quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Como as Democracias Morrem

 

A mim não cabe dúvida de que nossas vidas são compostas de eternos aprendizados. Quer sejam vivenciados diretamente, com circunstâncias e fatos que nos tocam e aos nossos próximos – amigos, parentes – quer seja por ocorrências que nos circundam como sociedade, em nossa cidade, Estado, País e até mesmo mundo afora. É inegável, por exemplo, de que o embate entre Rússia e Ucrânia nos faz rever conceitos e reviver pesadelos dos quais a humanidade às vezes se esquece que estão próximos. Assim como a morte de um vizinho nos traz à mente o quanto finito somos.



A obra assinada por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Ciência Política da Universidade de Harvard, traz à baila o impacto da emergência de Donald Trump para além do personagem empresarial, quando ele foi alçado ao posto de novidade política nos Estados Unidos. Mais do que isso, no texto do livro denominado “Como as Democracias Morrem”, publicado no Brasil pela Editora Zahar (a edição por mim lida data de 2018), em suas 270 páginas, tenta deslindar o que tal fenômeno tinha como significado para o mundo que girava a sua volta.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt

Nos últimos tempos, volta e meia temos sido abalroados com notícias das mais variadas fontes – não me reporto às chamadas fake news, mas sim aquelas comprovadamente de fontes sérias – que trazem dúvidas sobre qual o melhor modelo a ser adotado em termos de governabilidade em sociedade. “Se a mídia se sente ameaçada, pode abandonar o comedimento e padrões profissionais, num esforço desesperado para enfraquecer o governo” (pág. 79). De todo modo, Winston Churchill (1874-1965) já dizia: “A democracia é o pior sistema de governo desenhado pelo homem. À exceção de todos os demais”. Desta forma, sigo na mesma linha e acredito que com relação a isto não cabe dúvida. “Nem mesmo constituições bem-projetadas são capazes, por si mesmas, de garantir a democracia. Primeiro porque constituições são sempre incompletas. Como qualquer conjunto de regras, elas têm inúmeras lacunas e ambiguidades. Nenhum manual de operação, não importa quão detalhado, é capaz de antecipar todas as contingências possíveis ou prescrever como se comportar sob todas as circunstâncias” (págs. 100-101).

Porém, os distintos modelos de aplicabilidade da democracia perduraram por anos a fio em diferentes sociedades, muitas vezes suportados por teses que pleiteavam o alijamento de determinados grupos das tomadas de decisão. Se formos longe, a democracia grega era um exemplo notório, sendo regida e estando à disposição apenas àqueles que eram considerados cidadãos – nobres em sua maioria. Em “Como as Democracias Morrem” os autores por sua vez buscam exemplos no próprio Estados Unidos, país que simbolicamente representaria o conceito in natura de democracia ocidental – à parte o sistema eleitoral atual ainda ser discutível, que no decorrer de sua história federalista teve inúmeros atos segregacionistas que dificultaram enormemente a participação de grande parcela da população nos sufrágios, quer sejam estaduais ou nacionais. “Enquanto a comunidade política estava amplamente restrita a brancos, democratas e republicanos tinham muito em comum. (...) O processo de inclusão racial que se iniciou após a Segunda Guerra Mundial e culminou com a Lei de Direitos Civis de 1964 e a Lei do Direito de Voto de 1965 iria, enfim, democratizar plenamente a nação” (pág. 140).

Tendo isso em mente, os autores identificam exemplos em outros países que demonstram o quanto o modelo democrático pode ser fragilizado se não estiver pautado, em sua maioria, por regras não escritas que preservam o equilíbrio e deixam de fora do processo de possível escolha pela população de candidatos considerados outsiders. Tal fato se daria, no caso norte-americano, do qual eles possuem maior proximidade, com um sistema que eles chamam de freios e contrapesos. Determinados parâmetros tácitos eram respeitados por ambos os partidos majoritários, evitando o surgimento de forças contrárias ao respeito e à ordem, evitando o esgarçamento das relações.

“As duas regras informais decisivas para o funcionamento de uma democracia seriam a tolerância mútua e a reserva institucional. Tolerância mútua é reconhecer que os rivais, caso joguem pelas regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. A reserva institucional significa evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente seu espírito. Portanto, para além do texto da Constituição, uma democracia necessitaria de líderes que conheçam e respeitem as regras informais” (pág. 10).

