quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

PROPRIEDADE INTELECTUAL E RELAÇÕES INTERNACIONAIS NOS GOVERNOS FHC E LULA

Obras baseadas em dissertações de Mestrado, teses de Doutorado, ou seja, quaisquer produtos acadêmicos correm sempre o risco de ser um regalo para um determinado nicho objetivado, porém algo considerado como uma black box para os não iniciados. E, portanto, de difícil absorção pelo público em geral. Trata-se de algo natural, dado que os trabalhos acadêmicos têm que obedecer a uma determinada rigidez, pois seu fim prático primeiro é o de ser a demonstração pelo autor do conhecimento absorvido e da geração de sua contribuição para o mundo científico ao qual ele se propôs ser um dos membros.

O livro o qual será objeto de nossa análise neste post sofre de tal característica, o que não retira em nada sua importância para a meta a que se propôs. Trata-se da obra de autoria de Carlos Maurício Ardissone, intitulada Propriedade Intelectual e Relações Internacionais nos Governos FHC e Lula – os rumos das negociações globais e das políticas públicas – Ed. Appris – Curitiba, PR – 2014 – 325 págs.. Como dito anteriormente, ela entrega o que se propõe. Porém seria tal entrega suficiente para almejar voos mais altos? A depender da altura ambicionada, alguns ajustes deverão ser realizados.

Ardissone inicia sua obra, que tem como base sua tese de Doutorado apresentada perante a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) com uma ampla explanação sobre a base teórica em que está assentada. O Capítulo 1 – Aspectos Teóricos: ideias, instituições e lideranças na formulação de políticas públicas – ocupa pouco mais de 1/3 do livro. Temos a exata noção de que esta porta de entrada é absolutamente necessária para o meio acadêmico, dado que se traduz para uma banca examinadora que o candidato a Doutor possui todas as ferramentas para analisar seu objeto de estudo. Um exemplo de tal discurso:

Por conta disso, a literatura desenvolveu e sofisticou cada vez mais abordagens para tratar dos elementos cognitivos que incidem sobre a formulação de políticas. Conceitos diversos foram formulados – como os de “imagens”, “mapas cognitivos”, “sistema de crenças”, “códigos operacionais” e “lições do passado” – todos com a preocupação central de compreender a “brecha” existente entre a realidade, supostamente “objetiva”, do ambiente operacional e a representação “subjetiva” na mente do tomador de decisão. A esse conjunto de abordagens, a literatura costuma se referir como abordagem cognitiva das Relações Internacionais (DE MELLO E SILVA, op. Cit., p. 143). Veja-se, pois, como, a partir da crítica cognitiva ao modelo do ator racional, o conceito de “ideia” impregnou-se na Análise de Política Externa.
(pág. 42).

Mas, o leitor, quando atraído na estante da livraria, se remete imediatamente ao tema proposto no título do livro – Propriedade Intelectual e Relações Internacionais nos Governos FHC e Lula. A colocação dos nomes de Presidentes de tal envergadura histórica na capa traz em seu bojo a geração de uma grande expectativa pelo adquirente da obra. E tal somente vem a ser abordada após ultrapassar, ainda que necessário, o 2º capítulo – O regime internacional de Propriedade Intelectual do Acordo TRIPs: um chute na escada do desenvolvimento. Assim sendo, chegamos à metade do livro com o leitor ávido por entrar no tema proposto no título! De todo modo, este segundo capítulo não pode ser ignorado, uma vez que ele apresenta o cenário internacional em que as diretrizes da Política Externa Brasileira serão inseridas a partir dos capítulos 3 e 4. Como, por exemplo, quando ele cita os limites do alcance que a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), agência especializada das Nações Unidas, apresentou em determinado momento histórico para os interesses dos países desenvolvidos, o que motivou a guinada dos debates sobre a estrutura jurídica internacional sobre os Direitos de Propriedade Intelectual em direção à Organização Mundial do Comércio (OMC), via o acordo TRIPs – Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual ligados ao Comércio, um dos constitutivos daquela organização:

Um dos obstáculos para os Estados Unidos atingirem seus objetivos era a percepção de não ser possível reformar o regime internacional de propriedade intelectual por intermédio da OMPI, uma vez que, nesta organização, os Estados Unidos só possuíam um voto e era bastante provável ser sobrepujado pelos países em desenvolvimento.
Pág. 131

O que eu quero dizer com isso tudo: Ardissone se apresenta como um autor essencial para quem busca se aprofundar no estudo dos dois períodos por ele indicados – Governos FHC e Lula – na seara proposta – políticas de Propriedade Intelectual e sua influência nas Relações Internacionais. Seu estudo tem uma base teórica sólida, alcança detalhes que demonstram que a pesquisa foi valorosa em termos quantitativos e qualitativos ao se observar os dados coletados. As conclusões que expõe demonstra a busca pelo equilíbrio do pesquisador, em ser isento, mesmo diante de paradoxos em relação às suas possíveis crenças pessoais – no texto não se percebe, de maneira clara, qual é o viés político do autor, o que não deixa de ser uma qualidade num texto acadêmico, voltado mais ao debate das ideias e conceitos:

Na formulação da política externa, o processo de aprendizado social em que a diplomacia brasileira viu-se envolvida contribuiu para o governo brasileiro dar continuidade e aprimorar algumas políticas do Governo Fernando Henrique Cardoso, como se verificou na questão da licença compulsória do Efavirenz, em 2007. As experiências acumuladas nos contenciosos na OMC favoreceram também estratégias mais ofensivas, como no caso da retaliação cruzada, em 2010. Mas elementos importantes de mudança também podem ser identificados na postura mais afirmativa e contestadora das regras do regime internacional de propriedade intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. A “Agenda para o Desenvolvimento” reflete este novo padrão de inserção.
Pág. 300

Por fim, caso o autor almeje que a obra alcance um público mais vasto (ou seria melhor dizer, popular!?), terá que repensar uma nova edição na qual principalmente o primeiro capítulo seria ou suavizado ao até mesmo suprimido, de modo a poupar os leitores não-iniciados de um texto por demais filosófico. Eles querem ver sangue, as entranhas motivadoras das decisões! Ardissone nos brinda com cultura sobre Relações Internacionais com maestria, mas isto aos olhos de um leitor menos afeito a matéria soa como um longo discurso antes de um jantar tão ansiado.

Citações e Glossário

DE MELLO E SILVA, Alexandra (1998) – Ideias e Política Externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU – In: Revista Brasileira de Política Internacional – 41(2) – págs. 139-158

Caso Efavirenz – “A recente decisão do governo brasileiro de aplicar licença compulsória ao Efavirenz respeita as regras nacionais e internacionais, inclusive o Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, sigla em inglês) da OMC. A medida é histórica e inédita na América Latina, embora já tenha ocorrido em outros países como Canadá, Tailândia e Itália, inclusive em relação a medicamentos da própria Merck10. A decisão do governo foi o desfecho de uma longa negociação com o laboratório e foi tomada com responsabilidade, sem desrespeito às legislações nacionais e internacionais em vigor. Foram vários os fatores que influenciaram a decisão do Poder Executivo de emitir a licença compulsória do Efavirenz: a inflexibilidade do laboratório em rever seus preços para o mercado brasileiro; o desgaste da licença compulsória como instrumento de pressão (fato que restou evidente ao observar-se as negociações de 2005); e a pressão da sociedade civil brasileira, sobretudo de grupos ligados à saúde e aos direitos humanos”.

Retaliação Cruzada - Diante do descumprimento da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) por parte dos Estados Unidos da América (EUA) no caso do algodão, este órgão da Organização Mundial do Comércio (OMC) autorizou a aplicação da retaliação cruzada pelo Brasil. Nesse sentido, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) abriu recentemente consulta pública sobre as medidas que o Brasil poderá tomar na área de propriedade intelectual. Esse quadro representa um teste para a OMC, que pode ver sua legitimidade ameaçada caso os EUA ignorem suas regras e incentivos para o cumprimento destas. A retaliação cruzada pode – e deve ser feita quando se estabelece que a suspensão de concessões no mesmo setor não será eficaz ou quando for mais prejudicial ao país autorizado a estabelecer tais normas. Se o aumento do imposto de importação de alguns bens oriundos dos EUA for mais desfavorável do que positivo para o Brasil, este país tem o direito de suspender concessões e obrigações no setor de propriedade intelectual, isto é, deixar de pagar por direitos de patentes e direitos autorais. Fonte: http://www.ictsd.org/bridges-news/pontes/news/riscos-e-oportunidades-na-retalia%C3%A7%C3%A3o-cruzada-em-propriedade-intelectual – de 21 de Abril de 2010.

Agenda para o Desenvolvimento - A Agenda de Desenvolvimento, proposta por Argentina e Brasil em 2004, visa a tornar o desenvolvimento elemento crucial em todas as negociações levadas a cabo na OMPI e na determinação de políticas de proteção à propriedade intelectual em geral. De acordo com o Grupo de Amigos do Desenvolvimento (GAD) - Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, Equador, Egito, República Islâmica do Irã, Quênia, Peru, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia, Uruguai, Venezuela e República Dominicana, a OMPI, enquanto agência da Organização das Nações Unidas (ONU) deveria pautar-se, completamente, pelos amplos objetivos de desenvolvimento que a ONU fixou para si mesma, em particular, pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e levar em conta todas as disposições pró-desenvolvimento do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, sigla em inglês) e subseqüentes decisões do Conselho do TRIPs, como a Declaração de Doha sobre TRIPs e Saúde Pública de 2001. Argentina e Brasil tomaram a iniciativa de lançar a Agenda de Desenvolvimento em 2004, e a proposta foi, rapidamente, apoiada por 13 países em desenvolvimento (PEDs).


