sábado, 15 de dezembro de 2018

O Ódio que Você Semeia


Com a obra de Angie Thomas – O Ódio que Você Semeia – Editora Galera Record, 6ª edição, 2018 – 376 páginas – inicio uma jornada dupla resenhando livros que minha filha, uma adolescente de 14 anos, leu recentemente. Desse modo, além de matar minha curiosidade pela literatura em si, fico mais próximo da linguagem que o mundo dos livros está oferecendo para o público infanto-juvenil. Ou seja, que ideias ela está tendo acesso.

Fonte: www.amazon.com.br
O livro gira em torno da estória da adolescente afrodescendente Starr. Frequentadora de uma escola do Ensino Médio em bairro distinto de onde vive, instituição esta de classe média na qual ela é uma das poucas exceções entre uma grande maioria de brancos, tem que saber conviver entre dois mundos distintos. Sua percepção disso se aguça ao ser testemunha, logo no início, do assassinato por um policial de um amigo de infância.

O título em português perde um pouco quando comparado ao original em Inglês, citado algumas vezes por seu vínculo com um conceito divulgado pelo rapper Tupac Shakur – The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody [sendo o trecho grifado o título supracitado] – assassinado em 1996[1], no qual se apresenta como a influência dos preconceitos passados de geração para geração afetam a incompreensão e geram o ódio racial existente – algo como “o ódio que você passa (semeia) para as criancinhas f... com todo mundo”. A expressão em inglês gera um acrônimo conhecido no meio do rap como “thug life”, no qual a princípio exemplificaria um “momento” em que alguém dominaria uma situação seguindo os preceitos de “curtir a vida”, zoando inclusive com a cara de terceiros que não teriam a mesma filosofia. Ou seja, gerando uma diferenciação do tipo “eu sou melhor que você”.

Se trataria assim de mais uma obra que faz o apelo aos jovens pela tolerância. A compreensão de que o diferente deve ser absorvido pela sociedade somente como mais um. Interessante que em determinado momento da trajetória da protagonista seu pai – um ex-presidiário regenerado e dono de um comércio chega a conclusão de que pode mudar a vida de seu bairro, mesmo não precisando morar nele. É a síntese do american way of life politicamente correto. Você pode progredir na vida, fruto de seu trabalho, e assim se mudar para uma localidade melhor estruturada – no caso do livro, o típico subúrbio das grandes cidades dos Estados Unidos – e ainda sim ter um trabalho proativo no sentido de apoiar uma comunidade mais carente.

Mas essa é uma nuance subsidiária em relação à narrativa central. O foco principal do livro de Angie Thomas é como uma adolescente lida com esse contexto de conflito racial, estando no centro de uma polêmica da qual foi testemunha, e ao mesmo tempo tem que gerenciar todos os demais dilemas típicos de sua idade – o namoro (nesse caso “agravado” por ser um rapaz branco, de posses); a convivência com as amigas mais próximas – uma patricinha estilo loira Beverly Hills e uma sino-americana; e o relacionamento com os demais parentes que vivem outra realidade em seu dia a dia.

O estilo da escrita é leve e ágil e personifica muito bem a rotina de uma adolescente. Se tornam presentes nos textos da nova geração, obviamente, as mensagens enviadas por celular tão típicas de nossos tempos. Um novo elemento que deve ser avaliado inclusive quanto ao peso que as ideias escritas assumem quando de um diálogo entre pessoas. Uma coisa era a antiga conversa fora que sempre podia ser contornada com o velho “Mas não foi exatamente isto que eu quis dizer...”, para algo que está escrito na tela de um pequeno aparelho ao qual você tem acesso instantaneamente. Palavra escrita é como flecha lançada, não volta mais.

Angie Thomas
Fonte: www.aescotilha.com.br
No sentido de apresentar esse cenário para os pais, é um livro interessante pois facilita nossa compreensão de como eles reagem – no caso específico deste livro é muito mais útil para pais de meninas. Porém acredito que ele se perde no seu trecho final, apesar de ser compreensível a reação exposta, quando dá um tom de normalidade para uma atitude extrema. Sendo um livro que se propõe atingir a faixa etária que alcança, tal mensagem poderia ser melhor dosada com um contraponto que não parece ser o interesse da autora. Talvez o cenário de revolta apresentado fosse desnecessário, ou poderia ser colocado de maneira mais sutil. A favor da autora está o fato de que, sendo também uma afrodescendente, possa vir a ter parâmetros distintos para lidar com o tema em relação a um leitor como eu, branco, que talvez não tenha sofrido os mesmos problemas vivenciados pela protagonista.

