Nossos
posts normalmente têm como título o livro resenhado. Porém, como o objeto de
nossa análise serão duas obras oficiais recentes da Igreja Católica, teremos
que apresentar um texto no qual as contextualiza dentre de um cenário macro, de
modo a entender como elas se inserem neste. Ao final daremos nossa visão como
obras literárias, a depender do que entendo como, particularmente, um
instrumento de cunho religioso deveria ser – ou se propor a ser.
As
religiões possuem (ou deveriam possuir) como diretriz o alento ao espírito, à
alma ou à personalidade humana – a depender do grau de convicção de cada um a
respeito do tema. Elas surgiram justamente com este intuito. O ser humano,
quando não encontra uma saída lógica, racional, para um determinado dilema,
busca no divino as respostas que estão escondidas aos seus olhos.
A
partir desta semente as “grandes” religiões cresceram e “tiveram” que se
estruturar para a manutenção dos seus fiéis. E neste quesito talvez nenhuma
delas tenha feito da melhor forma para adentrar – pelo menos no Ocidente – com
a força e a influência que possuem hoje em dia como a Igreja Católica. É
justamente neste ponto que se deve ter um certo cuidado no discurso.
Uma
coisa é a fé, a crença num determinado discurso ou filosofia religiosa. A fé é
independente, a meu ver, da estrutura operacional que uma determinada religião
venha a apresentar. Eu ter fé na filosofia cristã, conforme ela foi apresentada
por Jesus Cristo, e que deu base à Igreja Católica e seus ritos, não significa
que eu não possa contestar alguns aspectos dessa estrutura na qual gira em
torno. Essa liberdade de contestação talvez seja o que diferencia os radicais
daqueles que apenas querem ter a vivência espiritual via Cristianismo.
À
parte a época documentada historicamente da Inquisição, quando o radicalismo
prevaleceu claramente, sempre com o intuito da manutenção não somente dos fiéis
como do poder político então gerido pela Igreja Católica junto às monarquias
europeias - teve duas versões: a medieval, nos
séculos XIII e XIV, e a feroz Inquisição moderna, concentrada em Portugal e
Espanha, que durou do século XV ao XIX[1] - o
espaço para o debate sobre seus ritos e deveres estiveram presentes de diversas
formas, ora de maneira isolada, ora gerando inclusive as chamadas Igrejas
Protestantes.
De todo modo, no mundo moderno, atual, tal entendimento se vê
suavizado, talvez pelo grande acesso à informação proporcionado pela internet e
a possibilidade de se aumentar o leque de opções a quem deseja abraçar uma fé.
A Igreja Católica entendeu que deve ter um discurso aderente ao politicamente
correto para ser atrativa às novas gerações. O que não impede a que possa
sofrer críticas. Mas como esse blog é dedicado a obras literárias, tais
críticas se servirão das duas obras a serem avaliadas.
A primeira delas
é a Carta Encíclica assinada pelo Papa Francisco: Laudato Si’ (numa tradução livre
“Louvado”) – sobre o Cuidado da Casa Comum. A edição a que tive acesso foi 4ª
reimpressão da 1ª versão, editada no Brasil pela Paulinas em 2015, contendo 200
páginas. Papa Francisco explica desde o início – ‘Laudato si’, mi’ Signore – Louvado
sejas, meu Senhor’, cantava São Francisco de Assis (pág. 3). As Encíclicas procuram,
de forma genérica, ensinar sobre um tema doutrinal
ou moral, avivar a devoção, condenar os erros ou informar os fiéis sobre
eventuais perigos para a fé. Quando tratam de questões sociais, econômicas ou
políticas, são dirigidas, normalmente, não só aos católicos mas também a todos
os homens e mulheres de boa vontade, prática iniciada pelo Papa João XXIII com
a sua encíclica ‘Pacem in terris’ (1963)[2].
O
Papa Francisco já é conhecido por sua forte pregação de cunho ideológico político
desde a época do seu bispado em Buenos Aires. Políticos argentinos foram repetidamente alvo da retórica
afiada do sacerdote, acusados por ele de não combater a pobreza e
preocuparem-se apenas em seguir no poder[3].
Jorge Mario Bergoglio - seu nome de batismo – sempre manteve hábitos simples. Morava sozinho, em um apartamento no
2º andar do edifício da arquidiocese, ao lado da Catedral de Buenos Aires, na
Praça de Maio. Fazia sua própria comida, andava de ônibus e de metrô. As
visitas às favelas de Buenos Aires eram frequentes[4].
A proximidade com o povo e suas mazelas é uma característica muito presente na
sua conduta, algo que veio a encantar a todos, propiciando o ambiente necessário
para referendá-lo como artífice de uma verdadeira revolução interna na Igreja
Católica, abrindo espaço para uma reestruturação que sofre resistências até hoje[5].
