sábado, 2 de dezembro de 2017

Religião Também se Aprende

Para os católicos em geral existe uma batalha diária sendo travada. Ela diz respeito a como justificar, além da simples manifestação de fé, paradigmas de sua religião diante de um mundo novo.

Este desafio foi enfrentado com sabedoria pelo Padre Hélio Libardi, na obra “Religião Também se Aprende – Vol. 10”, da Editora Santuário – Aparecida, SP – 2003 – 96 páginas. Apesar de ter 14 anos, mantém-se atual, abordando inúmeras dúvidas que surgem a partir do cotidiano de um leigo frente às dificuldades do dia a dia.

Dividido por áreas temáticas – casamento, comportamento, cotidiano, crer ou não crer, Deus Pai, Igreja, modernidade, pecado, práticas cristãs, santos e unção dos enfermos – e com um linguajar leve, é obra de fácil leitura para todos. Esclarece diversas questões como se estivesse conversando contigo num banco de praça.

Eu mesmo venho observando com o passar do tempo, e é notória a adaptação do discurso de alguns religiosos aos fenômenos dos tempos atuais. O próprio Papa Francisco se notabilizou por enfrentar diretamente diversas dessas questões, sem fugir de nenhuma delas.

A confusão se inicia quando as pessoas se prendem ao discurso literal da Bíblia. A Bíblia chegou a nós através dos tempos por tradição oral, até o momento em que houve a preocupação de se ter um registro escrito do que era passado adiante entre os cristãos. As mensagens e histórias ali presentes tinham que respeitar o contexto da época e o público-alvo. Por isso a profusão de metáforas existentes.

A concepção de Paraíso e o surgimento da mulher (numa sociedade machista por natureza) são os exemplos mais notórios. Estes tinham como objetivo simplificar para o povo mais simples o entendimento dos conceitos de pecado e da origem do homem, dado o pouco conhecimento científico da época. Sim, a religião católica hoje em dia convive bem com o avanço da Ciência, obviamente mantendo seu entendimento como filosofia a respeito das questões expostas pelo meio científico. Não necessariamente este entendimento é abraçado por todos.

Este é o primeiro do entendimento que para os leigos é necessário: a contextualização da mensagem. De resto, os dois principais mandamentos servem como balizadores do restante da vida católica: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei; e amar a Deus acima de todas as coisas. Imagine se as pessoas, independentemente de religião, seguissem tais preceitos? O mundo seria um lugar muito melhor para se viver, sem dúvida!

Vinculado a isto teríamos o respeito mútuo e a percepção de que existe um algo maior que todos nós, o que nos daria o devido entendimento da nossa pequenez diante das coisas. Cada problema seria dimensionado como deveria ser: como um problema a ser resolvido, e nada mais do que isso. Soluções existem para quase tudo, como diz a sabedoria popular. Portanto, porque não trabalhar isso de maneira harmônica com o próximo? Se cada um de nós tivesse isso em mente, começando por si próprio, talvez essa corrente se espalhasse e todos veríamos um círculo virtuoso se formando.

Mas, isso também não tem que ser visto como uma obrigação. O próprio conceito de culpa e pecado também é abordado pelo Padre Hélio, flexibilizando essa auto-imposição de um martírio que os católicos parecem carregar. Somos humanos, sujeitos a falhas, e temos que saber conviver com elas, tendo-as como aprendizado para não voltar a cometê-las no futuro. Mas elas também não podem ser um peso em nossas vidas! Religião também se aprende, e deve ser um alívio, e não um fardo.

Deixo com vocês, abaixo, a transcrição de uma das seções do livro para entenderem o que lhes expus acima:

Um simples olhar já é pecado? – páginas 73-74

A desorientação e a falta de formação de consciência fazem muita gente sofrer e viver atormentada. Quantas se julgam em pecado por causa de um olhar, de um pensamento.

Aqui entra o grande problema de quem forma sua consciência segundo a letra da Lei. Embora Jesus tenha dito e mostrado pelas curas feitas em sábado e pelas espigas arrancadas pelos discípulos que a Lei não salva ninguém, há quem se sinta seguro agarrando-se à letra da Lei. De fato não é fácil romper o cerco de tantos anos de catequese e de velhas listas de pecado. A Lei é excelente, mas ela é indicadora do caminho e não o próprio caminho. É isso que leva Paulo a dizer que as leis existem por causa das transgressões.

Assim acontece com os leitores distraídos do texto: “Quem olhar para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5,28). Não percebem que o que faz o pecado é a maldade.

Ver é um ato normal, não podemos andar de olhos vendados, a realidade está na nossa frente, ninguém pode induzir-nos a ser como certos santos que nem sequer olhavam para o rosto da própria mãe, se é que isso é verdade.


É certo também que devemos fazer a vigilância, porque quem não se policia, resguarda-se, vai ter uma mente fecunda em imagens e situações que facilmente os levarão ao desequilíbrio ou ao erro. (...) Uma mente mais aberta é mais saudável para todos. (...).

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A CIDADE & A CIDADE

Em 1994, a partir da chacina ocorrida em Vigário Geral que matou 21 pessoas, Zuenir Ventura escreveu o livro “Cidade Partida”. Nesta ele busca apresentar os dois lados da equação para tentar compreender a violência e seu predomínio no dia a dia da cidade. A vida nas comunidades carentes é colocada como contraponto em relação à sociedade de classes mais abastadas que se organiza em marchas pela paz.

Não tendo lido a obra, mas compreendido seu impacto e a tendo como referência desde sempre, dado ser sempre utilizada como parâmetro de um reflexo real do ponto alcançado – e que se tem mantido ou piorado com o passar dos anos – em termos da divisão da sociedade carioca entre pobres e desamparados e a classe média e média-alta, me vejo de repente à frente da leitura da obra de China Mieville – A Cidade e a Cidade – 1ª edição – São Paulo – Ed. Boitempo, 2014 – 292 páginas, exatos 20 anos depois da publicação da obra de Ventura.

Interessante notar que o contexto para o qual o autor britânico, nascido em 1972, se dedica na verdade gira em torno de temas como o terrorismo e o sectarismo de sua comunidade, talvez impulsionado por uma Europa caminhando para a extrema direita e reativa à entrada de imigrantes. Mas a semente comum de ambos é a violência, e como ela se torna fato gerador de um desenrolar de acontecimentos. No livro de Zuenir, documental, realístico, a chacina de Vigário Geral é o gatilho. No livro de Mieville – e, como bem observado pela minha filha, o nome do autor está em letras garrafais na capa, o que demonstra sua importância como elemento pensante perante o público leitor (eu nunca tinha ouvido falar dele antes, é bom que se diga) – tudo se inicia a partir do assassinato de uma mulher que é investigado pela polícia da cidade-estado de Beszél, localizada em algum lugar nos Balcãs, mais especificamente pelo inspetor Tyador Borlú, protagonista e narrador da estória fictícia.

