segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Escravidão Volume III

 

Termino finalmente o périplo por essa longa jornada que nos foi apresentada por Laurentino Gomes. O autor, nesse Volume III da trilogia “Escravidão” – editora Globo Livros – 592 páginas em sua 1ª edição, publicada em 2022 – traça a reta “final” deste fenômeno histórico relatando os fatos ocorridos desde a independência do Brasil, em 1822, até a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Além disso, os anos imediatamente seguintes são descritos nos últimos capítulos, de modo a que nós leitores tenhamos a exata noção do não compromisso pelo Governo Brasileiro com a inserção daquele grupo de seres humanos que se viu, de repente, sob nova condição ao olhar do outro. Tal postura contribuiu, e muito, para o estado de coisas que permanece até hoje.

 


Mas estamos aqui para fazer uma análise não sobre o tema em si, o qual o autor discorreu longamente durante tantas páginas distribuídas pelos três livros por nós abordados. Mas sim sobre o mérito e a forma de apresentação literária realizada pelo mesmo. Nas resenhas realizadas sobre os dois volumes anteriores já havíamos identificado que, tanto como riqueza como fraqueza, poderia ser entendido a exposição de um quantitativo enorme de dados. Não imaginamos que Laurentino tenha empreendido tarefa de tal envergadura para gerar livros somente para consulta, mas também para que pudessem ser objeto de leitura e reflexão.

 

Em que pese o lado da fraqueza ter sido muito por mim ressaltado quando do último post, com a resenha realizada na metade deste ano, imaginávamos que talvez algo de diferente pudéssemos ter quando da conclusão. Isso não foi de todo alcançado no Volume III. A prosa utilizada muitas vezes ainda se “perde” num grande cabedal de informações. Porém também existem momentos nos quais nos vemos enredados por temas que nos entusiasmam. Algo similar ao que dissemos sobre a exposição da história de Chica da Silva, no volume II, salvo engano.

Chamou-nos atenção, por exemplo, que o autor traçou, logo no início do Volume III, uma linha clara de transparência quanto ao seu entendimento explícito de que seu trabalho vinha a expor um genocídio, e não menos do que isso, e que os leitores, por mais românticas que fossem as palavras que se seguiriam, não deveríamos nunca nos esquecer disso. Na página 36, já na Introdução, ele se utiliza de duas definições retiradas de dicionários, um de língua inglesa – Webster’s Third New International Dictionary of the English Language – e um em português – Dicionário Escolar do Professor (Francisco da Silveira Bueno, 1963). Na primeira coloca-se o genocídio como sendo “O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento), calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, religião ou a cultura de um grupo”. Na segunda tal ato é categorizado como “Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos”.

Dito isto, destacamos então alguns personagens por ele ressaltados como sendo símbolos de uma época. No capítulo 2 deste volume ele descortinou aquele que teria sido o Comendador Joaquim José de Sousa Breves. “Conhecido como o ‘Rei do Café’, Sousa Breves foi também o maior senhor de escravos do Brasil em todos os tempos. Suas senzalas chegaram a concentrar 6 mil homens, mulheres e crianças em regime de cativeiro. Dono de navios negreiros, envolveu-se no tráfico ilegal de africanos, desembarcados clandestinamente em praias e portos do litoral fluminense sob o olhar cúmplice das autoridades locais. (...) Em resumo, Sousa Breves caberia por inteiro na moldura de um retrato da aristocracia rural escravocrata brasileira no século XIX. Fazendeiros, senhores de engenho, pecuaristas e produtores de café, donos de latifúndio que se estendiam pelas profundezas do Brasil, foram o alicerce da monarquia brasileira. (...) Sousa Breves sintetizou essa trajetória como ninguém, mas não chegou a ver a mudança de regime. Morreu em 30 de setembro de 1889, seis semanas antes da Proclamação da República, desgostoso com o fim da escravidão e com os rumos do próprio Império, os dois pilares da brasilidade que ajudara a sustentar ao longo daquele século. Feita a Abolição, suas fazendas entraram em ruína” (págs. 62-63).

