A
indústria do entretenimento cunhou um grupo de produções para o cinema voltadas
para o público dito feminino como “água com açúcar”. Seriam aquelas comédias
românticas, em que o casal, em meio a um roteiro lotado de desencontros, com
cenas hilárias, ao final do filme se reúne e vivem felizes para sempre – pelo menos
até uma possível continuação. Porém, o livro o qual vamos dissecar - “O Drible”,
de Sérgio Rodrigues – Ed. Companhia das Letras – 2013 – 218 págs. - é a
antítese total do que falamos acima. Pode ser conceituado como um livro para
machos.
“O
Drible” retrata a tentativa, tempestuosa, de reatamento de relações entre um
pai e um filho afastados há mais de 20 anos. O pai, um ex-cronista esportivo,
obcecado por futebol, encontra-se nas últimas. O filho, revisor de livros de
auto-ajuda, em meio a sua auto-comiseração, não consegue perdoar o pai em
relação a uma infância e juventude doídas. Contando desta forma parece mais um
grande dramalhão mexicano. Porém o modo como a estória é conduzida por Sérgio
Rodrigues requer um olhar – e um conhecimento – mais afeito aos amantes do
futebol, pelas referências colocadas.
Fora
este aspecto, ainda temos aquele ar de revisão das modas e costumes dos anos 50
e 60, onde o machismo na sua perversa face tem toda a sua força moldada no
linguajar que traz a mulher como um ser-objeto dos desejos dos homens, que “passam
a régua” em todas aquelas que demonstram o mínimo interesse. Tal elo a ligar
pai e filho, além dos seus personagens coadjuvantes – mas nem tanto, como
Peralvo, aquele que seria maior que o Pelé – traz em seu bojo o segredo
escondido a sete-chaves, que só fica claro nas últimas vinte páginas do livro.
[Neto – o filho,
no caso] “Orgulhava-se de ter um método – o Método – e de atingir taxas de
sucesso razoáveis para um cara que não era bonito, embora não fosse feio. O
Método era um passo a passo de olhares demorados, simpatia, elogios, dedos se
roçando ao pegar o comprovante do cartão de crédito, dia após dia, sem pressa,
para dar àquelas caixas de supermercado e atendentes de café com metade da sua
idade tempo de entender que ali estava um homem-feito de classe média que (...)
podia lhes abrir (...) as portas de um mundo (...)” – Pág. 67.
O
suspense bem tramado pelo autor prende o leitor com maestria, em que pese por
vezes nos perdermos, junto com o personagem central, nos devaneios que ora
atiram para a nascente ditadura, ora para a imagem de fantasmas futebolísticos
que se entrechocam tentando explicar o porquê das coisas. Faz parte da trama.
Uma abordagem mais direta talvez secaria a fonte cedo demais do que se estava
por apresentar.
De
toda forma, o livro se apresenta como algo de difícil deglutição pelo sexo
feminino, podendo, portanto ter dificuldades para alcançar esse naco de
público, em que pese o tom novelesco que por vezes assume. Não consigo imaginar
uma menina que não se entedie com os longos trechos dedicados aos paralelismos
futebolísticos – até mesmo por desconhecimento histórico dos fatos ali
discorridos. Por outro lado, para aqueles fascinados pelo esporte bretão – com ou
sem apelos dúbios – é um livro que satisfaz plenamente. Mas é um livro para
fortes, pois fortes são as tintas carregadas com que se apresentam o futebol, o
ambiente jornalístico, a paixão, a traição, o sexo, as drogas, a política, a
vingança que atravessam os anos – da década de 50 até os dias de hoje. Que a
partida se inicie para aqueles que têm coragem.
OBS1 –
Sensacional a passagem em que Murilo filho (o pai, no caso) relaciona a decadência
do futebol com a decadência do rádio como meio maior de transmissão do jogo – “E
como obrigar a narração radiofônica a ficar sóbria estava fora de questão,
restava reformar a realidade. Foi assim que o futebol brasileiro virou o que é:
em grande parte por causa do esforço sobre-humano que os jogadores tiveram que
fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam. (...) A
televisão é um veículo desprovido de imaginação que condena as peladas
chinfrins a serem só peladas chinfrins, nada mais que peladas chinfrins (...)” –
Págs. 61/62.
OBS2 – O racismo,
tema que volta e meia surge nos campos de futebol mundo afora, também é tratado
como um pano de fundo da estória contada, atingindo a tudo e a todos os
personagens, como a demonstrar a hipocrisia da sociedade brasileira em relação
ao assunto. Em dado momento Murilo Filho, o pai, “reagia contando às gargalhadas a história de Robson, precursor de
Michael Jackson, um jogador negro do Fluminense que ao ser entrevistado por
Mario Filho [jornalista, irmão de Nélson Rodrigues, e que dá nome ao
estádio mais conhecido como Maracanã] sobre
a existência de preconceito racial no futebol confirmou tudo dizendo: ‘Olha,
seu Mario, eu já fui preto e sei o que é isso’”. (Pág. 155).
