domingo, 15 de abril de 2018

O JOGO DO ANJO


“(...) todas as crenças ou ideais não seriam mais que uma ficção” (pág. 162)

Literatura fantástica. Essa expressão pode significar tanto o gênero ao qual uma obra se insere – e para o qual alguns escritores latino-americanos ficaram conhecidos – quanto um adjetivo que qualifica um determinado texto, de maneira objetiva. No caso de “O Jogo do Anjo”, do espanhol Carlos Ruiz Zafón – Editora Objetiva – Rio de Janeiro – 2018 – 410 páginas – ambos os casos se aplicam.

Fonte: https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-982132002-livro-o-jogo-do-anjo-carlos-ruiz-zafon-_JM

Carlos Ruis Zafón nos brinda, com a ambientação na Barcelona da primeira metade do século passado, com um misto de romance, novela de terror e suspense policial, uma prosa deliciosa de ler, com uma ironia fina e sutil que nos prende do início ao fim. Posso até estar cometendo uma heresia, porém por vezes me lembrou os livros de Machado de Assis lidos na época da escola.

A estória gira em torno de David Martín, e se inicia com sua “aventura” dentro do jornalismo, experiência frustrada pelo próprio sucesso de suas colunas, geradora de inveja entre os colegas mais antigos, e pelo fenômeno econômico conhecido como “contenção de despesas”. Uma vez na rua, porém sob as benesses de um amigo que fazia as vezes de mecenas e patrono, Pedro Vidal – igualmente escritor, mas diferentemente do protagonista, de família rica – inicia sua carreira de escritor junto a uma editora que publica a série “Cidade Maldita”, sob um pseudônimo.

A partir desse ponto inicial se deslinda uma série de encontros e desencontros, alguns de cunho amoroso com sua musa inspiradora, inalcançável a princípio, como todo bom romance que se presa. Porém, se a qualidade do texto nos envolve e nos aguça a curiosidade de qual será o destino do narrador, ao leitor, quando Martín encontra um caminho que nos remete a algo parecido com o filme “A Encruzilhada” (1986), cujo protagonista foi o conhecido Ralph “Daniel San” Macchio, as peças começam a se juntar, espera-se o gran finale com o diálogo com o “anjo salvador”, este não se explicita, deixando a nós, o ensejo de ter intuído corretamente quem era o interlocutor/antagonista que exigia tanto do jovem herói. Este “anjo salvador”, num dos diálogos com Martín, por exemplo, faz a seguinte interpretação das religiões:

Poesia à parte, uma religião vem a ser um código moral que se expressa através de lendas, mitos ou qualquer tipo de objeto literário, com o objetivo de estabelecer um sistema de crenças, valores e normas que sirvam para regular uma cultura ou uma sociedade (pág. 117).

Apesar desta espécie de frustração – pelo não-desvendar explícito -, presente mais na reta final, isso não interfere no fato de que a narrativa vai por caminhos inesperados, sempre nos surpreendendo. Quando se espera que vá para a direita vai para a esquerda e vice-versa. Quando se pensa que o futuro é seguro e certo, ele torna-se incerto e incômodo. A moral entre o que é certo ou errado é colocada em xeque a todo momento. A humanidade é exposta em todas as suas fragilidades. “O ser humano acredita como respira, para sobreviver”, diz o antagonista em outro instante (pág. 161).

Martín, enfim, é um insistente, que persegue seu objetivo sempre com uma tenacidade invejável, mesmo que isso signifique prejudicar sua saúde. Ama escrever, ama sua musa, talvez mais que a si próprio, pois não percebe os descaminhos em que se insere, muitas vezes atropelando o bom senso. Talvez a grande mensagem seja que devemos buscar nossos objetivos, porém com serenidade, com atenção para observar que nem sempre as oportunidades que se oferecem são o melhor caminho, por mais “fáceis” que pareçam – muitas vezes somos defrontados com o fato de que tomar decisões difíceis, porém corretas, seriam a melhor alternativa.

Carlos Ruiz Zafón
Fonte: http://www.sacnewtech.org/carlos-ruiz-zafon/
Um grande acerto do autor foi ambientar a estória no início do século passado. Como afirmei antecipadamente, por vezes o drama se torna uma típica narrativa de terror, mais ao estilo Bram Stocker, criador de Drácula. Conseguimos nos sentir inseridos naquele clima noir que tanto foi apreciado em dado momento, esperando a próxima punhalada ao virar a esquina dentro de uma casa abandonada. Quase todos os cenários são decrépitos, como se mal-assombrados. Não é um livro para fracos. Frustrações, tristezas, poucas mas grandes alegrias pontuadas por diálogos extremamente divertidos, mortes, suspense, melancolia, digo a vocês, é um livro altamente recomendável pela grande qualidade do texto e pelo mix de emoções que nos traz.