Em
1994, a partir da chacina ocorrida em Vigário Geral que matou 21 pessoas,
Zuenir Ventura escreveu o livro “Cidade Partida”. Nesta ele busca apresentar os
dois lados da equação para tentar compreender a violência e seu predomínio no
dia a dia da cidade. A vida nas comunidades carentes é colocada como
contraponto em relação à sociedade de classes mais abastadas que se organiza em
marchas pela paz.
Não
tendo lido a obra, mas compreendido seu impacto e a tendo como referência desde
sempre, dado ser sempre utilizada como parâmetro de um reflexo real do ponto
alcançado – e que se tem mantido ou piorado com o passar dos anos – em termos
da divisão da sociedade carioca entre pobres e desamparados e a classe média e
média-alta, me vejo de repente à frente da leitura da obra de China Mieville –
A Cidade e a Cidade – 1ª edição – São Paulo – Ed. Boitempo, 2014 – 292 páginas,
exatos 20 anos depois da publicação da obra de Ventura.
Interessante
notar que o contexto para o qual o autor britânico, nascido em 1972, se dedica
na verdade gira em torno de temas como o terrorismo e o sectarismo de sua comunidade,
talvez impulsionado por uma Europa caminhando para a extrema direita e reativa
à entrada de imigrantes. Mas a semente comum de ambos é a violência, e como ela
se torna fato gerador de um desenrolar de acontecimentos. No livro de Zuenir,
documental, realístico, a chacina de Vigário Geral é o gatilho. No livro de
Mieville – e, como bem observado pela minha filha, o nome do autor está em
letras garrafais na capa, o que demonstra sua importância como elemento pensante
perante o público leitor (eu nunca tinha ouvido falar dele antes, é bom que se
diga) – tudo se inicia a partir do assassinato de uma mulher que é investigado
pela polícia da cidade-estado de Beszél, localizada em algum lugar nos Balcãs,
mais especificamente pelo inspetor Tyador Borlú, protagonista e narrador da
estória fictícia.
Violência,
portanto, é o pano de fundo de duas obras. Ambas tratam também da divisão das
sociedades. Porém no livro de Mieville o contexto é um pouco mais complicado. E
aí chego ao ponto do gancho para o que me atraiu para a obra. Não por ser um
romance policial, gênero o qual aprecio, mas não seria um elemento suficiente para
que eu a adquirisse. Mas sim um singelo comentário colocado na contracapa – “Um
assassinato misterioso que se passa numa paisagem urbana à Blade Runner”
(Shortlist – referência a um site especializado em literatura).
Blade
Runner com certeza é uma referência muito forte no meu imaginário. Não tenho
dúvidas de que a partir daí é que fui tentado a adquirir um livro que parecia um
policial prosaico de um autor desconhecido, rotulado como esquerdista, e que “foi
duplamente contemplado pelo British Fantasy Award, recebeu três vezes o Arthur
C. Clarke Award e, justamente por A Cidade & a Cidade, ganhou o Hugo Award,
o prêmio mais importante dedicado aos livros de ficção científica”.
Essa
era a minha expectativa, então. Um livro de ficção científica, policial, que me
traria de volta o sentimento de um Blade Runner lido. O grande elemento inovador
e que desafia o leitor, no entanto, é algo complexo, no mínimo. A estória não
se passa somente em Beszél, mas também em outra cidade-estado, Ul Qoma, sua “vizinha”.
Por que as aspas? Porque ela é uma vizinha incomum. Na verdade Ul Qoma ocupa o mesmo
espaço físico de Beszél. Deu um nó na cabeça? Piora ainda mais. Imagine, duas
cidades no mesmo lugar. Os seus habitantes proibidos de interagir com seus “vizinhos”
e sendo obrigados a “desver”, “desouvir”¹ qualquer coisa relacionada a eles,
fingindo que eles não existem, mas tendo que desviar de suas pessoas e veículos
enquanto transitam por áreas compartilhadas – existem áreas que não o são, o
que traz um certo alívio para nossa mente.
Pior
ainda, caso elas transgridam essas regras – das quais aprendem desde cedo,
enquanto crianças – estão sujeitas a serem presas por conta de um poder
superior à ambas as cidades denominado Brecha – enquanto lia não podia deixar
de imaginá-los como os dementadores de Harry Potter. Se eles transgrediam,
cometiam “brecha” e desapareciam.
A
conclusão que cheguei, juntando todos estes elementos – perfil do autor,
violência, ficção científica – foi que China Mieville criou uma alegoria para
retratar o incômodo que os cidadãos europeus possuem com o novo mundo. Estes
são obrigados a desver e desouvir os imigrantes africanos ou de outros países,
não querendo uma interação com eles. A luta na estória acaba sendo travada por
grupos unionistas, para os quais não tenho dúvidas de que o próprio Mieville se
identificaria. Borlú, seu protagonista, apresenta sentimentos antagônicos e inconformistas
com relação a esta questão, apesar de aceita-la e tentar conviver com ela.
De
modo a não tornar este grito contra a injustiça social um libelo esquerdista simplório²,
o autor utiliza de todo o seu talento para demonstrar as cicatrizes abertas que
não saram. Existe um poder – a Brecha – constituído para manter as coisas tal
qual elas são. Que poder seria esse, no mundo real?
1 – O livro tem sua estrutura tão
complexa que foi objeto de um comentário final do tradutor Fábio Fernandes, o
qual reproduzo em parte aqui:
Mais difícil do que traduzir um bom texto é traduzir
um bom texto ruim – mas de propósito. (...) Narrado em primeira pessoa pelo detetive
Tyador Borlú, (...) o livro é uma investigação em mais de um sentido: o
primeiro, mais óbvio, sobre um crime (...) e o segundo, mais sutil, mas não
menos interessante, sobre os limites e as possibilidades de um idioma. (...) Ao
tradutor, coube respeitar a intenção do autor e dar o melhor de si para que uma
impressão semelhante pudesse ser transmitida aos leitores brasileiros.
2 – Além disso, a editora, abaixo de
uma caricatura do Laerte sobre a retirada de muros, aponta na última página:
Publicado em 2014, quando a grande mídia mundial
festeja os 25 anos da queda do Muro de Berlim – data que também marca os 20
anos do início das obras do muro na fronteira entre os Estados Unidos e o
México; os 16 anos do início das fundações do muro entre Ceuta e Melila, no
Marrocos espanhol; os 12 anos da construção do Muro da Cisjordânia, por Israel;
os 2 anos desde que foi colocado em pé o Muro de Evros, entre Grécia e Turquia;
e os 164 anos da promulgação da Lei de Terras no Brasil (...).
Sociedades
divididas, enfim...