Violência, portanto, é o pano de fundo de duas obras. Ambas tratam também da divisão das sociedades. Porém no livro de Mieville o contexto é um pouco mais complicado. E aí chego ao ponto do gancho para o que me atraiu para a obra. Não por ser um romance policial, gênero o qual aprecio, mas não seria um elemento suficiente para que eu a adquirisse. Mas sim um singelo comentário colocado na contracapa – “Um assassinato misterioso que se passa numa paisagem urbana à Blade Runner” (Shortlist – referência a um site especializado em literatura).

Blade Runner com certeza é uma referência muito forte no meu imaginário. Não tenho dúvidas de que a partir daí é que fui tentado a adquirir um livro que parecia um policial prosaico de um autor desconhecido, rotulado como esquerdista, e que “foi duplamente contemplado pelo British Fantasy Award, recebeu três vezes o Arthur C. Clarke Award e, justamente por A Cidade & a Cidade, ganhou o Hugo Award, o prêmio mais importante dedicado aos livros de ficção científica”.

Essa era a minha expectativa, então. Um livro de ficção científica, policial, que me traria de volta o sentimento de um Blade Runner lido. O grande elemento inovador e que desafia o leitor, no entanto, é algo complexo, no mínimo. A estória não se passa somente em Beszél, mas também em outra cidade-estado, Ul Qoma, sua “vizinha”. Por que as aspas? Porque ela é uma vizinha incomum. Na verdade Ul Qoma ocupa o mesmo espaço físico de Beszél. Deu um nó na cabeça? Piora ainda mais. Imagine, duas cidades no mesmo lugar. Os seus habitantes proibidos de interagir com seus “vizinhos” e sendo obrigados a “desver”, “desouvir”¹ qualquer coisa relacionada a eles, fingindo que eles não existem, mas tendo que desviar de suas pessoas e veículos enquanto transitam por áreas compartilhadas – existem áreas que não o são, o que traz um certo alívio para nossa mente.

Pior ainda, caso elas transgridam essas regras – das quais aprendem desde cedo, enquanto crianças – estão sujeitas a serem presas por conta de um poder superior à ambas as cidades denominado Brecha – enquanto lia não podia deixar de imaginá-los como os dementadores de Harry Potter. Se eles transgrediam, cometiam “brecha” e desapareciam.

A conclusão que cheguei, juntando todos estes elementos – perfil do autor, violência, ficção científica – foi que China Mieville criou uma alegoria para retratar o incômodo que os cidadãos europeus possuem com o novo mundo. Estes são obrigados a desver e desouvir os imigrantes africanos ou de outros países, não querendo uma interação com eles. A luta na estória acaba sendo travada por grupos unionistas, para os quais não tenho dúvidas de que o próprio Mieville se identificaria. Borlú, seu protagonista, apresenta sentimentos antagônicos e inconformistas com relação a esta questão, apesar de aceita-la e tentar conviver com ela.

De modo a não tornar este grito contra a injustiça social um libelo esquerdista simplório², o autor utiliza de todo o seu talento para demonstrar as cicatrizes abertas que não saram. Existe um poder – a Brecha – constituído para manter as coisas tal qual elas são. Que poder seria esse, no mundo real?


Mieville pode não gostar, mas ele é um mestre do soft power clássico – cultivar mentes e paixões com cultura. Se vocês me perguntam: afinal, o livro vale a pena? Diria que já li melhores. Mas a narrativa é tão inovadora – e confusa, para quem não tem paciência e coragem para se jogar na imaginação - que vale a pena lê-lo para estar um passo adiante na compreensão sobre o que a criatividade do ser humano pode gerar.

            1 – O livro tem sua estrutura tão complexa que foi objeto de um comentário final do tradutor Fábio Fernandes, o qual reproduzo em parte aqui:

Mais difícil do que traduzir um bom texto é traduzir um bom texto ruim – mas de propósito. (...) Narrado em primeira pessoa pelo detetive Tyador Borlú, (...) o livro é uma investigação em mais de um sentido: o primeiro, mais óbvio, sobre um crime (...) e o segundo, mais sutil, mas não menos interessante, sobre os limites e as possibilidades de um idioma. (...) Ao tradutor, coube respeitar a intenção do autor e dar o melhor de si para que uma impressão semelhante pudesse ser transmitida aos leitores brasileiros.

            2 – Além disso, a editora, abaixo de uma caricatura do Laerte sobre a retirada de muros, aponta na última página:

Publicado em 2014, quando a grande mídia mundial festeja os 25 anos da queda do Muro de Berlim – data que também marca os 20 anos do início das obras do muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México; os 16 anos do início das fundações do muro entre Ceuta e Melila, no Marrocos espanhol; os 12 anos da construção do Muro da Cisjordânia, por Israel; os 2 anos desde que foi colocado em pé o Muro de Evros, entre Grécia e Turquia; e os 164 anos da promulgação da Lei de Terras no Brasil (...).


Sociedades divididas, enfim...

sábado, 7 de outubro de 2017

A Maleta da Sra. Sinclair

A mala continuava embaixo da cama esperando que os tesouros fossem retirados, esperando que a tampa fosse aberta e o conteúdo agarrado por mãos trêmulas de anseio. Se ela estendesse a mão, poderia tocar aquele sonho que não era mais um sonho. Dessa vez, era sólido, grande e inesgotável. (pág. 29)

A Segunda Guerra Mundial já rendeu uma série de romances e histórias. Momentos de crise são particularmente férteis para a produção de dramas que nos tocam, dado que são muito próximos de uma realidade que nos parece peculiarmente particular.

A obra de estreia de Louise Walters – A Maleta da Sra. Sinclair – Ed. Planeta – 2015 – 352 págs – se enquadra perfeitamente neste perfil. Tendo trabalhado por 6 anos numa livraria, provavelmente sua experiência particular lhe municiou de diversos artifícios para moldar uma das protagonistas da obra, a personagem Roberta Pietrykowski. Justamente ela também trabalha numa livraria – com o sugestivo nome de Old & New, dado que também revendia livros usados. Como ela – Roberta – tinha a mania de vasculhar os livros que eram deixados para revenda à procura de cartas e outras lembranças esquecidas, numa delas encontra algo diretamente vinculado a sua história familiar.

