sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Pintassilgo

Camadas. Estórias sobrepostas que vão se costurando, ora sendo um ponto mais difícil que outro, dificultando um tanto a fluidez da leitura. Tecnicamente, em resumo, seria este o meu parecer sobre “O Pintassilgo”, obra de Donna Tartt, editada pela Companhia das Letras em 2014. Um livro de peso – literalmente, pois são 726 páginas – e fôlego, um fôlego que por alguns momentos o leitor o busca para seguir adiante, e por outros para ter a capacidade de acompanhar o entremear do enredo.

Saindo um pouco do aspecto técnico para ir para o sentimento. É um livro para os fortes, como gosto de dizer quando topo com obras de densidade acima do normal para sua compreensão e absorção. Digo isto por ela lidar, através de seu protagonista – Theodore Decker, um jovem antiquário – com temas difíceis de digerir, tais como o vício nas drogas (quaisquer drogas), as conseqüências sobre um jovem que passou por um estresse pós-traumático; e a relação de dependência e desespero que se assoma às pessoas quando se agarram a um querer impossível de alcançar. Ou seja, sentimentalmente falando, é um livro triste, uma estória longa, que em dados momentos te envolve, como se fosse uma nesga de ar que um afogado alcança, para logo depois se afundar num mar tortuoso.



E como se dá esse enredo, que tem sua primeira respiração após as 100 primeiras páginas? Isso mesmo, dando a dimensão do esforço, a possibilidade de se entusiasmar com a trama passa por um prólogo de 100 páginas, necessário para se conhecer as raízes dos transtornos por que passa o protagonista. Decker está com sua mãe, se dirigindo para a escola para uma reunião com o diretor. Enquanto se debate sobre as conseqüências de tal encontro, a mãe se desvia ligeiramente do caminho, o que leva a uma catástrofe que a leva à morte. Daí surge a grande asa negra, citada acima, na vida de Decker – já tão conturbada, pois seus pais não são (ou não foram) o modelo de casal perfeito: o chamado estresse pós-traumático.

O transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) é um distúrbio da ansiedade caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais em decorrência de o portador ter sido vítima ou testemunha de atos violentos ou de situações traumáticas que, em geral, representaram ameaça à sua vida ou à vida de terceiros. Quando se recorda do fato, ele revive o episódio, como se estivesse ocorrendo naquele momento e com a mesma sensação de dor e sofrimento que o agente estressor provocou. Essa recordação, conhecida como revivescência, desencadeia alterações neurofisiológicas e mentais.

Toda essa situação alcança um garoto de 13 anos de idade, que sem nenhuma base emocional tem que passar a lidar com uma série de não-referências alcançadas.

Mas esta é apenas a camada superficial da estória. Com o desenrolar do enredo, ganha centralidade uma obra prima, um quadro, “O Pintassilgo-Comum”, do pintor holandês Carel Fabritius, que dá nome ao livro em si.

Fabritius criou uma ilusão extraordinária de um pássaro real, com detalhes que nos permitem ver que a ave está acorrentada à sua caixa de alimentos. A sombra da caixa sobre a parede de gesso e a expressão do pássaro são extraordinárias. Muitos pensam que ele vai começar a cantar a qualquer momento.

O quadro passa a ser o norte que de uma certa maneira conduz todos os atos do protagonista, levando-o ao ponto de se envolver com o mercado de arte, ao ter um mentor profissional, James Hobart, um restaurador. Uma nova camada é construída a partir daí.

Porém, em que pese todo o apelo e os ganchos criados por Donna Tartt, talvez o que mais me tenha incomodado é o mergulho nas drogas e a exposição de toda a melancolia e tristeza que cerca esse submundo. Seria algo como se tivessem transposto para aquelas linhas toda a atmosfera do filme “Trainspotting”, de Danne Boyle (1996)¹. Um sentimento lúgubre, como se a vida não tivesse saída, que os amores perdidos, ou quaisquer outras razões, fossem minimamente suficientes para se jogar tudo para o alto e se desfazer em carreiras de pó, no álcool, maconha, comprimidos, um turbilhão de coisas que somente levam ao fundo do poço...

Conviver com esse mar encrespado não é fácil, e como eu já disse anteriormente, quando a autora leva tais digressões a fundo, você, leitor, fica meio que desejando que passe logo, que ganhe uma dinâmica, que saia daquela tristeza reflexiva e que se vá para mais ação. Diria, então, que eu pensaria bem antes de indicar tal livro. O leitor tem que ter o espírito dos bravos para não se deixar envolver pelo clima proposto. Tartt ganhou o Pulitzer com esta obra, não tendo dúvida de que é algo que envolveu um engenho fabuloso, no mínimo de pesquisa sobre os diferentes universos navegados – obras de arte, drogas, jogatina, depressão, etc. Todos eles retratados de uma maneira meticulosa. Seu mérito maior foi ter conseguido costurar tais universos, criando uma estória com início, meio e fim, sem se perder nas saídas fáceis que poderiam ter surgido no meio do caminho.

