“(...) todas as crenças ou ideais não seriam mais que
uma ficção”
(pág. 162)
Literatura
fantástica. Essa expressão pode significar tanto o gênero ao qual uma obra se
insere – e para o qual alguns escritores latino-americanos ficaram conhecidos –
quanto um adjetivo que qualifica um determinado texto, de maneira objetiva. No
caso de “O Jogo do Anjo”, do espanhol Carlos Ruiz Zafón – Editora Objetiva –
Rio de Janeiro – 2018 – 410 páginas – ambos os casos se aplicam.
Fonte: https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-982132002-livro-o-jogo-do-anjo-carlos-ruiz-zafon-_JM |
Carlos
Ruis Zafón nos brinda, com a ambientação na Barcelona da primeira metade do
século passado, com um misto de romance, novela de terror e suspense policial,
uma prosa deliciosa de ler, com uma ironia fina e sutil que nos prende do início
ao fim. Posso até estar cometendo uma heresia, porém por vezes me lembrou os
livros de Machado de Assis lidos na época da escola.
A
estória gira em torno de David Martín, e se inicia com sua “aventura” dentro do
jornalismo, experiência frustrada pelo próprio sucesso de suas colunas, geradora
de inveja entre os colegas mais antigos, e pelo fenômeno econômico conhecido
como “contenção de despesas”. Uma vez na rua, porém sob as benesses de um amigo
que fazia as vezes de mecenas e patrono, Pedro Vidal – igualmente escritor, mas
diferentemente do protagonista, de família rica – inicia sua carreira de
escritor junto a uma editora que publica a série “Cidade Maldita”, sob um
pseudônimo.
A
partir desse ponto inicial se deslinda uma série de encontros e desencontros,
alguns de cunho amoroso com sua musa inspiradora, inalcançável a princípio,
como todo bom romance que se presa. Porém, se a qualidade do texto nos envolve e
nos aguça a curiosidade de qual será o destino do narrador, ao leitor, quando Martín
encontra um caminho que nos remete a algo parecido com o filme “A Encruzilhada”
(1986), cujo protagonista foi o conhecido Ralph “Daniel San” Macchio, as peças
começam a se juntar, espera-se o gran
finale com o diálogo com o “anjo salvador”, este não se explicita, deixando
a nós, o ensejo de ter intuído corretamente quem era o interlocutor/antagonista
que exigia tanto do jovem herói. Este “anjo salvador”, num dos diálogos com
Martín, por exemplo, faz a seguinte interpretação das religiões:
Poesia à parte, uma religião vem a ser um código moral
que se expressa através de lendas, mitos ou qualquer tipo de objeto literário,
com o objetivo de estabelecer um sistema de crenças, valores e normas que sirvam
para regular uma cultura ou uma sociedade (pág. 117).
Apesar
desta espécie de frustração – pelo não-desvendar explícito -, presente mais na
reta final, isso não interfere no fato de que a narrativa vai por caminhos
inesperados, sempre nos surpreendendo. Quando se espera que vá para a direita
vai para a esquerda e vice-versa. Quando se pensa que o futuro é seguro e
certo, ele torna-se incerto e incômodo. A moral entre o que é certo ou errado é
colocada em xeque a todo momento. A humanidade é exposta em todas as suas
fragilidades. “O ser humano acredita como respira, para sobreviver”, diz o antagonista
em outro instante (pág. 161).
Martín,
enfim, é um insistente, que persegue seu objetivo sempre com uma tenacidade
invejável, mesmo que isso signifique prejudicar sua saúde. Ama escrever, ama
sua musa, talvez mais que a si próprio, pois não percebe os descaminhos em que
se insere, muitas vezes atropelando o bom senso. Talvez a grande mensagem seja que
devemos buscar nossos objetivos, porém com serenidade, com atenção para
observar que nem sempre as oportunidades que se oferecem são o melhor caminho,
por mais “fáceis” que pareçam – muitas vezes somos defrontados com o fato de
que tomar decisões difíceis, porém corretas, seriam a melhor alternativa.
Carlos Ruiz Zafón Fonte: http://www.sacnewtech.org/carlos-ruiz-zafon/ |
Um
grande acerto do autor foi ambientar a estória no início do século passado.
Como afirmei antecipadamente, por vezes o drama se torna uma típica narrativa
de terror, mais ao estilo Bram Stocker, criador de Drácula. Conseguimos nos
sentir inseridos naquele clima noir
que tanto foi apreciado em dado momento, esperando a próxima punhalada ao virar
a esquina dentro de uma casa abandonada. Quase todos os cenários são decrépitos,
como se mal-assombrados. Não é um livro para fracos. Frustrações, tristezas,
poucas mas grandes alegrias pontuadas por diálogos extremamente divertidos,
mortes, suspense, melancolia, digo a vocês, é um livro altamente recomendável
pela grande qualidade do texto e pelo mix de emoções que nos traz.