Mas Roberta vive no mundo de hoje, o mundo do imediatismo. Livros, palavras escritas numa folha de papel, dificilmente se prestam à ânsia por informação imediata. Ela passa então por um grande período de investigação e angústia até encontrar a verdade. Em paralelo a isso, revê sua própria trajetória, profissional e de relacionamentos mal resolvidos, dar uma reviravolta.

Porém o livro contém mais uma protagonista. A outra seria a Sra. Sinclair, que dá o nome a obra e que era a destinatária da carta encontrada por Roberta logo no início do romance. Dado que a carta remete à uma história passada durante a Segunda Guerra, nós, leitores, fazemos uma viagem para aquela época para entender o que a motivou e que tipo de vínculo ela possui com a Srta. Pietrykowski, tantos anos depois.

Isso nos leva a ponderar: o que os escritores são, afinal, que não pescadores de histórias que ou estão em suas memórias ou os rodeiam no dia a dia? Com certeza Walters se valeu da vivência que teve como livreira. Mas não foi somente isso. Teve todo um trabalho de pesquisa que avivou sua produtividade enquanto escritora. Viver num ambiente literário ajuda a acender e manter uma chama acesa por um dia “tentar ao menos, quem sabe...”. E tentar um futuro melhor foi a razão de ser de suas duas protagonistas.


Lousie Walters
Podemos dizer que o romance é lido rapidamente, pois nos toca e nos emociona. A autora, formada em literatura, teve o orgulho de vê-lo se espalhar rapidamente por 12 países. Quando o escritor tem a oportunidade e percebe que sua mensagem chega a tantos, e sendo esta mensagem a do amor e da solidariedade, enfrentadas as dificuldades da vida – e quantas dificuldades existiram durante a Segunda Guerra!? – acredito que não pode haver maior regozijo de sua parte. Que venham outros romances, Louise Walters, que venham outras cartas, histórias, livros, vida enfim que nos envolve. Afinal, sua estreia deixou um gosto de quero mais.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Tecnologia e Educação

A crítica a uma obra literária pode, grosso modo, ser dividida em duas abordagens: o formato literário em si, no qual o autor se apoia para expor um argumento ou narrar uma estória; e a importância da matéria, objeto central do que está sendo exposto.

O primeiro tipo de crítica é mais objetivo. O leitor pode ou não ser confrontado com um texto de fácil percepção, no qual as ideias estão expostas de maneira clara e os argumentos são de uso comum. Ou então pode estar diante de um texto hermético, criado para uns poucos iniciados.

O segundo tipo de crítica tendo a ser mais subjetivo. Não necessariamente o que é importante para o leitor A o é para o leitor B. E vice-versa. Neste contexto, como definir o que é realmente importante? Existe uma saída nesse mundo baseado em premissas do politicamente correto. Há temas que a sociedade necessariamente abraça não somente como necessários, mas relevantes para o seu futuro. Tecnologia e educação se enquadrariam nessa última categoria.

Feito este breve prólogo abordarei inicialmente o tema em si. E posteriormente como ele foi apresentado. Estive em contato com ele durante uns bons meses, de leitura compassada, da tese do Dr. Jorge Rodrigues de Mendonça Fróes, denominada “Tecnologia e Educação – das máquinas à técnica, uma abordagem segundo Gilbert Simondon¹” – Editora Blucher Acadêmico – 2010 – 230 páginas.

No mundo atual se existem dois eixos que norteiam o futuro de nações inteiras esses são o desenvolvimento tecnológico e o nível educacional de suas populações. Somente países que possuam um alto grau em ambas as matérias estão fadados a compor o grupo dos chamados desenvolvidos.

Dessa forma o autor não poderia ter escolhido melhor campo em termos de impacto para sua análise. Porém, o viés por ele identificado foi num âmbito micro, qual seja, o impacto da inserção da tecnologia no sistema educacional. Óbvio que passados 7 anos da publicação e estudo realizados hoje em dia se percebe muito sedimentada esta noção em termos de cruzamento ferramental. Não existe um processo educacional que prescinda do uso das tecnologias que se encontram à disposição, quer seja dos docentes quer seja do corpo discente.

Porém, o que Fróes coloca é o quanto a máquina – o computador, a internet – se torna não somente um meio, mas também um ator nessa equação educacional. Ou seja, como esta instrumentalização influencia de fato na formação do intelecto do aluno enquanto indivíduo e estudioso. Com o advento e a consolidação da internet como o meio preferencial para pesquisas este aspecto se tornou mais claro ainda. Muitas vezes iniciamos uma busca para embasar um determinado conceito e nos vemos enredado por novas ideias e possibilidades.

[Um instrumento] antes de ser técnico, é social, existindo em função do papel que desempenha no ambiente onde é utilizado, inserido em uma ampla distribuição administrativa, política, social e mesmo erótica. (pág. 109)
 
Desta forma, a tese de Fróes joga luz sobre esta interação, pautada pela experiência do próprio autor na introdução dos computadores nas escolas de ensino primário e secundário. Ele pode ser testemunha ocular do desenvolvimento de um novo tipo de aluno e de uma nova abordagem professor-aluno. Não que isto tenha ocorrido sem resistências.

Ao falarmos de educação estamos falando de um meio extremamente conservador que busca preservar fórmulas de sucesso e aprendizado, muitas vezes perdendo as oportunidades de inovação que vêm a surgir em conjunto com um novo instrumental que se coloca à disposição. Ter essa clarividência – de que a abordagem da tecnologia tem que ser pensada e planejada levando-se em conta o que ela traz para o aprendizado que vai muito além de um meio, mas como um fator que influência a construção do pensamento – é a principal lição que nos deixa o autor. Ele cita, por exemplo, o pesquisador J. A. Valente, que por intermédio da obra “O Computador na Sociedade do Conhecimento” (2002), discorre sobre as dificuldades iniciais da introdução deste novo elemento num sistema educacional pré-estabelecido:

Embora a mudança pedagógica tenha sido o objetivo de todas as ações dos projetos de informática na educação, os resultados obtidos não foram suficientes para sensibilizar ou alterar o sistema educacional como um todo (...) principalmente pelo fato de termos subestimado as implicações das mudanças pedagógicas propostas (...): a mudança na organização da escola, na dinâmica na sala de aula, no papel do professor e dos alunos e na relação com o conhecimento. (pág. 158)

O formato

Porém, o formato adotado não foi dos mais fáceis para se passar essa mensagem. A começar por ser um meio teórico com o qual este que vos escreve não tem tanta familiaridade – a Psicologia – o que por si só já faz com que parte do método de leitura seja dedicada a aprender novos conceitos, a escrita em si se demorou muito tempo no discorrer do embasamento – algo natural para um texto originado a partir de uma tese de doutorado.