Esses trechos acima são apenas parte de um capítulo inteiro dedicado a esse personagem, algo do que sentimos falta para melhor ilustrar o impacto do que estava sendo exposto ao leitor. Tal abordagem, durante este terceiro volume, somente voltaria a ser utilizada já perto do seu final, nos últimos 4 capítulos. Naquele denominado “Maré Branca” são narradas as trajetórias dos norte-americanos, confederados do Sul dos EUA, derrotados na Guerra Civil ocorrida naquele país justamente por conta do embate com o Norte que defendia o fim da escravidão, que viriam a aportar aqui no Brasil, numa tentativa de colonizar novas terras, muitas vezes sob o beneplácito de governos locais. Desta iniciativa restaram hoje cidades como Americana e Santa Bárbara D’Oeste, no interior de São Paulo (páginas 463-478).

Já os três capítulos seguintes, não por coincidência os 3 últimos da obra, narram os momentos imediatamente anteriores à Abolição no Brasil – “Pânico” (479-490) é o título do antepenúltimo – quanto o momento em si, no penúltimo capítulo denominado “Isabel”, aí focando na figura da Princesa Isabel (491-514) e sua relação com Pedro II, seu pai, aparentemente um monarca que se submeteu aos escravocratas, apesar de ser favorável ao término da escravidão; e por último, o após o advento da Lei Áurea, “O Dia Seguinte” (515-534), com o impacto gerado sobre a estrutura vigente à época, e em como isso acabou se revertendo em benefício da classe dominante que emergiria após o surgimento da República.

Luiz Gama
Não posso me esquecer, no entanto, em que pese o que foi dito acima, de três joias apresentadas no meio do livro – são os capítulos denominados respectivamente “Os Abolicionistas”, “O Precursor” e “A Conversão” (páginas 367-418). Neles Laurentino nos dá detalhes de figuras muitas vezes esquecidas, mas deveras importantes para o término da escravidão no Brasil. Seriam eles os baianos Luiz Gama, André Rebouças e Castro Alves, do fluminense José do Patrocínio, do pernambucano Joaquim Nabuco e do paulista Antônio Bento. Especial ênfase é dada a Luiz Gama, personagem central do capítulo denominado “O Precursor”. Figura por mim desconhecida, como também o fato, citado durante esses 3 capítulos, de que o Ceará foi então a primeira província a abolir a escravidão no País. Luiz Gama é assim descrito: “(...) arauto, precursor e abridor de caminhos que levariam ao fim da escravidão (...). Morreu em 24 de agosto de 1882, seis anos antes da Lei Áurea. Foi chorado por multidões que acompanharam o cortejo fúnebre pelas ruas de São Paulo, incluindo milhares de homens e mulheres negros que, graças a ele, tinham obtido a liberdade e alcançado justiça nos tribunais” (pág. 385).

Diria então para vocês que, mesmo tendo minhas ressalvas na dinâmica proposta por Laurentino para seu trabalho, dado que os muitos dados acabam soterrando o espaço dado a figuras como as citadas acima, que por si só valeriam obras dedicadas exclusivamente aos mesmos, pelo menos a trilogia nos serve como um alerta, grandiloquente, do ponto a que o ser humano pode chegar para subjugar seu semelhante. Que nós não possamos nunca deixar isso acontecer, sabedores que somos que, infelizmente, tal praga ainda persiste em alguns lugares do mundo. Aqui no Brasil mesmo, práticas abusivas de trabalho no interior do País, podem ser classificadas dessa forma. Minha sugestão é que tenham acesso e leiam os três livros, mas como alternativa busquem ter uma leitura em paralelo para melhor dar andamento ao seu gosto pela literatura, talvez uma ficção mais leve ou algo que uma abordagem diferenciada, mais direta, que auxilie o entendimento da obra.

6 comentários:

  1. Como sempre, uma resenha detalhada e imparcial, que muito nos conta sobre o livro e o que esperar de seu conteúdo. Parabéns pelo conteúdo e muito obrigada por nos brindar com este texto!

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  2. Gosto mais de suas análises quando elas possuem essa substância textual. Muito bom!

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  3. Laurentino Gomes é marginalizado pelos eruditos por ser jornalista. Eu li os dois primeiros volumes e gostei muito do texto, cita muitas referências de acadêmicos e introduz bem os temas.

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    1. Obrigado, Abrantes. Comparando as duas trilogias por ele escritas, gosto mais da composta pelas obras 1808, 1822 e 1889. Mas Escravidão tem o mérito de registrar e condensar um grande volume de dados que estavam até então dispersos. Minha crítica está centrada no fato de que ele poderia ter feito escolhas melhores para conduzir a narrativa, que prenderiam mais o leitor.

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