Sobre este livro, me lembro de um comentário do Tostão. Para quem chegou agora, Tostão foi um craque mineiro, brilhou na seleção de 70 e, além de médico, escreve muito bem. É talvez, hoje, a mente mais brilhante entre os craques daquela geração. Pois bem, Tostão disse que este livro é o que de melhor a literatura já produziu inspirada no futebol. Disse também que seu sonho seria tê-lo escrito.
ResponderExcluirComentário original de Tostão, presente na contra-capa do livro: "Faltava à literatura brasileira um grande romance como este, que perpassa pela história do futebol. É espetacular a descrição do drible de Pelé no goleiro Mazurkiewicz, do Uruguai, na Copa de 1970. É o livro que eu gostaria de ter escrito".
ExcluirOi Leo. Gostei muito da sua análise. De fato, não é um livro fácil para mulheres, a não ser para aquelas que gostem muito de futebol e que conhecem as referências históricas abordadas. Pode ser tornar meio sacal para as que não se interessam pelo assunto. Gostei muito também das referências sobre a cultura pop e do diálogo do Neto com o amigo Maxwell Start que menospreza a importância daquela, apesar de viver dela, com sua loja de quinquilharias. Quanto ao título, "O Drible", como bom resenhista, sei que guardou o melhor para quem for ler e quiser descobrir a qual drible que a história verdadeiramente se refere. O final surpreende e o leitor se vê sendo "vítima" de uma finta inesperada por parte do autor. P.s: em tempo, estou lendo "Esquerda Caviar" e assim que terminar passo para "A Morte do Almirante".
ResponderExcluirMaxwell Smart, amigo de Neto, protagonista, em diálogo com o mesmo sobre o Pop e o seu (não) valor, conforme citado pelo nobre Carlos Maurício: "O que tem história é a arte. O pop é aquilo que vem depois da arte, o tanque de ácido em que a arte se dissolve. Vê as borbulhinhas? Adeusinho, querida arte! Não esquece de levar a história com você! O pop está condenado, my good old Kopo Deleche [antigo nome artístico de Neto, quando era roqueiro], a ser um fluxo contínuo. Só existe no presente. Alguns cadáveres do pop podem ser tirados da cova de vez em quando, vagar uns tempos por aí como zumbis, mas são zumbis. Mortos-vivos mantidos de pé pelo fetichismo. Só a história poderia salvá-los, mas ela é a sua primeira vítima. A verdade é que Maxwell Smart vive de lixo, meu amigo. A começar por esse nome ridículo que decidi adotar. É como disse o Kafka: sou feito de lixo, não sou nada além disso e não posso ser nada além disso".
ExcluirAchei esse diálogo do livro interessantíssimo. Particularmente, adoro a cultura pop e o acúmulo dessa aparente "cultura inútil" que não me esforço muito para memorizar. É uma das poucas habilidades que tenho, sem falsa modéstia.
ExcluirSou mesmo distraído. O comentário do Tostão está justamente na contracapa deste livro. Quantos aos comentários do Ardissone e do Leopoldo, sempre vale a pena conferí-los. São como faróis que, no breu da noite, iluminam os pontos mais obscuros.Outra coisa. Acho que tenho uma vantagem sobre todos vocês. Em 70, quando daquele drible do Pelé, eu tinha 14 anos. Portanto, lembro bem do lance e da emoção do momento. Vocês, provavelmente não tinham nascido ou eram bebezinhos. Só viram, anos depois, naqueles vídeos desbotados. É pena.
ResponderExcluirSabe o q mais me impressionou Afonso: foi a dedução do autor no livro de q Pelé chamais quis fazer aquele gol p/ entrar na imortalidade da História: "Chupando um cubo de gelo ou coisa parecida,o cara caminha de volta ao centro do campo, olhando de soslaio para a meta uruguaia. É de supor q esteja frustrado pelo gol q não conseguiu fazer, mas parece tranquilo, de uma placidez até arrogante de quem dá a entender q na verdade nunca quis fazer o q parecia ter querido fazer, q tudo saiu conforme o planejado e aquela impressão deixada em todo mundo - de q queria fazer o gol enquanto o tempo inteiro sua intenção era perdê-lo por pouco, gravar no corpo coletivo da espécie a cicatriz desse 'por pouco', sabendo q ele queimaria mais q o gozo da realização -, aquilo era o drible definitivo, inconcebível, o drible em cima do drible em cima do pobre Mazurkiewicz".
ResponderExcluirÉ claro que esta dedução é um recurso literário. Mas vale. E é ótima.
ExcluirOutra coisa que me chama a atenção: a inevitável lembrança de Nelson Rodrigues. A grande diferença é que o velho NR não tinha nada de pop. Pertencia a um mundo que só ele conhecia. Impossível lê-lo sem ignorar a visão daquele homem curvado, aquela figura quase caricata, balbuciando aquelas metáforas exageradas, quase cômicas. Aquela tragégida grega que ele exergava em cada jogo no Maracanã.
ResponderExcluirA influência de Nélson Rodrigues é clara. Os dois temas principais - sexo e futebol - mais a ambientação da trama no Rio de Janeiro trazem isso a reboque. Mas não é somente isso, o estilo mesmo do texto.
ExcluirNélson, seu irmão Mário Filho e outros mitos da crônica esportiva aparecem no livro.
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