O leitor passa um grande tempo esperando a entrada da experiência prática, da inserção do que está sendo apresentado como teoria consubstanciada em fatos concretos, até mesmo para melhor compreender o que está sendo proposto. Ele se vê enredado em explicações sobre instrucionismo, construcionismo, individuação, concepção ontogenética, misoneísmo, transdução e metaestabilidade, dobra criativa, hilemorfismo, cognitivismo computacional, etc, que acaba desanimando na continuidade da leitura.

A minha dificuldade particular foi tão grande que pela primeira vez preferi adotar uma nova tática para finalizar a leitura. Passado metade do livro passei a ler os capítulos de trás para frente. Com isso busquei ter acesso imediato à conclusão, esclarecendo de uma vez por todas qual era o objetivo do livro, que para mim ainda estava obscuro. E de fato funcionou.

Os capítulos finais são mais objetivos, com mais subdivisões, o que facilita o entendimento dos conceitos expostos. Além disso, estes são mais práticos e próximos da realidade dos leigos na matéria, pois ultrapassa aspectos teóricos para abordar temas referentes à interação entre usuário-máquina, algo tão comum a todos em época de mídias sociais diversas.

Por tudo que disse acima reputo este como um dos livros de mais difícil leitura que já enfrentei. O desafio foi grande. O que me motivou é o interesse constante na compreensão de novos temas, o aspecto central da matéria para entender como a sociedade se organiza e evolui nos dias de hoje, e o meu compromisso com o próprio autor, o qual conheço pessoalmente. Desafio posto, desafio enfrentado, desafio superado. Como o próprio autor coloca:

O referido vínculo [entre cultura e técnica] está exatamente na propriedade dos objetos técnicos como transdutores de subjetividade. Esta constatação evidenciou o acerto de nossa abordagem inicial, quando associamos a produção de subjetividade à utilização de objetos técnicos, discutindo a questão da produção de subjetividade a partir das máquinas, como uma chave para o entendimento da técnica. (pág. 218).


(1)   Gilbert Simondon: filósofo, estudioso da Tecnologia e professor de Psicologia da Universidade Paris I (onde fundou o Laboratório de Psicologia Geral e de Tecnologia), (...) publicou, em 1958, Du Mode d’Existence des Objets Techniques, livro que fundamenta e consagra sua posição contrária ao conflito entre técnica e cultura (...) (pág. 39).

sábado, 24 de junho de 2017

O Último Trem para a Zona Verde

Viajar para a África é uma aventura. Mas não transportem suas mentes para savanas plácidas, repletas de girafas, elefantes, leões, etc. Todo esse estereótipo é deixado para trás quando você está numa grande cidade africana e é confrontado com a disparidade social existente. Este é o mundo que nos oferece Paul Theroux em seu “O Último Trem para a Zona Verde”, publicado pela Editora Objetiva, do Rio de Janeiro, em 2015, contendo 335 páginas de descrição do assombro e desassossego por parte do autor com relação ao futuro de toda uma geração de africanos.



“Paul Theroux é um dos mais prolíficos e consagrados escritores norte-americanos da atualidade. Viveu na Itália, no Reino Unido, em Uganda e em Cingapura”, sendo “(...) celebrado por seus relatos de viagem (...)” e “(...) atualmente divide seu tempo entre Cape Cod, na costa leste dos Estados Unidos, e o Havaí”. Quando da viagem que deu origem ao livro, que tem como subtítulo “Meu derradeiro safári africano”, Theroux já havia atingido a longeva idade de 70 anos. Ele demonstra um imenso carinho para com o continente africano, o que motivou a pôr-se na estrada mais uma vez como um andarilho, sem um plano específico além do mínimo necessário. Sua mochila, andar por terra em trens e ônibus, a partir da África do Sul, atravessando a Namíbia e chegando à Angola.

Sua preocupação com o legado cultural e humano para as gerações futuras está presente a todo momento no livro, desde à dedicatória aos netos, até aos relatos que permeiam a obra, sempre com o olhar investigativo e perscrutador do viajante que enxerga em crianças de uma escola espantadas com o passado do seu próprio povo – ainda refletido em algumas tradições que permanecem – passando por processos de iniciação em uma aldeia perdida nos rincões do interior, até aqueles jovens deixados de lado que o abordam no meio de uma rua de uma pequena cidade ou até mesmo na capital de Angola, Luanda.

Theroux denomina esta aventura como seu “derradeiro safári” por não suportar mais enxergar o desperdício com que aquela gente é tratada a partir da constatação da riqueza existente e desviada para as mãos de poucos burocratas e de uma elite que reproduz as tradições colonialistas para se perpetuar no poder na base da corrupção e encaminhamento de má fé das atividades que deveriam ser destinadas ao desenvolvimento socioeconômico dos países pelos quais passou.

Na primeira parte da sua viagem se vê a todo momento contrapondo o espanto de sul-africanos, seus conhecidos, habitantes da Cidade do Cabo, com sua proposta de jornada. Alguns não compreendem como um norte-americano, que mesmo já tendo tido sua parcela de África anteriormente ao morar em Uganda e lá lecionar, pode ambicionar chegar a Angola por terra, passando por terras devastadas pela Guerra Civil, encarando a desesperança de todo um povo para com o seu futuro.

Ao passar pela Namíbia verifica como o estabelecimento de uma espécie de “colônia alemã” em plena África trouxe a organização para uns poucos afortunados. Porque mesmo aquelas cidades tão organizadas ao estilo germânico, que repetem inclusive a arquitetura daquele país europeu, são circundadas por favelas, bolsões de pobreza na qual um apartheid social permanece estabelecido entre ricos e pobres, quase não havendo uma classe média como a concebemos aqui no Brasil.

Chegando a Angola, já inconformado com tudo que já tinha visto, alcança um novo nível de espanto, dado aquele país ser tão rico em petróleo, porém não ter a mínima compostura em apresentar para o mundo uma má distribuição de sua riqueza de tal monta que as favelas angolanas, seu interior empobrecido, empesteado por vendedores ambulantes que oferecem aos desavisados toda sorte do que entendem ser aceitável – frangos repletos de moscas no meio da estrada, que vai do nada para lugar nenhum num horizonte identificável – ser uma cena comum, visto não somente uma, mas duas ou três vezes durante sua jornada. Suas tentativas de travar diálogos em todos os países com interlocutores selecionados para apresentá-lo ao mundo real das terras às quais estava percorrendo geram relatos que se repetem em relação àqueles que são abordados por sua vez de maneira não planejada – um encontro num bar entre desconhecidos, por exemplo.

