domingo, 2 de setembro de 2012

A Construção do Sistema de Patentes no Brasil

Um grande avanço ocorrido nos últimos 20 anos na literatura brasileira foi o encontro do veio histórico como um caminho a ser trilhado rumo à categoria dos bestsellers. Posso estar cometendo algum erro, mas os dois autores que mais rapidamente me vêm a mente para exemplificar o que estou dizendo são Eduardo Bueno, autor, dentre outros, da coleção Terra Brasilis (A Viagem do Descobrimento; Náufragos, Traficantes e Degredados; Capitães do Brasil; e A Coroa, a Cruz e a Espada) (1), e mais recentemente a obra “Brasil: uma História – Cinco Séculos de um País em Construção”. Além dele ainda não há como esquecer o fenômeno Laurentino Gomes, com as obras “1808” e “1822”, apresentando duas épocas e seus acontecimentos fundamentais – que desmistificam algumas alegorias, aliás, mérito dos dois autores aqui citados – para a formação do Brasil e seu povo (2).

Não é esta a pretensão de Leandro Miranda Malavota, cuja obra “A Construção do Sistema de Patentes no Brasil” vamos aqui analisar. Esta partiu de sua tese de Doutorado, defendida em 2011 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF). Tendo já esse viés por premissa entende-se que o linguajar está mais voltado para o meio acadêmico, característica completamente distinta dos dois autores acima citados.


Porém, mesmo sem ter tal intenção Malavota não deixa de se aproveitar desta tendência. Porque sendo o tema Propriedade Intelectual, e mais especificamente Patentes, um tanto quanto áridos mesmo para os já iniciados na matéria, aguçar a curiosidade do leitor inserindo-as num contexto histórico, de construção do perfil da sociedade brasileira futura, que iria se consolidar durante o século XX no que toca às bases de seu desenvolvimento industrial, acaba sendo o grande atrativo do agora livro.

Podemos perceber, claramente, principalmente em sua segunda metade, as diferentes articulações feitas e os diálogos empreendidos no seio da classe política brasileira e internacional (3) para atender distintos interesses dos grupos então dominantes. O contraponto entre conservadores e liberais, no caso interno brasileiro, visto com riqueza de detalhes, ora buscando atingir um determinado patamar de dominação na cena política, servem, de um certo modo, para exemplificar como a Monarquia, como modo de Governo, foi pouco a pouco sendo corroída pelas suas contradições em lidar com a grande quantidade de vertentes que uma matéria específica poderia ter em termos de impacto da sua possível qualificação enquanto governança. A identificação da origem dos políticos serve inclusive para dar verossimilhança à narrativa, quando podemos perceber os traços de ligação com a oligarquia ou com a classe industrial e de comércio.

Um dos grandes méritos do autor foi a pesquisa profunda e de fôlego feita sobre as chamadas fontes primárias, ao estudar com lupa pedidos de patente cobrindo quase todo o século XIX. Demonstrou-se, assim, que a partir da análise dos pareceres de tais documentos, inseridos devidamente no contexto histórico-político da época, foi possível traçar um quadro claro de como a burocracia estatal brasileira, voltada para o gerenciamento da área tecnológica, construiu-se sob a influência dos mais amplos interesses de grupos específicos, e não necessariamente, em que pese o discurso oficial, para atender as demandas específicas da sociedade como um todo.

Nesse sentido, percebe-se que o principal anseio do autor, o de revelar a importância de uma abordagem histórica para o estudo de uma área a qual a maioria das obras está baseada ou no viés jurídico ou em estudos de desenvolvimento científico (com maior prevalência do primeiro, deve-se dizer) foi alcançado a contento. Porém, não podemos enganar-los. Para se ultrapassar a primeira metade do livro há que se ter um interesse especializado na matéria. Aventurar-se, sem ter tido pelo menos um primeiro insight, uma introdução que seja ao tema, poderá gerar um desassossego no leitor, que assim não virá a ter o ânimo necessário para chegar num ponto de maior atratividade. Ao final, ele próprio percebe que ainda há um longo caminho a trilhar:

“O trabalho do historiador passa por uma série de escolhas, incluindo-se, entre elas, a que face do fenômeno histórico estará a sua lente prioritariamente voltada, posto que a plena apreensão de sua totalidade é um objetivo sobre cujo alcance não nutre mais ilusões. Resignar-se com suas limitações, entretanto, não significa reduzir a importância do historiador nem atenuar sua responsabilidade como intérprete social. A sensação de frustração pode ser mitigada quando se percebe que qualquer iniciativa investigativa provoca e aguça o faro dos seus pares. A pesquisa histórica, portanto, nunca se conclui ou exaure, mas se renova pela ação dos atores inseridos no campo do conhecimento, estes impulsionados por novos tipos de questionamentos, olhares e interpretações” (pág. 258 – grifos nossos).

Ter uma noção dos limites parece ser também outra qualidade do autor. Ele aqui apresenta sua percepção de que se aproxima, e muito, dos seus pares, já iniciados na matéria, e não de novatos. Mas crê, tem esperança, enfim, de ter aberto um novo horizonte em termos de pesquisa sobre a mesma. Acreditamos que tenha tido êxito.

(1)   A coleção Terra Brasilis vendeu mais de 500 mil exemplares, e “Bueno se tornou o primeiro autor brasileiro a possuir simultaneamente quatro livros no topo das listas de mais vendidos dos principais jornais e revistas do país” – Fonte: http://www.45graus.com.br/brasil-uma-historia-de-eduardo-bueno-mostra-a-historia-de-um-pais-em-construcao,geral,66638.html – acessado em 02 de Setembro de 2012;
(2)   “O que o autor não esperava era que o tema atrairia tantos interessados. As duas obras chegaram, juntas, à marca de 1,2 milhão de exemplares vendidos”. Fonte: http://portalimprensa.uol.com.br/noticias/brasil/44430/livros+1808+e+1822+de+laurentino+gomes+ultrapassam+1+milhao+de+exemplares+vendidos/ - acessado em 02 de Setembro de 2012.
(3)   Esta mais especificamente no que tange aos movimentos dos distintos governos em prol de sua indústria nacional ao se perceberem fragilizados na proteção dos inventos desenvolvidos internamente, em seus territórios, quando da emergência das chamadas Exposições Internacionais. Estas eram grandes eventos em que se expunha o que de mais moderno havia no mundo tecnológico até então. “As cidades onde as exposições foram montadas - Londres, Paris, Chicago, entre outras - foram os epicentros da modernidade. [...] As exposições universais queriam ser um retrato em miniatura desse mundo moderno avançado, composto de espetáculos nos campos da ciência, das artes, da arquitetura, dos costumes e da tecnologia. A idéia era mostrar e ensinar as virtudes do tempo presente e confirmar a previsão de um futuro excepcional. A torre Eiffel, o palácio de cristal e a roda gigante eram os símbolos visíveis do avanço tecnológico exibido nas feiras mundiais” (a). Estas vieram a ocorrer, principalmente, a partir de 1862, chegando a totalizar 17 em 60 anos (b). A ausência da proteção quanto às cópias e a própria concorrência pela introdução de tais melhoramentos em distintos mercados fez com que se somasse a um movimento de harmonização de padrões mundial o discurso de homogeneização da legislação patentária em âmbito internacional, que veio a culminar com a assinatura da Convenção da União de Paris (CUP), em 1883, por França, Bélgica, Espanha, El Salvador, Brasil, Guatemala, Itália, Países Baixos, Portugal, Sérvia e Suíça, já em 1883, tendo a adesão ainda de Grã-Bretanha, Tunísia e Equador em 1884 [MALAVOTA – pág. 240 – nota de rodapé nº 74]. (a) Fonte: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/CentenarioIndependencia/ExposicoesUniversais. (b) Fonte: http://pt.scribd.com/doc/96939742/exposicoes-internacionais .
(4)   Não há como não deixar de fazer um comentário particular: Malavota é um rubro-negro convicto, torcedor do Flamengo com toda paixão que alguém pode nutrir por um time. Frequentador de estádio, um pouco do seu discurso de consciência em termos das limitações de sua obra poderia facilmente ser traçado como um paralelo com a equipe atual para a qual torce. Mas, mais do que isso, enseja um sentimento desmistificador em relação ao estereótipo do acadêmico alheio às coisas mundanas da vida. E como é tão bom saber que até mesmo os historiadores, com seu linguajar rebuscado, também tem um lado popular em sua alma. Somos ou não somos, os seres humanos, multifacetados, que podemos ir do erudito para o palavreado mais chulo, dependendo do público objetivado? Talvez tenha sido pela exposição de tal veia que os autores mencionados logo no primeiro parágrafo tenham, ao transfigurar isso para o discurso adotado, feito se aproximar do conceito de “celebridades literárias”. Quem sabe um dia Malavota não tente navegar nesses mares por outros já navegados.