Pequenos detalhes que às vezes fazem a diferença

Impressionante a ótima escolha da autora para as citações que abrem os capítulos. Vou citar duas, a título de exemplo:

Capítulo II – Arthur Rimbaud
Quando somos muito fortes – quem recua?
Muito felizes – quem nos ridiculariza?
Quando somos muito maus – o que podem fazer conosco?

Capítulo IV – Schiller
Não é a carne e o sangue, mas o coração que faz de nós pais e filhos.

Outro aspecto que me chamou a atenção é o cuidado da autora é enquadrar o livro no uso dos instrumentos modernos de linguagem. Levando-se em conta que o protagonista inicia o livro com 13 anos, e chega ao seu final com vinte e poucos, ela buscou retratar o universo atual de tal geração, citando Harry Potter – Potter foi o apelido com o qual ele foi alcunhado pelo seu melhor amigo, Boris, acompanhando pela maior parte da obra; Facebook e mensagens de texto trocadas, com a nova linguagem gerada a partir daí.

Conclusão

Talvez eu tenha sido muito severo com a obra, mas procurei passar para vocês o quanto ela tecnicamente e sentimentalmente me tocou. De todo modo, quem disse que sou o dono da verdade? De repente me vejo exposto nas palavras de um de seus principais personagens:

E sei como você pensa, ou como gosta de pensar, mas talvez esse seja um exemplo em que não dá pra reduzir tudo a puro ‘bem’ ou ‘mal’, como você sempre quer fazer. Como suas duas pilhas separadas, mal aqui, bem aqui. Talvez não seja assim tão simples. (pág. 694)

É, talvez. Mas só sei que é um livro que eu não daria para a minha filha, pelo menos não enquanto ela não tivesse maturidade suficiente para enfrentá-lo.


1 – http://www.imdb.com/title/tt0117951/ - acessado em 06 de Fevereiro de 2015

8 comentários:

  1. Este é um livro muito diferente daqueles que você costuma ler. De fato, foi um desafio no qual você se saiu muito bem. Diferente de você, a história entrou na minha mente desde as primeiras páginas. Li com rapidez porque queria saber o "e agora?", "e depois"? Eu, claro, recomendo o tijolo...rs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Su, talvez o que tenha me incomodado seja o fato de que Tartt tocou em seu livro temas dos quais me causam espécie. E esses temas foram objeto de longas divagações. Ou seja, passo grande parte do livro querendo que o "disco mude" e que passemos para uma outra dinâmica. Acabou tornando, por vezes, um exercício "chato" de leitura.

      Mas concordo que cada obra toca os distintos leitores de maneiras diferentes. Que bom que foi uma leitura prazerosa para ti. Cada livro terá, pelo menos, um leitor que fará jus.

      Li, após a escrita do texto acima, uma crítica à obra. O crítico, ao final, coloca que Tartt nos leva a questionar o limite entre a literatura comercial e a literatura como arte. E chega a conclusão que isto pouco importa. Entendi na linha apontada acima. O que interessa é encontrar o leitor que a aprecie.

      Por último, você tem razão quando diz que "é um livro muito diferente daqueles que você costuma ler". Não existe uma linha reta, você tem que se acostumar com métrica diferente, ele não facilita, eu diria, que é uma característica que particularmente não me agrada para um livro de ficção. Acredito que um autor pode cativar o leitor por seu enredo, não necessitando de artifícios rebuscados no modo de escrever. Mas voltando ao meu argumento inicial, existirão aqueles que apreciarão.

      Excluir
    2. Ah, por último, gostou do final?

      Excluir
    3. Era para eu ter respondido aqui...ahahah

      A resposta é não. Eu realmente esperava um final empolgante, como o livro foi, na minha opinião.

      Excluir
  2. Ah, Léo, iniciarei por a sua pergunta: não, achei o final decepcionante.
    Interessante essa sua observação de que o estilo de escrita é complicado e rebuscado em sua dinâmica prejudicando a cadência da leitura. Não foi bem isso que você escreveu, mas foi isso que entendi. Eu não percebi isso na leitura. Provavelmente, gosto desse tipo de redação. Ah, essa diversidade de sentimentos é muito legal!

    Agora eu pergunto: qual o critério de escolha de seu interesse? Pode ser emocional, também? Como por exemplo a aparência do livro?

    ResponderExcluir
  3. Capa, orelha do livro, e na dúvida uma folheada no mesmo. Com o tempo fazemos um cadastro mental dos autores q.mais nos agradam.

    ResponderExcluir
  4. Capa, orelha do livro, e na dúvida uma folheada no mesmo. Com o tempo fazemos um cadastro mental dos autores q.mais nos agradam.

    ResponderExcluir
  5. Eu também, mas muitas vezes, escolho um que me "leve" a lugares que eu nem penso em visitar.
    Mas, minha estratégia predileta é ler as críticas literárias do NYT e olhar os premiados. Geralmente combinam com o meu gosto.

    ResponderExcluir