Meu desafio a Phaks [motorista que o conduziu a visitas às favelas sul-africanas] tivera o efeito de deixá-lo revoltado. Agora estava contra os criminosos, como eu estivera, batendo no volante com a palma da mão, apontando para os grafites, o lixo, os marmanjos, e os jovens ociosos diante das lojas e nas esquinas (...). (Pág. 45)

Estive em Moçambique em meados da década passada. Tudo que foi exposto nesse livro me soou conhecido. Em determinado momento, durante uma caminhada pelo centro de Maputo, pude observar os mesmos olhares de conformidade com uma pobreza, mas ao mesmo tempo de uma latente revolta com sua condição vivida. De camisa da seleção, era abordado a todo momento com muitas ofertas. “Ô brasileiro, não queres olhar alguns relógios?”, com aquele sotaque lusitano herdado da época colonial. Isso não por uma pessoa, mas a todo momento, a todo instante.

Num ônibus que parava no tráfego às vezes durante 20 minutos seguidos, e com o contínuo saltar de passageiros, pensei que deveria estar no centro de Luanda, de modo que saltei com outros passageiros. O lugar se chamava Benfica, um bairro de tráfego pesado e prédios feios, cheirando a poeira e fumaça diesel. África sim, mas também era uma versão da Chechênia, e da Coreia do Norte e do Brasil litorâneo abandonado, lugares sem aspecto salvador algum, lugares dos quais fugir. (Pág. 290)

Outro personagem sempre presente eram os chineses. Construções feias, lojistas como aqueles que vemos na 25 de Março em São Paulo, são os novos invasores da terra prometida. Theroux também os percebeu. Uma nova diáspora se origina. O eixo China-África serve a múltiplos propósitos. Abrir espaço para uma multidão sem alternativas em seu país de origem, além de impor uma nova ordem que pode ser facilitadora da exploração de um continente ainda aberto a ser desbravado em suas riquezas. Uma lástima que o mundo não perceba – ou não dê importância – ao que acontece na África. Não pelos chineses, mas pelo povo africano em si.

Os primeiros trabalhadores chineses a chegar a Angola foram criminosos, prisioneiros do sistema judicial chinês: ladrões, estupradores, dissidentes, desertores e piores, um eco da imigração inicial de Portugal. (...) Aqueles prisioneiros chineses eram a força de trabalho dos projetos de construção China-Angola – os prédios em, tom pastel feios e superdimensionados, as estradas costeiras, a dragagem do porto de águas profundas de Lobito – e depois de cumprir suas sentenças, o acordo era que permaneceriam em Angola. Presumivelmente, como os degredados portugueses, eles se alçariam à burguesia ou a uma classe superior de novos-ricos. (Pág. 271)


Se os asiáticos trouxessem em seu coração e mentes o conceito de apoiar o desenvolvimento de uma nova região, seriam certamente bem vistos e bem-vindos. Mas não parece ser esta a realidade. Theroux não suporta mais observar tal desperdício. Chega à conclusão de que existe uma geração de jovens que talvez precise de sua ajuda bem no quintal da sua casa. Seu estômago de 70 anos parece ter se decidido a não mais voltar à África. Mas fazer o possível que gerações futuras nos Estados Unidos percebam o quão importante é tratar com desvelo seu legado, não somente para sua vizinhança, mas para o mundo como um todo.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

El Fútbol a Sol y Sombra

Esta semana o mundo do futebol foi tomado por um debate em torno da atitude de um jogador. Rodrigo Caio, zagueiro do São Paulo, campeão olímpico ano passado, num clássico contra o Corinthians pela semifinal do campeonato paulista, assumiu ter pisado inadvertidamente no goleiro de sua própria equipe, fazendo com que o árbitro voltasse atrás em sua decisão de advertir o centroavante adversário, Jô, o qual ele, juiz da partida, havia imaginado ter sido o autor da suposta agressão. Não fosse pelo simples fato de que o São Paulo perdia o jogo por 2 x 0, tal seria acrescido no sentido de que o cartão amarelo uma vez recebido teria como punição imediata a suspensão do jogador corintiano da segunda partida decisiva.

Este ato de honestidade foi objeto de inúmeras avaliações, umas contra outras a favor, estando às primeiras baseadas na percepção de que a extrema competitividade vista nos campos profissionais não permitiria esta ação em detrimento da derrota de sua própria equipe. O jogador, ao não estar prejudicando o adversário, mesmo que de maneira desonesta, seria assim entendido como estando automaticamente atuando contrariamente aos interesses da sua própria equipe. Esta visão tem também o aspecto de colocar sob os holofotes o entendimento de que o futebol seria um mundo à parte àquele em que vivemos, onde as regras de comportamento entre os iguais seriam mais flexíveis em favor do objetivo imediato.

Lendo o livro do autor uruguaio Eduardo Galeano, “El Fútbol a Sol y Sombra”, numa nova edição publicada antes da Copa de 2014 pela Siglo Veintiuno Editores, de Buenos Aires (312 páginas), podemos perceber como os valores estão invertidos. Galeano é um autor de matiz esquerdista, que ficou mais conhecido pelo célebre “As Veias Abertas da América Latina”, que tem sido livro de cabeceira de inúmeros políticos que se auto identificam nesta linha. Os pensamentos de Galeano ficam mais evidentes nesse sentido por suas notas irônicas ao iniciar seções do livro “El Fútbol...” contextualizando a chegada de cada um dos Mundiais anunciando que àquela altura estava prevista a queda de Fidel Castro em Cuba, com praticamente a mesma frase: “Como era costumbre, fuentes bien informadas de Miami anunciaban la inminente caída de Fidel Castro, que iba a desplomarse en cuestión de horas”. Além disso, sua revolta quanto aos maus condutos dos dirigentes da FIFA ficam evidentes a todo momento, politicagem esta que hoje em dia é objeto de investigação por autoridades de diversos países.