Resta-nos compreender que fazer o bem necessário, não importa a quem. E isso se vive no dia a dia, que para mim é muito mais forte do que movimentos grandiloquentes de revolução. Vamos ser revolucionários de nossas vidas. É assim que se constrói uma sociedade melhor.


[1] http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2018/07/05/tupac-assassinato-confissao/

6 comentários:

  1. Belo último parágrafo (do blog), Léo! Marina gostou do livro?

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    1. Sim. Mais do que o novo livro do Green, que será o próximo a ser resenhado.

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  2. Perceito em seu último paragrafo e resume bem o que penso. É tão complexo esse tema e a forma como as coisas estão sendo colocadas e impostas, tenho medo de se perder o foco para melhorarmos essa desigualdade

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  3. Não gosto da expressão "afrodescendente". E isso é só um comentário, para mim é negro mesmo. Eu também sou afrodescendente, meu tio só me chama de "preta" e eu sou adepta da tese de que todos nós, brasileiros, somos mulatos.
    Mas, vamos falar da resenha.
    O último parágrafo resume bem o que eu sinto. Ponto.
    Acho interessante a iniciativa dos escritores de colocar em livro a linguagem dos celulares. Sai sempre "fake", mas não se pode ignorar essa nova linguagem.
    Quanto ao preconceito que se incute nas crianças, tenho uma experiência pessoal interessante. Minha avó era racista, no sentido econômico do termo. Os escravos e ex-escravos de sua fazenda eram tratados como seres humanos, ou seja, tinham salário, casa, comida e lugar para lavar roupa; castigo era coisa de filho que faz bobagem (traduzindo, ninguém batia em adulto, muito menos criança, para trabalhar). Porém, negro e imigrante (a família Cantarelli trabalhou lá) era funcionário e tinha seu lugar. Detalhe a ser considerado, minha avó era do século XIX.
    Eu nasci em 1962, e passei minha infância em Volta Redonda. Minha Bá era negra de tudo e tinha uma filha da minha idade, mais pretinha que carvão, foi minha primeira amiga e saiu da minha vida porque a Bá foi para a casa da família no interior de não sei onde.
    Na escola, em Volta Redonda, meus amigos eram todos brancos. A elite da cidade. Zero de negros. Porém, minha casa era daquelas sempre abertas, numa rua em que as salas de estar eram guardadas para dias de festa. E minha mãe adorava fazer festa de criança. Imagina onde todos iam para brincar.
    O bairro atrás da minha elitista rua (reservada para os engenheiros da CSN) era da galera menos privilegiada. Digo menos privilegiada porque não tenho na memória qualquer distinção entre moradores da nossa rua, que só tinham casas, e "dos apartamentos". Nunca foi do meu interesse classificar meus amigos de infância como negros ou pobres. Eram meus amigos.
    Na minha adolescência no Rio, fui estudar primeiro num colégio católico no alto da Gávea, o Sào Marcelo, lembro que tinha uma galera que estudava lá que era da Rocinha que, para mim, era apenas mais um bairro. Eu ia de ônibus para a escola como todo mundo. O extinto 592.
    Fui fazer o ginásio no GIMK, colégio da elite das elites. Motorista para levar e buscar, tudo patricinha. Tinha um ou outro aluno mulatinho. Zero diferença. Eu ia a voltava a pé porque era mais fácil. O colégio era na Visconde de Albuquerque e eu morava no mesmo bairro, o Leblon. Desse convivio, como nos anteriores, não guardo nenhuma lembrança de olhar negros com outros olhos. Isso, definitivamente, não fazia parte dos meus interesses.
    Meu primeiro choque racial foi em Brasília, me preparando para o vestibular. Tinha um amigo negro na sala, que tinha um ranço racista que deveria ser muito traumático. Fazer ele ir na minha casa foi um parto. Inventava uma série de desculpas esfarrapadas. Ele era um gênio da matemática e queria fazer processamento de dados. Não sei se conseguiu. Ele tinha muita dificuldade de se relacionar com os colegas que não eram declaradamente negros.
    Volto a falar do preconceito econômico da minha avó. Esse sim, me acompanha desde a infância. Muitos dos meus companheiros de infância rejeitavam a presença de negros e pobres em nossas festas e brincadeiras. Como me recusava a entender aquilo as crianças, mais flexíveis que seus pais, acabavam não ligando também.
    Hoje, exatamente hoje, 16 de dezembro, a Socorro (que trabalha com minha irmã e para toda a família nos intervalos) e o namorado estão aqui preparando o almoço da minha filha. E já avisaram, não sentaram à mesa para não deixar minha irmà e o marido (patrões dela) constrangidos. Mas, quando eles não estão, sentam e almoçam com a gente como se nada houvesse.
    De fato, meu cunhado (que é italiano) não ficaria a vontade.
    Vai entender, né

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