segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

ESCRAVIDÃO - Volume 1

 

A partir desse post vamos fazer uma análise de cada um dos volumes da trilogia escrita por Laurentino Gomes que tem por tema central a escravidão e o seu impacto na sociedade brasileira atual. O título não poderia ser outro e mais direto: “Escravidão”. Para tanto, o laureado autor paranaense se predispôs a uma longa jornada, por distintos continentes, em meio a um mundo que logo em seguida enfrentaria uma pandemia. O primeiro volume teve sua edição original em 2019 e é composto por 30 capítulos centrais, distribuídos por 479 páginas. A publicação ficou a cargo da Editora Globo Livros.

Fonte: https://www.folhape.com.br/cultura/jornalista-laurentino-gomes-lanca-livro-no-recife-sobre-escravidao/120538/

Sempre muito organizado e com uma prosa envolvente, não me surpreendeu que a obra, já em seu primeiro volume, deixa o leitor preso e curioso sobre as informações pesquisadas e apresentadas. Laurentino indica que os 3 volumes estão organizados por ordem cronológica, sendo o de número 1 destinado a cobrir o período que vai desde o primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares.

Na abertura, logo nos capítulos iniciais, existe uma preocupação em tirar um véu mítico do leitor mais desavisado, apontando para as origens históricas na humanidade do fenômeno da escravidão. O próprio termo em Inglês que o designa (slavery) tem a mesma origem etimológica da palavra que denomina os povos eslavos, de pele branca. Isso demonstra que todas as raças já estiveram, em algum momento, sujeitas a serem subjugadas ao papel de escravos, normalmente fruto de guerras, antes desta vir a se tornar um vil comércio.

Obviamente tal fenômeno se tornou mais agudo com a exploração dos povos africanos, algo que ocorria algumas vezes com apoio de tribos daquele continente que, ao derrotar os seus inimigos ou ao sair em sua caça, os vendiam como mercadorias para os Europeus, ávidos por sua mão de obra para uso para os mais diversos empreendimentos, quer seja na metrópole, quer seja nas colônias. Esse equilíbrio entre o que é real – em meio a uma extensa pesquisa bibliográfica – e o que é ficção ou imaginação é construído com extremo cuidado, de modo a não tirar o peso exato de atos que conformaram o que hoje se constitui o chamado racismo estrutural presente na sociedade moderna. Fica claro, a partir de determinado ponto, que a cor da pele passou a ser fator predominante para definir entre o senhor e a propriedade, principalmente no hemisfério Ocidental.

“Os números do tráfico de escravos em território muçulmano na África são impressionantes. Cerca de 12 milhões de negros africanos foram capturados e exportados através do Saara, do Mar Vermelho e do Oceano Índico entre os séculos VII e XIX. Ou seja, o mesmo número de cativos embarcados para a América ao longo de 350 anos. Só no século XIX, o número de cativos transportados por essas rotas chegaria a 3,8 milhões. O Império Otomano sozinho comprava entre 16 mil e 18 mil homens e mulheres todos anos até o final do século XIX. A partir do século XVI, mercadores muçulmanos também venderam para a América outro milhão de cativos, capturados e embarcados nas regiões da Senegâmbia e da Alta Guiné. ‘A escravidão já era fundamental para a ordem social, econômica e política em toda região norte da África, na Etiópia e na costa do Oceano Índico por muitos séculos antes da chegada dos europeus’, afirmou o historiador Paul E. Lovejoy. ‘O cativeiro era uma atividade organizada, sancionada pela lei e pelos costumes’” (pág. 78).

O decorrer dessa trajetória abordando diferentes aspectos, tais como o acondicionamento nos navios negreiros, verdadeiros infernos flutuantes nos quais os que sobreviviam não sabiam bem ao certo que lhes aguardava nos portos de chegada. É chocante ver as gravuras que retratam o espaço exíguo no qual os escravos eram transportados, algo que ganha cores mais fortes e sombrias quando tomamos conhecimento da situação no interior de tais embarcações, de podridão extrema.

A perda de sua identidade fica clara, com o passar do tempo. Povos dominantes no continente africano, quer se entenda por dominância o ato de ser senhor de si numa vasta região ou de um conhecimento armazenado, se esvai em meio à conjunção do lugar comum pelo colonizador europeu de que todo são o mesmo elemento, sem suas características específicas. “As diferenças entre esses povos e culturas eram tão marcantes quanto a própria geografia. No auge do seu poder, no século XIV, o Mali teria sido a mais rica sociedade do planeta. Tombuctu, um dos centros difusores do conhecimento no mundo islâmico, abrigava uma universidade e uma grande biblioteca, frequentada por teólogos, filósofos, poetas e escritores. Era um lugar cosmopolita para os padrões da época. Nos seus mercados, via-se gente de todas as origens, incluindo iraquianos e egípcios. Na atual Nigéria, hábeis metalúrgicos igbos fabricavam barras e pulseiras de cobre e pequenas peças de ferro em formato de enxadas em miniatura chamadas anyu, que eram usadas em trocas comerciais nas feiras de toda a região. Em meados do século XVII, os fulani, criadores de gado na região de Futa Jallon, na Senegâmbia, exportavam cerca de 150 mil peças de couro por ano” (pág. 144).

A guerra entre diferentes nações europeias para o domínio dos mares e do tráfico negreiro também é descrita. Povos que para muitos, como os escandinavos, estariam distantes de tal realidade, também ali se encontravam buscando lucrar com o comércio de seres humanos, se estabelecendo ou lutando por portos no litoral africano. Isso sem falar no já conhecido embate entre portugueses, espanhóis e holandeses, tão presente em nossos livros de História – e algumas vezes resolvidos não somente na ponta da espada, mas também em transações comerciais entre os Governos e seus representantes. A importância de Angola como porto de origem, o avanço na coleta de dados estatísticos, e a percepção de Zumbi mais em sua importância como um mito, um símbolo no combate à escravidão do que exatamente uma figura real, que teve de fato todos os adjetivos com os quais ele é conhecido até mesmo em fontes que deveriam ser fidedignas, mas que demonstram ter embarcado em textos sem o menor fundamento em pesquisas sérias, também estão presentes nesse mosaico de diferentes visões sobre esse tema.

Outro fator que não é deixado de lado é o papel da Igreja Católica naquela época. “Alguém hoje poderia sugerir que apontar a Igreja como cúmplice do regime escravista no passado seira incorrer em ‘anacronismo’, (...), que consiste no uso indevido de valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens e acontecimentos ou fenômenos de outra. De fato, entre os séculos XV e XVIII, a escravidão era uma prática aceita sem grandes questionamentos quase no mundo todo – menos entre os próprios cativos, obviamente. (...) O problema, no caso da Igreja, é que havia uma contradição insolúvel entre suas práticas e os ensinamentos de Jesus Cristo que ela pregava – ou seja, a própria razão de sua existência. Como combinar uma prática tão devastadora, como a escravidão, e os ensinamentos dos Evangelhos, que pregam amor, bondade, justiça, misericórdia e acolhimento do estrangeiro e do diferente?” (págs. 338-339).

Enfim, o leitor fica ansioso por acompanhar a continuidade desse descortinar de elementos, ao mesmo tempo que busca se preparar espiritualmente para absorver os horrores de algo abominável. Que venha o Volume 2!

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