6 comentários:

  1. Olá Leopoldo, muito obrigado pela resenha, pelas reflexões e críticas! Sem dúvida nenhuma, apesar dos meus esforços no sentido até de suavizar um pouco a verve teórica/abstrata do trabalho original, ela permanece muito presente no livro. Deve ser pela mania de pesquisador de achar que sem uma lente conceitual sólida, não pode haver análise séria. Quanto ao público-alvo, concordo que a "comunidade de propriedade intelectual", eclética por natureza, pode se incomodar um pouco com o tamanho do capítulo teórico. Mas pensei também por outro lado: em atrair a atenção dos estudantes e pesquisadores das Relações Internacionais para a Propriedade Intelectual como objeto de estudo. Sabemos como há poucos trabalhos e pesquisadores de Relações Internacionais engajados em temas de propriedade intelectual, especialmente se compararmos com a produção literária jurídica. O "juridiquês" ainda prevalece muito na discussão brasileira de propriedade intelectual e precisamos atrair outras abordagens. Talvez eu tenha de fato pensado mais no público de Relações Internacionais do que nos estudiosos de propriedade intelectual como um todo. Esse vício de origem, obviamente, remete ao nascedouro acadêmico (à tese). Agradeço de novo a leitura acurada e atenciosa e a crítica elegante e bem-feita! Fiquei feliz com sua resenha. Vinda de você, foi muito importante para mim.

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    1. Carlos Maurício, essa abordagem dual - PI x RI, enquanto público - me escapou, confesso. Infelizmente PI ainda se encontra encerrada num nicho. Temos esperança de que um dia a sociedade entenda sua importância - e sua maciça presença - em diversas áreas de nossa vida.

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  2. Adoraria ter fôlego para ler esse livro. O tema me interessa - atualmente nem sei mais o motivo, mas continua me interessando - mas tenho outras prioridades no momento.
    Essa prévia feita pelo Leo me leva a admirar ainda mais o autor. Ardissone deve ter se imbuído do mais alto rigor acadêmico para não deixar transparecer sua linha de pensamento.
    Porém, é aí que inicia o erro comercial do livro. Nós, brasileiros, somos muito arrogantes e tendemos a rejeitar tudo o que é comercializado. O bom vinho não é aquele que te faz feliz, mas aquele caaaaaaro, cheio de palavras difíceis no rótulo. O bom livro não é o best seller, mas aquele obscuro e complexo (e chaaaaaato).
    Rejeitamos o trabalho do "editor", aquela figura monstruosa que vai estuprar nossa obra prima.
    Nós jornalistas aprendemos que nosso texto, por melhor que seja, vai ser alterado pelo nosso editor. Chega a dar lágrimas nos olhos quando a gente vê a versão impressa e estão lá frases inteiras originais.
    Pelo que o Leo disse, o que falta para tornar a obra do Ardissone mais vendável é a mão pesada de um bom editor. Figura rotineira nas grandes editoras mundiais, principalmente para escritores em suas primeiras obras, o editor é aquele que dá rumo ao texto. Que faz o escritor se contorcer e alterar seu texto acadêmico até que ele se torne legível para o leigo. É duro, mas compensador, saber que seu texto foi lido por muitas pessoas.
    É por isso, também, que existem as palestas de lançamento. Uma oportunidade para o autor mostrar que não pensa só no comercial, que seu autor tem mais a oferecer.
    Precisamos de editores no Brasil

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    1. D'accord, Lúcia. Apesar de sofrer também do mal dos escritores - o medo da "edição". Você mesmo falou para mim certa vez que é o que me falta, por vezes.

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  3. Lucia, obrigado pelos seus comentários. Acho que o trabalho pode ter ficado muito encastelado no jargão acadêmico das Relações Internacionais mesmo e confesso que estava sem fôlego para eu mesmo fazer revisões que tornassem o texto mais acessível para um maior público. Sem querer bancar o franciscano, longe disso (pois adoraria que o livro se tornasse um best seller, apesar de saber que está vendendo bem), estava tão concentrado em publicar o livro que, ao conseguir um bom contrato, não atentei para esses aspectos. Seu comentário me remeteu ao debate que tivemos tempos atrás sobre como bons jornalistas que escrevem bem e fazem pesquisa histórica com qualidade podem escrever um livro mais agradável sobre História do que muitos historiadores brilhantes, mas com escrita prolixa e academicista demais.

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    1. É o que disse, não temos o hábito de submeter nosso texto ao público. A falta que faz um editor! Enquanto as editoras não começarem a trabalhar assim, os autores nacionais serão sempre criações próprias quando poderiam ter um empurrãozinho

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