Muito ruim! É isso
mesmo que vocês estão lendo. Eu nunca pensei que fosse escrever sobre uma obra,
ainda mais de Umberto Eco, um ícone após o célebre “O Nome da Rosa” (1980), que
gerou um filme de igual sucesso, tal contundente opinião. Mas esta foi
construída sob a árdua pena de ler a obra por inteiro.
A estória gira em
torno de um personagem assaltado pela moléstia da dupla personalidade. Capitão
Simonini / Abade Dalla Picolla são a dupla faceta de um tabelião que sobrevive
do talento para ser falsário de documentos. Para completar a tríade narrativa,
ainda existe um terceiro Narrador, com ‘N’ maiúsculo mesmo, agente externo para
esclarecer o desenrolar do romance.
A criação deste
terceiro ente me parece a prova mais cabal que o autor italiano se viu em
determinado momento enredado na dificuldade de expor suas próprias idéias aos
leitores. Talvez o tenha passado quando da revisão com o editor, não sei, mas
que parece aquela situação esdrúxula pela qual muitos já passaram de ter que
explicar a piada – e o bem sabem o quão ridículo e vexaminoso assim o é.
O autor e sua obra, com o título original, em italiano.
O que dizer em
defesa de Umberto Eco? Talvez esta obra seja válida para o imaginário italiano,
alcançando o coração de seus conterrâneos, uma vez que em sua primeira parte
ambienta a narrativa durante o processo de construção da República da Itália.
Tendo como argumento que os únicos personagens ficcionais seriam aqueles acima
apontados, poderão aguçar a curiosidade daqueles que gostariam de se aprofundar
na alma daquela época – que de um certo modo vêm a gerar a loucura política
pela qual o país da bota passa desde a era Berlusconi até hoje.
Uma das
características que o autor gosta de ilustrar para apontar como um traço
relevante do perfil do italiano é sua paixão pela gastronomia. Sempre presente
durante as páginas do livro, vira e mexe encontramos o receituário a ser
seguido para se produzir uma iguaria culinária:
“Meus mestres gostavam de comer bem, (...). Eram
necessários ao menos meio quilo de músculo de boi, um rabo, alcatra, salaminho,
língua e cabeça de vitela, lingüiça, galinha, uma cebola, duas cenouras, dois
talos de aipo e um punhado de salsa. Deixava-se cozinhar tudo por tempos
diferentes, segundo o tipo de carne. Porém, como lembrava vovô, (...), assim
que o cozido era colocado na travessa, para ser levado à mesa, era preciso
espalhar um punhado de sal grosso sobre a carne e derramar nela algumas conchas
de caldo fervente, para ressaltar o sabor. Poucos acompanhamentos, exceto umas
batatas, mas eram fundamentais os molhos; podiam ser de mosto, de rabanete ou
de frutas com mostarda, mas sobretudo (vovô não transigia) o molhinho verde: um
punhado de salsa, quatro filés de anchova, miolo de um pãozinho, uma colher de
alcaparras, um dente de alho, uma gema de ovo cozido. Tudo finalmente triturado,
com azeite de oliva e vinagre” (págs. 74-75).
O volume de citações
como as descritas acima é fora do normal. Aí lhes pergunto: se estivéssemos
realmente interessados no tema, não seria mais adequado buscar os conselhos de
alguém como Jamie Oliver?
Além desta linha de
ataque – a produção em profusão de aspectos para qualificar um determinado povo
(neste caso o italiano, mas a obra segue com a mesma volúpia em relação aos franceses,
aos prussianos, aos russos e principalmente aos judeus, sempre de forma no
mínimo jocosa, o que de certa forma mais uma vez enaltece o fato de que o autor
tinha por objetivo, utilizando-se da ironia, em identificar como abjeto o modo
de ver da direita radical tão em voga na Europa hoje em dia) – Umberto Eco
também parte para traçar o contorno de determinadas profissões e suas
dubiedades. Sobre o falsário, algo tão próximo do dilema advocatício,
principalmente no campo criminal:
“- Que fique claro, caro Simone – explicava Rebaudengo
[personagem que ensinou o ofício de
falsário ao protagonista], passando ao você -, que não produzo
falsificações, mas sim novas cópias de um documento autêntico (...). Mas, se um
inimigo seu, digamos assim, aspirasse à sua herança e você soubesse que ele
certamente não nasceu nem do seu pai nem da sua mãe (...) eu, por assim dizer,
ajudaria a verdade, confirmaria aquilo que sabemos ser verdadeiro e não teria
remorsos.
