros acima apontado foi replicado, com outro nome, na
Disney – Banco de Histórias – tendo como primeiro sucesso imediato a
reformulação do projeto que veio a gerar Bolt,
o Supercão. E os canais de venda desta última incorporaram os produtos
Pixar. Mas isto são somente alguns dos pontos neste relacionamento – e na
metodologia de gerenciamento em si por eles (Catmull e Lasseter) gerada (e
aceita por Jobs, dado o seu desconhecimento do aspecto produtivo na arte da
animação). Diria que vale a pena ler o livro então pelos seguintes motivos:
lição de vida, aprendizagem de relacionamento, contextualização de um mito,
valorização da sinceridade e os bastidores da história recente do cinema
animado. Se nenhum destes aspectos o tocou, basta dizer que toda boa história,
se bem narrada e bem escrita, de maneira leve, na qual existe a demonstração do
amor pelo semelhante, vale a pena ser lida.
Princípios (págs. 313-316)
Mesmo
informando ser refratário ao estabelecimento de princípios – “Sei que quando
resumimos uma ideia complexa num slogan para imprimir numa camiseta, estamos
nos arriscando a dar a ilusão de entendimento – e no processo, de tirar da
ideia sua força” – Catmull deixou a parte final de seu livro com uma série de “pontos
de partida”. Abaixo vou elencar os 3 que mais me chamaram atenção:
·
Inteligência e
Ideias
Dê
uma boa ideia a uma equipe medíocre e ela irá estragá-la. Dê uma ideia medíocre
a uma grande equipe e ela irá corrigi-la ou oferecer uma coisa melhor. Se você
puder ter a equipe certa, então terá as ideias certas.
Quando
for contratar pessoas, dê ao potencial para crescer mais peso do que ao atual
nível de qualificação delas. O que elas serão capazes de fazer amanhã é mais
importante do que aquilo que podem fazer hoje.
Procure
sempre contratar pessoas mais inteligentes que você. Dê sempre uma chance ao
melhor, mesmo que isso possa parecer uma ameaça em potencial.
Se
há em sua organização pessoas que sentem que não têm liberdade para sugerir
ideias, você perde. Não despreze ideias de fontes inesperadas. A inspiração
pode vir, e vem, de qualquer lugar.
·
Lidar com o medo
Se
existe medo numa organização, há uma razão para isso, sua tarefa é (a)
descobrir o que o está causando, (b) entendê-lo e (c) tentar eliminá-lo.
Se
há mais verdade nos corredores do que nas reuniões, você tem um problema.
Muitos
gerentes acham que, se não forem notificados a respeito de problemas antes dos
outros, ou se forem pegos de surpresa numa reunião, é sinal de respeito.
Cresça.
A
estrutura de comunicação de uma empresa não deve refletir sua estrutura
organizacional. Todos devem poder falar com todos.
·
O papel das
mudanças e do fracasso
Mudanças
e incertezas fazem parte da vida. Nossa tarefa não é resistir a elas, mas
construir a capacidade de recuperação quando ocorrem eventos inesperados. Se
não procurar sempre descobrir aquilo que não é visto e compreender sua
natureza, você estará despreparado para liderar.
O
fracasso não é necessariamente ruim. Na verdade, ele não é ruim. É uma
consequência necessária de se fazer algo novo.
Confiar
não significa que você confia que ninguém irá estragar tudo – significa que
você confia em seus funcionários até mesmo quando eles estragam tudo.
As
pessoas responsáveis pela implantação de um plano devem receber poderes para
tomar decisões quando as coisas dão errado, mesmo antes de receberem uma aprovação.
Encontrar e corrigir problemas é tarefa de todos. Qualquer um deve poder parar
a linha de produção.