Feita
esta breve apresentação vamos à Encíclica em si. Ela discorre sobre a necessidade
de preservarmos o meio ambiente para as futuras gerações. Seria assim uma carta
“ecológica”. O planeta Terra – a “Casa Comum” do subtítulo – é objeto desse
modo de uma pregação que valendo-se dos preceitos católicos, busca conscientizar
o cidadão que ele, como cristão, tem deveres a cumprir para bem manter a casa
construída por Deus para todos. Minha visão particular: este debate é realizado
diuturnamente por outras autoridades – científicas e leigas – e todos nós já
estamos conscientes da necessidade de preservação do meio ambiente. Tenho
preferência particular em esperar que o Papa volte seus olhos em suas
Encíclicas para temas vinculados mais ao espírito. Mas entendo, pelo seu perfil
atuante, que o Papa Francisco não iria – e não irá – se furtar em tocar em
outros temas do mundo terreno, sempre ressaltando o modo como o católico pode
contribuir para uma sociedade mais igualitária e justa para todos. Não me
agrada esse viés político, mas entendo aqueles que veem esse, dada a sua
inserção junto à sociedade como Sumo Pontífice, como um baluarte necessário
para tocar as consciências de todos.
Papa Francisco Fonte: https://www.acidigital.com/ |
O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda humanidade
e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrá-la
em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de
negar a existência aos outros. (...) que significado pode ter o mandamento “não
matarás”, quando “uns vinte por cento da população mundial consomem recursos em
uma medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de
que necessitam para sobreviver” (págs. 78/79 – Laudato Si’).
Dado
ser este o perfil do Papa, e as Encíclicas entendidas como obras orientadoras
para os Bispos do mundo todo, não me espantou o viés apresentado em “Cristãos
Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade – sal da terra e luz do mundo (Mt 5,
13-14)”. Documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB - http://www.cnbb.org.br/), gerado a partir da
54ª Assembleia Geral realizada em Aparecida, São Paulo, entre 06 e 15 de Abril
de 2016, com 188 páginas, foi diretamente influenciado pela retórica e
orientações do Papa Francisco. Mais uma vez me vi frustrado na expectativa de
identificar uma ênfase na orientação espiritual dos membros do rebanho, em
favor da orientação como melhor se organizar para os trabalhos sociais da
Igreja. Se fosse somente isso, até vá lá, mas o apoio a uma inserção política
das pastorais me incomodou um pouco. Volto a dizer: entendo quem perceba isso
como uma necessidade, dada a capilaridade que os representantes eclesiásticos
têm perante a sociedade em que vivemos, podendo promover um debate enriquecedor
sobre as possibilidades de desenvolvimento dos relacionamentos humanos e em
como isso pode gerar uma comunidade melhor resolvida em relação aos seus dilemas.
Porém, meu anseio particular, ao ter acesso a tais obras, é uma orientação
espiritual.
Fonte: paulinas.org.br |
Desde os primórdios da história da salvação, com Abraão,
o chamamento de Deus, mesmo quando se dirige a uma pessoa, tem sempre em vista
o serviço a todo um povo e, por este povo, a todos os povos, em uma dinâmica
universal: “Abraão virá a ser uma nação grande e forte, e nele serão abençoadas
todas as nações da terra” (Gn 18,18) – CNBB (págs. 67/68)
Talvez
eu acredite mais que, cada um fazendo o seu melhor em prol da sociedade,
construiremos algo que pode ter um alcance muito mais elevado do que uma
revolução comunitária – parece que estou me repetindo ao já dito em posts
anteriores. Porém, abordando uma expectativa enquanto leitor e católico que
sou, as obras me decepcionaram por não me darem aquilo o que eu ansiava e que
entendo como a razão de ser das religiões – a paz espiritual. São mais uma
conclamação à luta, algo típico da Ordem Jesuíta, linha a qual o Papa Francisco
está vinculado. Por exemplo, no século XX, após o Concílio Vaticano II e do
compromisso dos Bispos da América Latina em 1968 para a "libertação"
dos povos, eles insistiram na justiça social e manifestaram em 1975 a sua
"opção preferencial pelos pobres". Os jesuítas foram sempre muito ativos
na educação, com faculdades e universidades renomadas, incluindo nos Estados
Unidos, e na mídia. O porta-voz do Vaticano, o padre Federico Lombardi, é um
jesuíta. Eles também diferem desde suas origens, no século das grandes
descobertas, por seu ardor missionário. Na América Latina, eles foram os
primeiros a distinguir evangelização católica e colonização, respeitando os
valores dos índios em suas famosas "reduções"[6].
Seriam assim os “soldados de Cristo”. Pode ser que eu tenha quisto mais paz e
menos guerra, e por isso me vi decepcionado. Pode ser.
[1]
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-inquisicao/
[2] http://arqrio.org/noticias/detalhes/3243/o-que-e-uma-enciclica
[3] http://g1.globo.com/mundo/novo-papa-francisco/noticia/2013/03/veja-o-perfil-do-argentino-jorge-mario-bergoglio-o-novo-papa-francisco-i.html
[4] https://www.ebiografia.com/papa_francisco/
[5] https://g1.globo.com/mundo/noticia/por-que-papa-francisco-esta-sofrendo-oposicao-dos-conservadores-da-igreja.ghtml
[6] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2013/03/14/interna_internacional,357056/os-jesuitas-uma-ordem-religiosa-criada-no-seculo-xvi.shtml