- Sim, mas como o senhor faria para saber de quem
realmente nasceu o tal sujeito?
- Você mesmo me diria! Você que o conheceria bem.
- E o senhor confiaria em mim?
- Eu sempre confio nos meus clientes, porque só presto
serviço a pessoas honradas.
- Mas, se, por acaso, o cliente tiver lhe mentido?
- Então foi ele quem cometeu o pecado, não eu. Se eu
começar a pensar que o cliente pode me mentir, então não exerço mais esse
ofício, que se baseia na confiança”. (págs. 98-99)
Em tempos de
mensalão e do caso Bruno e Eliza Samúdio nada mais adequado.
A narrativa
prossegue, saindo da Itália recém republicana para as convulsões numa França
das comunas. Nesse cenário, Eco se aproveita para fazer uma crítica às
pseudo-democracias, verdadeiras ditaduras que proliferam mundo afora.
Aparentemente o alvo são Governos como por exemplo do falecido Hugo Chávez, ao
discutir a possibilidade de usufruir de uma obra difamatória para manipular o
povo:
“- Compreende? Conseguir realizar o despotismo graças
ao sufrágio universal! O miserável [Napoleão
III] de um golpe de Estado autoritário recorrendo à obediência bovina do
povo! Está nos mostrando como será a democracia de amanhã” (pág. 195).
Por último, Eco
ataca as raízes de uma sociedade em que cada vez mais existe o culto às
celebridades instantâneas, à vida desenvolvida com base na esperteza e na futilidade,
talvez proporcionada pelo advento do fenômeno da internet e a facilidade para a
circulação da informação (sem o devido cuidado de se separar o joio do trigo –
o tão propalado “lixo” existente na rede):
“O Narrador considera que Simonini se antecipava aos
novos tempos: no fundo, com a difusão da imprensa livre e dos novos sistemas de
informação, do telégrafo ao rádio já iminente, as notícias reservadas
tornavam-se cada vez mais raras, [...] Melhor não possuir nenhum segredo, mas
aparentar possuí-los. Era como viver de rendas ou gozar dos proventos de uma
patente: você fica de papo para o ar, os outros se vangloriam de ter recebido
de você revelações perturbadoras, sua fama se revigora e o dinheiro lhe chega
com facilidade” (págs. 310-311).
Se a intenção do
autor era fazer uma crítica social, me parece que a escolha de um romance
histórico, como ele mesmo diz, “com tantos avanços e recuos, ou seja, aquilo que
os cineastas chamam de flashback” (pág. 473), não foi a melhor estratégia. Ao
final, o próprio prepara, como se fosse uma mea
culpa, uma tabela explicativa, com três colunas, para melhor situar o
leitor na seqüência dos fatos então narrados. Me parece que Eco produziu um
livro para consumo interno, esquecendo-se de seu público universal, de enredo
deveras complicado, com inúmeras passagens descartáveis (o último quarto do
livro, no qual ele se perde em uma trama entrelaçando maçonaria, Igreja
Católica e ocultismo é de uma falta de necessidade sem fim – ainda mais
levando-se em conta que já teríamos ultrapassado, a duras penas, cerca de 300
páginas do total de 480). Pior, perdeu uma grande oportunidade de nos brindar
com uma obra de não-ficção, em que colocaria os pingos nos i’s e nos deleitaria
com sua grande erudição e conhecimento de causa a respeito da política e da
sociedade atual, e mesmo assim de mais fácil leitura. Uma pena!
Ficha: “Cemitério de
Praga” – ECO, Umberto – Ed. Record, 2011- 480 págs.
Léo, pegar pesado com um autor consagrado é para poucos. Mas, deu certo. Ficou bom. Gostei da comparação com "explicar piada" - fiquei aliviada que isso possa acontecer até com Humberto Eco. Quanto a usar receitas... me lembra um delicioso livro de um escritor alemão - Johannes Mario Simmel - "Nem só de Caviar Vive o Homem". Ele conseguiu mesclar receitas com o livro de forma magistral.
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