Donald Trump acabou sendo, portanto, na visão deles, o ápice de um processo de contínua desconfiança mútua entre aqueles que eram até então somente adversários políticos, mas que se respeitavam e buscavam, passada a contenda eleitoral, encontrar caminhos para que suas teses não somente não fossem deixadas de lado numa administração contrária, mas como também tinham a esperança e trabalhavam para que elas fossem abraçadas e enxergadas como algo benéfico para a população em geral, apesar de virem do outro lado da trincheira. E esse termo aqui não é em vão...

Trincheiras foram construídas, num processo identificado no livro, a partir de uma cisão que ocorreu de forma paulatina, sorrateira, e que desembocou num governo, na maior economia capitalista do mundo, que levou a muitos duvidarem do que estavam vendo. A tolerância com os que pensavam de maneira diversa foi deixada de lado. Eles passaram a ser tratados como inimigos. Se este fenômeno é isolado – não parece ser, pelos inúmeros exemplos identificados na obra, que ocorreram e ainda ocorrem em outras partes do mundo – pelo menos no caso norte-americano, somente o futuro dirá. Mas os fatos estão aí. E podem servir de aprendizado. Para quem quiser e estiver disposto a ler ou ouvir, a depender do meio que utilizam.

E qual seria o resultado da morte do modelo democrático, caso a sociedade se torne surda aos sinais? Seria um governo autoritário. Para isso os Levitsky e Ziblatt, baseados em grande medida na obra do alemão Juan Linz (The Breakdown of Democratic Regimes – 1978) identificam quais parâmetros deveriam servir de norte para que os eleitores que acompanham o debate político em seus países. “Nós devemos nos preocupar quando políticos: 1) rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo; 2) negam a legitimidade de seus oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia” (pág. 32).

Desta forma, o que observamos como um fato corriqueiro, ou quando estamos inseridos num contexto em que nos acostumamos com o que de mais estapafúrdio o ser humano pode gerar, nos vemos cegos a sinais óbvios. Passa a ser necessário um exercício constante, de cada um de nós, a nos questionar se o que está sendo passado é de fato verdadeiro ou é uma mera interpretação dos fatos. Estamos dispostos isso? Dá trabalho, mas o resultado e o bem-estar de nossa comunidade, onde quer que estejamos, depende diretamente disso. Se isto é importante numa eleição de condomínio, o que dirá quando da escolha de quem irá governar um país? “Nenhum líder político isoladamente pode acabar com a democracia; nenhum líder sozinho pode resgatar uma democracia, tampouco. A democracia é um empreendimento compartilhado. Seu destino depende de nós” (pág. 217).

6 comentários:

  1. Parece que foi analisado o Brasil.

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  2. Tô doida pra ler esse livro. Via WhatsApp.

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  3. Esse livro é ótimo.. professor recomendou em uma das disciplinas do doutorado 😄. Via WhatsApp.

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  4. Li e reli esse livro quando ele foi lançado, tava cursando ciência política em Lisboa na época. Tem coisas boas, mas tem sérios problemas. Tem uma crítica ao livro que compartilho, de um professor da UnB: https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb/posts/10213262365774590

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  5. [21/9 08:28] Afonso C. via WhatsApp: É verdade, caro Leopoldo.
    Somos eternos aprendizes. Obrigatoriamente eternos, considerando as constantes mudanças de conceitos ao sabor dos acontecimentos.

    Você cita, logo no início, a guerra na Ucrânia como um desses acontecimentos.
    Interessante notar que ela começou no início de 2022, dois anos depois do lançamento desse livro que você resenha.
    O que talvez provoque mais uma mudança de conceito não considerado no livro.

    Resenha que estimula uma série de questões:

    Quão relativo é o conceito de democracia ?

    Será que o preço da democracia, assim como o da liberdade, é a eterna vigilância ?

    Tolerância mútua e reseverva institucional seriam regras suficientes para garantir plena democracia ?

    Ou a sempre sonhada igualmente social deve entrar nesse pacote democrático ?

    São questões como essas que tornam esse tema fascinante, como demonstra sua resenha
    [21/9 08:52] Afonso C.: Só pra fechar...

    Acho que democracia mesmo só existe numa espécie de metaverso

    Na prática é uma coisa quase fugidia

    E mais na prática ainda, pra ser mais direto, acho que neguinho não tá muito preocupado com isso.
    O que importa é a economia.

    É a economia, estúpido !!!!

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  6. Excelente. Via Instagram

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