O livro em si segue uma dinâmica clara. Tem em suas primeiras 60 páginas o que seriam as definições do autor para os componentes do jogo – o futebol em si, o jogador, o goleiro, o ídolo, o torcedor, e por aí vai... Passado esse período introdutório ele passa a dissertar sobre suas impressões a respeito de cada um dos Mundiais realizados, e os seus períodos intermédios, assim como dos jogadores que se destacaram a cada época, com espaço para rememorar jogadas, equipes e partidas fantásticas. Levando-se em conta que ele nasceu em 1940 e os primeiros dois torneios ocorreram em 1930 e 1934, há aí um trabalho de pesquisa inserido. Mas a partir de 1950 tais apontamentos já podem contar com seu testemunho vivo. Nesta nova edição, infelizmente, não temos a análise pós Copa de 2014. Como o autor veio a falecer em 2015, fica para a imaginação do leitor qual seria a interpretação deste para a festa ocorrida no Brasil. Porém ele não deixou de apontar os protestos que vinham ocorrendo em território nacional por conta dos gastos incorridos com a realização do campeonato – “Y eso en un Brasil donde están estallando los volcones de la indignación popular ante el derroche de las construcciones faraónicas en contraste con los fondos destinados a la salud pública y la enseñanza gratuita” (pág. 272).

A parte o homem político, presente no peso de cada palavra colocada, Galeano faz com maestria um paralelo entre o esporte em si e o seu impacto sobre os hábitos da sociedade de cada época. Demonstra uma capacidade de pesquisa peculiar, pois cita fatos futebolísticos que transcendem fronteiras, apontando para histórias ocorridas na Argentina, no Uruguai, no Brasil, na Europa, etc. Como comentarista demonstra ser mais apaixonado pelo esporte em si e por toda sua teatralidade, como uma representatividade de uma cultura muito própria.

Um livro saboroso, o qual tive o prazer de ler no seu idioma original, o que me proporcionou o sentimento de proximidade com os pensamentos do autor uruguaio. Meu único senão desportivo seria o da pouca importância que ele dá para a seleção brasileira de 1982, preferindo exaltar naquele torneio em particular o meio de campo do selecionado francês formado por Platini, Tigana, Genghini e Giresse (pág. 185). Isso para mim é um pecado mortal, o que me colocou em dúvida sobre sua percepção correta dos fatos. Ou estaria eu sendo patriótico demais sobre este aspecto?

Para encerrar, fico a me perguntar o que Galeano diria do ocorrido com Rodrigo Caio. Exaltaria ele, pelo seu lado político, a honestidade demonstrada? Ou colocaria em dúvida a necessidade de tal ato, pelo prazer da pseudo-cultura do futebol em se buscar curvas onde deveríamos ter retas – dada a sinonímia entre honestidade e retidão? Fintar as regras da convivência e do jogo faria parte do brilho e da essência do futebol? Talvez uma rápida visão premonitória sobre este aspecto seria o texto “Vale Todo” (págs. 203-206), não por acaso no intermédio entre os Mundiais da Mão de Deus de Maradona (1986) e do tri da Alemanha num pênalti duvidoso (1990). Ao constatar o vício de moral para o qual ele atribui ao desenvolvimento do futebol dito profissional termina com a seguinte citação:

El escritor Albert Camus, que había sido arquero en Argelia, no se refería al fútbol profesional cuando decía:

-          Todo lo que sé de moral se lo debo al fútbol.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

PROTEJA SUA EMOÇÃO

O diálogo está morrendo. Muitos só sabem falar de si mesmos quando estão diante de um psiquiatra ou psicólogo. Pais e filhos não cruzam suas histórias, raramente trocam experiências de vida. A família moderna está se tornando um grupo de estranhos, cada um vivendo ilhado no próprio mundo. Cinquenta por cento dos pais jamais conversaram com seus filhos sobre suas lágrimas, medos, angústias, pesadelos (pág. 8).

Na Sexta-Feira Santa celebramos o renascimento Daquele que se sacrificou por todos nós. Essa é a verdadeira expressão desta data. O renascimento tem que ser um querer para cada um, ao amanhecer de cada dia.

A obra “Proteja sua Emoção”, de Augusto Cury faz parte da coleção do famoso psicoterapeuta que leva o nome dele. São pocket books que apresentam de maneira expedita sua filosofia, ferramenta com a qual ela trabalha com seus leitores e pacientes. De um certo modo ela se justifica para auxiliar no renascimento das pessoas que tem acesso ao seu texto.

Este volume, produzido pela Gold Editora – 64 páginas – e publicado em 2014 indica principalmente que nós temos que ser atores de nossas próprias vidas, controladores das nossas emoções. Este palco que se oferece para ser trilhado a cada dia tem seus desvãos, mas é repleto também de oportunidades que se soubermos enxergar poderão ser aproveitadas.

Se você não administrar sua emoção, será um barco sem leme, dirigido por elogios, aceitações, críticas, frustrações (pág. 23).

Augusto Cury faz parte daquela leva de autores classificados na seção de Auto Ajuda nas livrarias. Área normalmente olhada com desdém pelos literatos – chamada literatura fácil, que pega as massas justamente pela isca da emoção – traz como maior força sua didática simples. Entende-se essa característica pelo fato de que, em momentos de fragilidade, o que o indivíduo mais anseia são ideias de fácil assimilação, pois ele quer encontrar uma saída imediata para aquele problema que o aflige.

Acontece que para os problemas da alma e da mente não existe fuga fácil ou rápida. Tudo faz parte de um processo de auto-conhecimento, em que visualizamos nossas limitações e nossas fortalezas, sabendo equilibrá-las, com o passar do tempo, a cada uma das situações vividas. Poucos são os que têm paciência de encará-las de frente.

Recentemente assisti um filme baseado na obra de Cury – “O Vendedor de Sonhos” (2016), com direção de Jayme Monjardim, tendo Dan Stulbach no elenco. Me chamou atenção que pelo menos 4 pessoas saíram no meio da sessão, sendo duas delas senhoras de idade que praguejavam quanto ao que estava sendo exposto na película. A estória gira em torno de um psiquiatra que queria se matar e se vê demovido da ideia, para passar a enxergar a vida de outro modo, por um mendigo que se presta a conversar com ele, mendigo este que tem uma vida pregressa repleta de ensinamentos.

O que fez com que as pessoas saíssem do cinema? A qualidade do filme. Certamente era uma produção simples, mas não pior que muitas outras que vemos por aí. Acredito mais pelo fato dela expor, sem filtros, mensagens que incomodam, fatos que alguns preferem esconder sobre si mesmos.

Uma pessoa madura não dá as costas para a dor, mas a enfrenta com dignidade (pág. 46).

