quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A CIDADE & A CIDADE

Em 1994, a partir da chacina ocorrida em Vigário Geral que matou 21 pessoas, Zuenir Ventura escreveu o livro “Cidade Partida”. Nesta ele busca apresentar os dois lados da equação para tentar compreender a violência e seu predomínio no dia a dia da cidade. A vida nas comunidades carentes é colocada como contraponto em relação à sociedade de classes mais abastadas que se organiza em marchas pela paz.

Não tendo lido a obra, mas compreendido seu impacto e a tendo como referência desde sempre, dado ser sempre utilizada como parâmetro de um reflexo real do ponto alcançado – e que se tem mantido ou piorado com o passar dos anos – em termos da divisão da sociedade carioca entre pobres e desamparados e a classe média e média-alta, me vejo de repente à frente da leitura da obra de China Mieville – A Cidade e a Cidade – 1ª edição – São Paulo – Ed. Boitempo, 2014 – 292 páginas, exatos 20 anos depois da publicação da obra de Ventura.

Interessante notar que o contexto para o qual o autor britânico, nascido em 1972, se dedica na verdade gira em torno de temas como o terrorismo e o sectarismo de sua comunidade, talvez impulsionado por uma Europa caminhando para a extrema direita e reativa à entrada de imigrantes. Mas a semente comum de ambos é a violência, e como ela se torna fato gerador de um desenrolar de acontecimentos. No livro de Zuenir, documental, realístico, a chacina de Vigário Geral é o gatilho. No livro de Mieville – e, como bem observado pela minha filha, o nome do autor está em letras garrafais na capa, o que demonstra sua importância como elemento pensante perante o público leitor (eu nunca tinha ouvido falar dele antes, é bom que se diga) – tudo se inicia a partir do assassinato de uma mulher que é investigado pela polícia da cidade-estado de Beszél, localizada em algum lugar nos Balcãs, mais especificamente pelo inspetor Tyador Borlú, protagonista e narrador da estória fictícia.

Violência, portanto, é o pano de fundo de duas obras. Ambas tratam também da divisão das sociedades. Porém no livro de Mieville o contexto é um pouco mais complicado. E aí chego ao ponto do gancho para o que me atraiu para a obra. Não por ser um romance policial, gênero o qual aprecio, mas não seria um elemento suficiente para que eu a adquirisse. Mas sim um singelo comentário colocado na contracapa – “Um assassinato misterioso que se passa numa paisagem urbana à Blade Runner” (Shortlist – referência a um site especializado em literatura).

Blade Runner com certeza é uma referência muito forte no meu imaginário. Não tenho dúvidas de que a partir daí é que fui tentado a adquirir um livro que parecia um policial prosaico de um autor desconhecido, rotulado como esquerdista, e que “foi duplamente contemplado pelo British Fantasy Award, recebeu três vezes o Arthur C. Clarke Award e, justamente por A Cidade & a Cidade, ganhou o Hugo Award, o prêmio mais importante dedicado aos livros de ficção científica”.

Essa era a minha expectativa, então. Um livro de ficção científica, policial, que me traria de volta o sentimento de um Blade Runner lido. O grande elemento inovador e que desafia o leitor, no entanto, é algo complexo, no mínimo. A estória não se passa somente em Beszél, mas também em outra cidade-estado, Ul Qoma, sua “vizinha”. Por que as aspas? Porque ela é uma vizinha incomum. Na verdade Ul Qoma ocupa o mesmo espaço físico de Beszél. Deu um nó na cabeça? Piora ainda mais. Imagine, duas cidades no mesmo lugar. Os seus habitantes proibidos de interagir com seus “vizinhos” e sendo obrigados a “desver”, “desouvir”¹ qualquer coisa relacionada a eles, fingindo que eles não existem, mas tendo que desviar de suas pessoas e veículos enquanto transitam por áreas compartilhadas – existem áreas que não o são, o que traz um certo alívio para nossa mente.

Pior ainda, caso elas transgridam essas regras – das quais aprendem desde cedo, enquanto crianças – estão sujeitas a serem presas por conta de um poder superior à ambas as cidades denominado Brecha – enquanto lia não podia deixar de imaginá-los como os dementadores de Harry Potter. Se eles transgrediam, cometiam “brecha” e desapareciam.

A conclusão que cheguei, juntando todos estes elementos – perfil do autor, violência, ficção científica – foi que China Mieville criou uma alegoria para retratar o incômodo que os cidadãos europeus possuem com o novo mundo. Estes são obrigados a desver e desouvir os imigrantes africanos ou de outros países, não querendo uma interação com eles. A luta na estória acaba sendo travada por grupos unionistas, para os quais não tenho dúvidas de que o próprio Mieville se identificaria. Borlú, seu protagonista, apresenta sentimentos antagônicos e inconformistas com relação a esta questão, apesar de aceita-la e tentar conviver com ela.

De modo a não tornar este grito contra a injustiça social um libelo esquerdista simplório², o autor utiliza de todo o seu talento para demonstrar as cicatrizes abertas que não saram. Existe um poder – a Brecha – constituído para manter as coisas tal qual elas são. Que poder seria esse, no mundo real?


Mieville pode não gostar, mas ele é um mestre do soft power clássico – cultivar mentes e paixões com cultura. Se vocês me perguntam: afinal, o livro vale a pena? Diria que já li melhores. Mas a narrativa é tão inovadora – e confusa, para quem não tem paciência e coragem para se jogar na imaginação - que vale a pena lê-lo para estar um passo adiante na compreensão sobre o que a criatividade do ser humano pode gerar.

            1 – O livro tem sua estrutura tão complexa que foi objeto de um comentário final do tradutor Fábio Fernandes, o qual reproduzo em parte aqui:

Mais difícil do que traduzir um bom texto é traduzir um bom texto ruim – mas de propósito. (...) Narrado em primeira pessoa pelo detetive Tyador Borlú, (...) o livro é uma investigação em mais de um sentido: o primeiro, mais óbvio, sobre um crime (...) e o segundo, mais sutil, mas não menos interessante, sobre os limites e as possibilidades de um idioma. (...) Ao tradutor, coube respeitar a intenção do autor e dar o melhor de si para que uma impressão semelhante pudesse ser transmitida aos leitores brasileiros.

            2 – Além disso, a editora, abaixo de uma caricatura do Laerte sobre a retirada de muros, aponta na última página:

Publicado em 2014, quando a grande mídia mundial festeja os 25 anos da queda do Muro de Berlim – data que também marca os 20 anos do início das obras do muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México; os 16 anos do início das fundações do muro entre Ceuta e Melila, no Marrocos espanhol; os 12 anos da construção do Muro da Cisjordânia, por Israel; os 2 anos desde que foi colocado em pé o Muro de Evros, entre Grécia e Turquia; e os 164 anos da promulgação da Lei de Terras no Brasil (...).


Sociedades divididas, enfim...