domingo, 19 de janeiro de 2014

Sob a Redoma



“Apurado e vigoroso desde o início (...) difícil de deixar de lado”. – New York Times. Esta frase se encontrava na capa de “Sob a Redoma”, de Stephen King – Ed. Objetiva – Rio de Janeiro, 2012 – 954 págs. Sei, como todos vocês, que é usual no mercado editorial utilizar-se de críticas positivas para turbinar a vendagem de algumas obras. Mas não há como negar que nesta ficção daquele que ficou conhecido como mestre do terror esta frase é fidedigna ao sentimento gerado sobre o leitor.



King relata nesta estória como uma pequena cidade do interior do Maine, Chester's Mill – região que ele conhece muito bem, por viver numa delas, Bangor no caso – poderia sobreviver estando isolada do resto do mundo por uma redoma translúcida que surgiu do nada, mais que de repente. A partir daí os personagens passam a viver uma estranha experiência, como se misturassem dois filmes – “Footloose – Ritmo Louco” (1984, refilmado em 2011) e “A Onda” (1981, nos EUA e refilmado em 2008, na Alemanha)[1].

Em “Footloose” um adolescente se muda para uma cidade do interior dos EUA junto com sua mãe. Ele enfrenta uma série de dificuldades para se adaptar ao modo de vida local, ditado pelo pastor da igreja que lá existe e que, entre outras coisas, proíbe a dança em locais públicos. Neste contexto é apresentado com detalhes como aquele ambiente – o interior norte-americano – é propenso a uma série de preconceitos que se encontra arraigada na cultura branca, protestante e anglo-saxônica (WASP) por lá cultivada, a ponto de toda uma comunidade se deixar levar por uma liderança equivocada.

Precisamos escutar o discurso dele? Não. Amanhã à noite escutaremos Big Jim  [2] e já basta. Além disso, todos sabemos como são essas coisas: as duas maiores especialidades dos Estados Unidos são os demagogos e o rock and roll, e já ouvimos bastante dos dois em nossas vidas. [pág. 720]

Por outro lado, em “A Onda” é registrado o experimento realizado pelo professor Ron Jones, nos Estados Unidos. Este propõe aos seus alunos uma experiência de duas semanas para verificar se seria possível o surgimento de um regime fascista naquele país. Para tanto ele passa, paulatinamente, a estabelecer uma série de regras de conduta que aos poucos vão envolvendo os participantes num modo de vida autoritário, como se este fosse a melhor forma de conduzir as coisas, inclusive com a criação de um emblema próprio que, em determinado momento, passou a ornar os braços dos estudantes. “Rusty [3] foi embora. Só quando chegou à ladeira da praça da Cidade percebeu que Toby e Petra usavam braçadeiras azuis” (pág. 628).

Pois bem, na obra de King, a partir do surgimento da redoma, o meio-ambiente ideal para exacerbar as características acima apontadas surge. A população da cidade do interior se vê num momento de crise, em que facilmente se apegaria a uma liderança forte que a conduzisse rumo a uma saída. Como lidar com as pequenas crises – que se transformam em grandes – se não se tem a perspectiva de se escapar para o mundo exterior? “O Rennie não está vendo a longo prazo, nem os policiais. Só se preocupam com quem manda na casinha da árvore. Esse tipo de pensamento é como um desastre prestes a acontecer” (págs. 644 e 645). Todos os preconceitos que estavam escondidos sob uma manta de normalidade passam a aflorar, algumas vezes naturalmente, outras vezes insuflados por aqueles que têm interesse de que a crise se instale de maneira a consolidar o seu poder sobre a comunidade. “- Ele cochichou essa parte – disse, aceitando a xícara que Piper [4] lhe deu – É como se aquela porra tivesse virado a Gestapo agora. Desculpe a expressão” – Pág. 643.

O livro realmente é daqueles “grudentos”. A seqüência de suspense e ação prende o leitor de tal maneira que o deixa sem fôlego em determinados momentos. O próprio autor, em nota no final do livro aponta, citando um dos seus colaboradores, assim o aponta: “Nan Graham preparou os originais do livro (...). Tentei escrever um livro que mantivesse o pedal no fundo o tempo todo. Nan entendeu isso e, sempre que eu aliviava, ela punha o pé em cima do meu e berrava: (...) ‘Mais depressa, Steve! Mais depressa!’”.

Mas estamos falando de um livro de mais de 900 páginas. Você poderia se perguntar se isso, esta sensação de “sem fôlego”, é realmente possível? Eu digo para vocês que é. Toda a estória se passa em menos de uma semana, demonstrando como o desespero pode tomar conta das pessoas rapidamente. Porém, a impressão que tive ao final foi de que, aos 45 do segundo tempo, ele desacelerou, talvez por ter entendido que a principal mensagem que queria passar já havia sido dada, não havia mais a necessidade de “pisar fundo” para que o leitor, inteligente como é, a percebesse. E para mim esta mensagem era de celebração da vida, em que pese todos os horrores pelos quais passamos. De como um pequeno grupo de pessoas podia fazer a diferença uns para os outros, mesmo nas piores circunstâncias, mesmo com as perdas já ocorridas. Recomendo!

OBS 1 – o livro se presta ainda a um humor peculiar, como se soltássemos uma piada para desanuviar o momento carregado. Por exemplo, o livro tem como característica ter seus capítulos narrados pelos diferentes personagens, a partir de sua própria ótica. E um desses personagens é um cão: “Naquela manhã ele estava sendo ignorado. Julia e a outra mulher [5] – a que era dona da casa, porque o cheiro dela estava por toda parte, principalmente na vizinhança do quarto onde os seres humanos vão deixar as fezes e marcar território (...)”. Pág. 623.

OBS 2 - aparentemente já estava sendo filmada uma série baseada neste livro, porém cercada de críticas por alterar substancialmente alguns aspectos do livro. A acompanhar - http://literatortura.com/2013/12/conheca-sob-a-redoma-serie-baseada-na-obra-de-stephen-king/ .


[2] Jim Rennie, dono de uma revenda de automóveis usados e pastor de uma das Igrejas protestantes locais, além de segundo vereador da cidade, mas líder local, uma vez que o primeiro vereador, Andy Sanders, é uma marionete em sua mão.

[3] Rusty Everett, enfermeiro-assistente do hospital da cidade, alçado a posição de médico após o início da crise da Redoma e com a morte do único médico então existente, Dr. Haskell.

[4] Piper Libby, pastora da outra igreja protestante local, que se une aos “rebeldes” após tomar conhecimentos dos abusos iniciados pela nova força policial da cidade.


[5] Respectivamente Horace, um cão da raça corgi, pertencente à Julia Shumway, proprietária e editora do jornal local, que naquele momento se encontrava na casa de Andrea Grinnel, terceira vereadora, que estava em recuperação, por iniciativa própria, da dependência de drogas contra dores musculares, a fim de que pudesse se contrapor ao poder político de Big Jim Rennie.

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