A literatura de Cury serve a este propósito – abrir caminhos para quem está disposto a trilhá-los. É de excelência? É única? Está no Santo Graal da literatura? Nada disso. Mas no dia de hoje celebramos Aquele que justamente pelas suas simples palavras nos fez ver que a vida é muito mais do que o material, é bela diante das vicissitudes, que é possível renascer e se tornar mais forte tendo a confiança Nele. Não precisamos de nada rebuscado. Precisamos de mais simplicidade em nossas vidas.


Para quem o Mestre dos mestres declarou sua dor? Para três alunos que em seguida o decepcionariam ao máximo: Pedro, Tiago e João. Pedro o negaria dramaticamente, e Tiago e João o abandonariam no momento em que Jesus mais precisaria da presença deles. Foi para essas pessoas que o frustrariam muitíssimo que o professor teve coragem de se abrir e mais coragem ainda de ensinar as mais importantes lições para protegerem sua emoção (págs. 58-59).

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

OS FATOS

Eu pensava ser uma espécie de autoridade da vida judaica cotidiana, com sua tendência a satirizar a si mesma e à comédia exagerada, e por muito tempo continuei me sentindo tão perplexo em privado quanto resistente em público, quando confrontando com judeus provocadores (pág. 134).

Para alguém que se orgulha de mergulhar fundo na literatura, de ser um rato de livrarias, parece meio vergonhoso comprar um livro por engano. Mas foi justamente isso que aconteceu comigo.

Interessado na biografia de Philip K. Dick, autor de, entre outras estórias, romances que deram origem às obras cinematográficas de scifi mais impactantes no último século – por exemplo, Blade Runner e Minority Report, só para ficar em duas – acabei comprando a autobiografia de um escritor e romancista norte-americano, o judeu Philip Roth. Agora, observem com atenção um aspecto. Acrescentei ao nome dele a alcunha de “o judeu”. Isso, em dias que devemos buscar ao máximo a tolerância, parece um disparate sem fim. Mas logo vocês entenderão que tem um motivo.

Cometido o erro me vi diante do seguinte dilema: ler ou não ler a história da vida de um autor do qual eu nunca tinha ouvido falar – mea culpa – ou buscar trocar o livro por outro que me parecesse interessante? Como sou curioso, resolvi explorar aquele mundo do qual eu não tinha a mínima ideia de onde iria me levar.

Me deparei, então, com a história típica de um menino norte-americano que busca, seguindo o padrão do american way of life, triunfar na vida. Isso significa subir um degrau na história familiar a partir da ascensão via universidade para uma carreira. O adendo é que ele estava inserido numa comunidade judaica, o que por si só levantava barreiras em seu entorno. Ou seja, por mais que se sentisse um americano típico, ele se viu obrigado a enfrentar e sobrepujar a estampa de ser judeu para se inserir no macrocosmo de oportunidades que a vida tinha para lhe oferecer.

Eu não conhecia nenhuma criança cuja família tivesse sido dividida por um divórcio. Fora das revistas de cinema e das manchetes dos jornais sensacionalistas, isso não existia, e certamente não na nossa comunidade judaica. Judeus não se divorciavam – não porque o divórcio fosse proibido pela lei judaica, mas porque eles eram assim. Se os pais judeus não chegavam em casa bêbados e batiam em suas mulheres – e em nossa vizinhança, onde para mim só viviam judeus, eu nunca soube de nenhum que tivesse agido dessa maneira -, isso também se devia ao fato de eles serem assim. Na nossa tradição, a família judia era um abrigo inviolável contra qualquer tipo de ameaça, desde o isolamento pessoal até a hostilidade dos góis. Apesar de eventuais atritos e disputas internas, dava-se como certo seu laço indissolúvel. Ouve, Israel, a família é Deus, a família é Uma (pág. 20).

Obviamente isto elevou à décima potência – e acho que todos nós ao reavaliarmos nossas vidas tendemos a superdimensionar cada passo, cada decisão tomada – a importância das escolhas, cada uma delas, na jornada seguida. Como todo garoto essas escolhas estão vinculadas – ou são etapas marcadas – por cada um dos seus relacionamentos amorosos e como eles influenciaram sua trajetória.

Isto posto, a obra “Os Fatos – a autobiografia de um romancista”, de Philip Roth – Editora Companhia das Letras – 2016, com 206 páginas – apresenta o caminho trilhado por este jovem rapaz e seu enfrentamento às tradições judaicas sem delas desmerecê-las ou mesmo desgostá-las. Mas, para isso, ele pontua suas escolhas amorosas como um caminho para sua inserção no mundo exterior, ao “preferir” companhias femininas externas a ele. Mais do que isso, grande parte do livro trata de como foi seu plano de inserção e fuga de um relacionamento que o escravizou, mesmo após terminado, e nesse sentido nos leva a refletir o quanto vale a pena para nós nos submetermos a algo em prol de um objetivo.

“(...) depois de ler todos os tipos de livros e devido à minha experiência, os homens têm um pouco de medo das mulheres. E por isso se comportam do jeito que se comportam. Claro que muitos não têm medo de mulheres individualmente, e talvez muitos não tenham medo de mulher nenhuma. Mas pela minha experiência, a maioria dos homens tem” – fala da personagem Maria Zuckerman – págs. 201-202.

Para tanto ele se utiliza de um subterfúgio: faz contraponto com um de seus principais personagens. Num diálogo entabulado com Nathan Zuckerman, também judeu, também escritor, seu alter-ego de inúmeros livros, ele sai do conforto da proteção da biografia e solta as amarras para que seja confrontado com os seus maiores medos. Deixa de ser protagonista da própria história e confirma a tese de seu personagem – ou seja, a sua própria – na qual aponta que os ficcionistas precisam de suas estórias para tratar de suas neuroses e de seus dilemas. Através de seus personagens, assim, empreendem uma verdadeira catarse de suas questões. Tendo a concordar com tal abordagem.

O livro desta forma não apresenta grandes emoções. Se vê travestido de uma história comum, de um rapaz norte-americano com suas típicas atribulações durante a vida – iniciação sexual, educação, carreira, casamento, liberdade, etc. Essas se potencializam porque vêm acompanhadas de relacionamentos problemáticos e a religiosidade judaica e suas tradições a compeli-las para um caminho não tão bem entendido a princípio pelo autor. Interessante observar que o estereótipo judaico parece ser o nascedouro dos grandes debates humanos. Ou seria uma mera coincidência o fato de Freud ser judeu? Ou de Woody Allen ter sua capacidade enquanto cineasta estar calcada em grande parte na sua habilidade para investigar os grandes porquês da humanidade através de sua obra? Perguntem-se, cada um de vocês, o que seria da arte se não fossem os judeus?



domingo, 29 de janeiro de 2017

Pensar Bem Nos Faz Bem

Unanimidades são difíceis de encontrar. Certamente alguém não deve gostar dele. Mas eu ainda não encontrei. Estou falando do professor e filósofo Mario Sergio Cortella. “Conhecido pelas suas inúmeras palestras, participações em debates e em programas no rádio e na TV, nesta obra faz este provocativo convite: pensar grandes temas a partir de pequenas reflexões” – trecho da contracapa.