Ficha Técnica:

Malavota, Leandro Miranda
A Construção do Sistema de Patentes no Brasil: um olhar histórico
Rio de Janeiro – Ed. Lumen Juris, 2011
308 páginas.

9 comentários:

  1. Querido amigo Leopoldo:

    Deixo aqui o registro de minha satisfação com os seus comentários. Você não apenas captou bem os pontos altos e baixos do livro, como também sintetizou em poucas linhas o espírito que motivou esse trabalho. De fato, como desdobramento de uma tese acadêmica, o texto é "pesado". A temática é complexa, as discussões teóricas longas e os exemplos históricos apresentados - a partir da descrição e análise de fontes primárias - muitas vezes se mostram cansativos. É uma leitura própria a pessoas inseridas no campo da PI, que conheçam sua lógica e seus mecanismos. E mais, não é qualquer "iniciado" (como você prefere chamar) que vai se interessar pelo texto, mas somente aqueles que não se contentam com um discurso tecnicista ainda hegemônico na área, buscando respostas em dimensões mais amplas da experiência social. Creio que alguns resultados da pesquisa são bastante interessantes. Contudo, independentemente de seu valor acadêmico, o que mais me importa nesse trabalho é o recado dado aos pesquisadores, sejam estes historiadores ou não. "Amigos, não ignorem a História como ferramenta de análise social! Percebam que nada no campo da PI é realidade dada; ao contrário, tudo é construção histórica, verdades erigidas a partir de visões de mundo e interesses específicos. Espremam esse limão que daí sai limonada".
    Enfim, como você escancarou em seu texto o meu coração rubro-negro, vou deixar que ele fale por mim nesse momento. Tudo o que eu sonho é que esse livro seja como o passe que o Zico deu para o Nunes no gol do título brasileiro de 1982. É o meu recado para as novas gerações de historiadores: "Vai, garoto, agora é contigo. Fuzila e manda o Leão buscar no fundo da rede". Sei que a pretensão é grande, mas pode ser que haja por aí algum artilheiro pronto para aproveitar a oportunidade...

    Um forte abraço, meu irmão, e obrigado por tudo. Até o próximo post!


    Leandro Malavota

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  2. eu também fiquei curiosa...Léo, você é um ótimo instigador de leitura.

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  3. Leopoldo, li até hoje só o primeiro capítulo do livro do Malavota, em que ele examina a construção dos primeiros ordenamentos nacionais de patentes, especialmente na Inglaterra, na França e nos EUA. Adotei-o, inclusive, como leitura para meus alunos do IBMEC da disciplina "Propriedade Intelectual e Relações Internacionais". Espero que o Leandro goste de saber desta novidade.

    O texto é excelente e me senti instigado a ler o restante. Agora, ainda mais em razão do seu post.

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    1. É o Malavota atingindo seu objetivo.

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    2. De fato, os alunos têm se mostrado cada vez mais interessados á medida em que vão conhecendo um pouco mais o mundo da PI. E a contribuição do texto do Leandro, que praticamente abriu a disciplina, foi muito importante.

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