domingo, 23 de março de 2014

Relações Internacionais Contemporâneas: Visões Brasileiras

Vivi um grande dilema para avaliar a obra “Relações Internacionais Contemporâneas: Visões Brasileiras”, compêndio de artigos organizado pelos Profs. Carlos Maurício Ardissone e André Luis Prudência Sena, publicado pela Editora Appris, de Curitiba, no ano de 2013. A obra contém 329 páginas, é organizada por um amigo pessoal – Carlos Maurício, também autor de um dos artigos – e, além disso, tem um texto da minha lavra. Ou seja, como analisar algo com impessoalidade sendo tão pessoal?



Buscando ser ético e ao mesmo tempo não fugir da missão que me auto foi imposta ao criar o Proximideas, resolvi encarar o desafio com a seguinte estratégia – apontando para vocês o que são os problemas enfrentados por organizadores de obras coletivas, como é o caso. André e Carlos Maurício, quase que com certeza, envoltos nas diversas temáticas que dizem respeito às Relações Internacionais, tentaram ser o mais plurais possíveis, com o objetivo de alcançar toda a gama dos principais temas com que discutem corriqueiramente com seus pares do meio acadêmico.

Tal fato se percebe pela distribuição de áreas temáticas exposta no livro:

Ø  Ciência Política e Teoria das Relações Internacionais (2 artigos);                        Carlos Maurício Ardissone
Ø  Comércio Internacional (2 artigos);
Ø  Segurança Internacional (3 artigos);
Ø  Integração Regional e Direito Comunitário (2 artigos);
Ø  Temas da Agenda Internacional Contemporânea (2 artigos);
Ø  Estudos de Nações (3 artigos);
Ø  Políticas Públicas e Relações Internacionais (1 artigo).                             

     

Poderia se depreender a partir da distribuição quantitativa de textos que os aspectos vinculados à Segurança Internacional e Estudos de Nações teriam maior relevo. A meu ver não foi esse o caso – que pode de toda forma ser desmentido pelos organizadores, mas aqui vai o meu olhar externo. Acredito que o maior volume de produções em relação a estes temas tenha colaborado para a necessidade de serem incorporados em maior quantidade à obra. O que não necessariamente significa dizer que são ou não são mais valiosos que os outros temas abordados.


  André L. P. Sena
É claro que, por exemplo, no meu caso específico, em que colaborei com a última seção – Políticas Públicas e Relações Internacionais – senti falta de um diálogo com uma outra experiência que não a minha exposta. Mas isso não diminui o tema. Por outro lado, em Estudos de Nações, André Luis Prudêncio Sena, um dos organizadores e autor direto do artigo denominado “Povo Palestino: uma Identidade Nacional em Construção” (275-284), fez muito mais um libelo, juntando poesia e política, em favor da análise de um processo – e não de seu resultado, pois não podemos dizer que a questão Palestina se encontra “resolvida” – do que necessariamente fez um artigo dito “científico”. E nem mesmo por isso também o valor do texto pode ser diminuído.

Analisando com calma cada uma das seções da obra, posso lhes dar minhas seguintes impressões:

Ø          A primeira - Ciência Política e Teoria das Relações Internacionais - foi extremamente beneficiada pelo texto de Amado Cervo, “Conceitos em Relações Internacionais” (17-38), verdadeira base para todos que querem se aprofundar no campo dos grandes debates teóricos de RI – “Existem três paradigmas de Estado, afirma: o hobbesiano, que vê os outros como inimigos, o lockeano, que os vê como rivais, e o kantiano, que os vê como amigos” (1);
Ø         Na seção relativa à Comércio Internacional por vezes o jargão jurídico prejudica a leitura, mas se faz necessário para alcançar um público específico. Talvez o texto de Mirna Larissa Wachhotz – “As Relações Brasil-China: o Caso Etanol” (75-98) pudesse ser melhor aproveitado numa obra totalmente voltada para uma análise do grande Dragão Asiático, mas pelo equilíbrio dos artigos entende-se sua presença neste ponto;
Ø      Na seção sobre Segurança Internacional ganha destaque o artigo “A Pretensão Brasileira por uma Cadeira Permanente no Conselho de Segurança da Onu”, de Fabio Koifman (145-184), grande levantamento histórico da aludida pretensão (2);
Ø         Em Integração Regional e Direito Comunitário fica clara a pretensão dos organizadores em expor duas experiências distintas – o tal diálogo necessário, que apontei acima como algo ausente na última seção. Seria esta, também, mais uma seção voltada mais para os amantes do Direito. Talvez a formação advocatícia de Carlos Maurício tenha contribuído para tal característica;
Ø         Em Temas da Agenda Internacional Contemporânea chama atenção particularmente o artigo de Lauro Parente, “Relações Internacionais num Mundo Midiatizado”, contextualizando a criação dos grandes conglomerados internacionais e sua agenda formadora de opinião, algo às vezes esquecido nesse mundo inundado de informações via internet;
Ø        Por último, em Estudos de Nações, os três países que serviram de pauta – Palestina, Paraguai e Angola – têm suas histórias particulares de luta por melhores condições de vida para suas populações. Porém, talvez fosse interessante ter textos sobre outros grupos de países, representantes daqueles ditos “desenvolvidos”. Porém, dado o limite de uma obra, e ser este um campo que poderia gerar milhares de livros, se entende como operacionalmente necessário um viés de escolha. E por que não privilegiar os não comumente privilegiados?

Obviamente não posso analisar a seção que consta apenas do meu próprio artigo, além do que já comentei acima. Feitas estas considerações, posso dizer que como obra introdutória o livro serve para que os estudantes de RI possam ter uma noção do quão vasto é o mundo que têm a sua frente, a grande variedade de escolhas e caminhos que poderão eleger. Tendo em vista isso, podemos dizer que os organizadores foram bem sucedidos em seu intento. Porém, sem dúvida, não é uma obra para leigos.

    1. Referências a “Thomas Hobbes (1588-1679) foi teórico político, filósofo e matemático inglês. Sua obra mais evidente é ‘Leviatã’, cuja ideia central era a defesa do absolutismo e a elaboração da tese do contrato social. Hobbes viveu na mesma época que outro teórico político, John Locke [1632-1704], que era defensor dos princípios do liberalismo, ao passo que Hobbes pregava um governo centralizador. Fonte: http://www.e-biografias.net/thomas_hobbes/ . Já Immanuel Kant [1724-1804] buscou fundamentar na razão os princípios gerais da ação humana, elaborando as bases de toda a ética moderna. Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/immanuel-kant.jhtm

     2. Acho tal pretensão ilusória. Em que pese o bom senso dizer que o Conselho de Segurança das Nações Unidas não ser mais representativo do mundo plural em que vivemos no que diz respeito a sua composição de membros permanentes, estes criarão toda ordem de obstáculos para manter o seu poder. E sua influência econômica somente facilitará essa tarefa. Uma ilusão, enfim, imaginar que isso um dia seja mudado. Seria necessária uma hecatombe para isso ocorrer, algo que nenhum de nós deseja. Em tempos de Criméia, é bom que isso seja dito.

segunda-feira, 3 de março de 2014

O Drible

A indústria do entretenimento cunhou um grupo de produções para o cinema voltadas para o público dito feminino como “água com açúcar”. Seriam aquelas comédias românticas, em que o casal, em meio a um roteiro lotado de desencontros, com cenas hilárias, ao final do filme se reúne e vivem felizes para sempre – pelo menos até uma possível continuação. Porém, o livro o qual vamos dissecar - “O Drible”, de Sérgio Rodrigues – Ed. Companhia das Letras – 2013 – 218 págs. - é a antítese total do que falamos acima. Pode ser conceituado como um livro para machos.