A obra a qual será objeto de nossa resenha é justamente “Pensar bem nos faz bem!”, volume 4 de uma coleção originada a partir dos comentários do autor na coluna Academia CBN, apresentada em rede nacional entre os anos de 2013 e 2014. A editora responsável foi a Vozes, de Petrópolis, Rio de Janeiro, tendo publicado tais textos no ano de 2015, sendo este volume especificamente composto de 136 páginas.

A linguagem apresentada por Cortella, como de praxe, apesar da erudição de informações com as quais ele permeia seu discurso, é de fácil entendimento. Cada um dos textos são curtas digressões sobre temas vários, voltados principalmente para as atitudes humanas perante dilemas existenciais ou simples problemas do cotidiano. Seria como pequenas homilias sobre o bem viver – e de que modo este vem a ser constituído.

O que me atraiu no volume 4 – adquirido na pequena loja dos beneditinos junto à igreja de São Bento, em Recife, Pernambuco – foi justamente o sub-título: vivência familiar, vivência profissional, vivência intelectual e vivência moral. Os quatro aspectos são de grande interesse para mim, e fiquei interessado em conhecer a abordagem específica do autor para cada um dos temas.

Nesse ínterim, me decepcionou que o livro não fosse dividido por capítulos ou seções temáticas, mas que seguisse livremente o curso das ponderações, sem uma ordem pré-concebida. Acredito que isso dificulta a identificação de temas de interesse, numa obra que poderia servir de base para inúmeros clubes de debates. A intenção, segundo os editores, foi de “preservar a característica que a coluna tem no cotidiano”, ou seja, o ouvinte não conhecia de antemão o tema que seria abordado.

Cortella surgiu para mim, salvo engano, a partir de uma entrevista dada num talk-show, o qual infelizmente não me recordo quando e em que canal de televisão. Lembro-me apenas que ele me impactou positivamente por sua interpretação lúcida sobre as diatribes políticas por trás da indicação/eleição de um papa, fruto talvez de sua formação enquanto cristão nas hostes religiosas. Nascido em Londrina/PR em 05 de Março de 1954, filósofo e escritor, com Mestrado e Doutorado em Educação, professor-titular da PUC-SP (na qual atuou por 35 anos, 1977/2012), com docência e pesquisa na Pós-Graduação em Educação: Currículo (1997/2012) e no Departamento de Teologia e Ciências da Religião (1977/2007); é professor-convidado da Fundação Dom Cabral (desde 1997) e ensinou no GVpec da FGV-SP (1998/2010). Foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo (1991-1992) [Fonte: www.ferrazcortella.com.br].

A partir daí passei a observar com atenção suas aparições. Em tempos de mídias sociais duas delas ganharam destaque para mim. Um vídeo no YouTube de uma palestra dada a funcionários do Banco do Brasil, salvo engano, no qual ele aponta a pequenez da pergunta “Você sabe com quem está falando?”. A outra quando ele disserta sobre atitudes éticas, definindo-as como aquelas nas quais são respeitadas três condições: para empreender um ato deve-se observar se o autor deve fazê-lo; quer fazê-lo; e pode fazê-lo. Se uma dessas três condições não for respeitada, você não está diante de uma atitude ética.

Enfim, um livro curto, de textos curtos, para ser lido vagarosamente enquanto se espera o tempo passar. Assim sendo, é a deliciosa definição de um bom... passatempo. Que nos faz pensar. E pensar, nos faz bem!

Pequenas pílulas

Esforço Criativo – “Não é sentar e aguardar, não é repousar e, então, seremos possuídos por um momento de grande movimento cerebral. Não é só isso, é colocar-se no esforço” (pág. 54).

Rabugice – “Diz Deus para Mefistófeles: ‘Nada mais que dizer-me tens, só por queixar-te sempre vens, nada na Terra achas direito enfim’. Até a divindade chama a atenção de Mefistófeles por essa conduta rabugenta. (...) Nem Deus resistiu, na obra de Goethe” (pág. 60).

Discordância – “Sabemos: algo inerente à vitalidade republicana é a capacidade de acolher a discordância, a oposição respeitosa, a discussão que fica fora do pensamento único” (pág. 62).

Autoimplacabilidade – “Ser rigoroso demais consigo mesmo é considerar que aquilo que faz não é o jeito correto de fazer, quando, eventualmente, até o é” (pág. 71).

Propósito – “(...) pessoas que agem com uma convicção, com um propósito, com uma finalidade de causa que ajuda a elevar; elas têm um poder mais forte do que apenas aquelas que têm a ideia do autobenefício, da autoapropriação” (pág. 74).

Personalidade – “Há uma frase antiga, que circula por aí, que diz: ‘Não me envergonho dos homens que já fui’. Ela aponta a possibilidade de nos olharmos na nossa condição de termos sido de outros modos” (pág. 75).

Ocasião Propícia – “(...) o momento em que se junta a ação com a ocasião” (pág. 78).

Um novo tempo – “Quando a decisão pelo carpe diem nos agrada, não deveria ser um chamado ao desvario, mas sim a ideia de não deixar de pegar o que o dia oferece” (pág. 79).

Vaidade – “(...) ser lembrado para uma atividade, ser elogiado por algo ou ser elevado na condição criada acaba ganhando uma marca vaidosa, muito mais pelo fato de se supor merecedor daquilo do que pelo conteúdo que aquilo carrega” (pág. 83).

Acomodação – “A resignação mata a própria dignidade, porque tem, por princípio, a suposição de que nada pode ser feito ou porque falta coragem para fazê-lo” (pág. 93).

Partilha – “(...) a expressão ‘cada um é responsável por todos’ é indicadora de uma sanidade de vida que impeça que sejamos prisioneiros de uma tolice imensa, que é o egoísmo’” (pág. 97).


Expectativas enganosas – “(...) o número de coisas que nos assustam é muito maior do que aquilo que concretamente poderá nos fazer mal. Ser capaz de distinguir, de vislumbrar a diferença entre uma e outra, é algo que expressa inteligência” (pág. 111).