Sergio Rodrigues

“O Drible” retrata a tentativa, tempestuosa, de reatamento de relações entre um pai e um filho afastados há mais de 20 anos. O pai, um ex-cronista esportivo, obcecado por futebol, encontra-se nas últimas. O filho, revisor de livros de auto-ajuda, em meio a sua auto-comiseração, não consegue perdoar o pai em relação a uma infância e juventude doídas. Contando desta forma parece mais um grande dramalhão mexicano. Porém o modo como a estória é conduzida por Sérgio Rodrigues requer um olhar – e um conhecimento – mais afeito aos amantes do futebol, pelas referências colocadas.

Fora este aspecto, ainda temos aquele ar de revisão das modas e costumes dos anos 50 e 60, onde o machismo na sua perversa face tem toda a sua força moldada no linguajar que traz a mulher como um ser-objeto dos desejos dos homens, que “passam a régua” em todas aquelas que demonstram o mínimo interesse. Tal elo a ligar pai e filho, além dos seus personagens coadjuvantes – mas nem tanto, como Peralvo, aquele que seria maior que o Pelé – traz em seu bojo o segredo escondido a sete-chaves, que só fica claro nas últimas vinte páginas do livro.
 
[Neto – o filho, no caso] “Orgulhava-se de ter um método – o Método – e de atingir taxas de sucesso razoáveis para um cara que não era bonito, embora não fosse feio. O Método era um passo a passo de olhares demorados, simpatia, elogios, dedos se roçando ao pegar o comprovante do cartão de crédito, dia após dia, sem pressa, para dar àquelas caixas de supermercado e atendentes de café com metade da sua idade tempo de entender que ali estava um homem-feito de classe média que (...) podia lhes abrir (...) as portas de um mundo (...)” – Pág. 67.

O suspense bem tramado pelo autor prende o leitor com maestria, em que pese por vezes nos perdermos, junto com o personagem central, nos devaneios que ora atiram para a nascente ditadura, ora para a imagem de fantasmas futebolísticos que se entrechocam tentando explicar o porquê das coisas. Faz parte da trama. Uma abordagem mais direta talvez secaria a fonte cedo demais do que se estava por apresentar.

De toda forma, o livro se apresenta como algo de difícil deglutição pelo sexo feminino, podendo, portanto ter dificuldades para alcançar esse naco de público, em que pese o tom novelesco que por vezes assume. Não consigo imaginar uma menina que não se entedie com os longos trechos dedicados aos paralelismos futebolísticos – até mesmo por desconhecimento histórico dos fatos ali discorridos. Por outro lado, para aqueles fascinados pelo esporte bretão – com ou sem apelos dúbios – é um livro que satisfaz plenamente. Mas é um livro para fortes, pois fortes são as tintas carregadas com que se apresentam o futebol, o ambiente jornalístico, a paixão, a traição, o sexo, as drogas, a política, a vingança que atravessam os anos – da década de 50 até os dias de hoje. Que a partida se inicie para aqueles que têm coragem.

OBS1 – Sensacional a passagem em que Murilo filho (o pai, no caso) relaciona a decadência do futebol com a decadência do rádio como meio maior de transmissão do jogo – “E como obrigar a narração radiofônica a ficar sóbria estava fora de questão, restava reformar a realidade. Foi assim que o futebol brasileiro virou o que é: em grande parte por causa do esforço sobre-humano que os jogadores tiveram que fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam. (...) A televisão é um veículo desprovido de imaginação que condena as peladas chinfrins a serem só peladas chinfrins, nada mais que peladas chinfrins (...)” – Págs. 61/62.

OBS2 – O racismo, tema que volta e meia surge nos campos de futebol mundo afora, também é tratado como um pano de fundo da estória contada, atingindo a tudo e a todos os personagens, como a demonstrar a hipocrisia da sociedade brasileira em relação ao assunto. Em dado momento Murilo Filho, o pai, “reagia contando às gargalhadas a história de Robson, precursor de Michael Jackson, um jogador negro do Fluminense que ao ser entrevistado por Mario Filho [jornalista, irmão de Nélson Rodrigues, e que dá nome ao estádio mais conhecido como Maracanã] sobre a existência de preconceito racial no futebol confirmou tudo dizendo: ‘Olha, seu Mario, eu já fui preto e sei o que é isso’”. (Pág. 155).