Termino
finalmente o périplo por essa longa jornada que nos foi apresentada por Laurentino
Gomes. O autor, nesse Volume III da trilogia “Escravidão” – editora Globo
Livros – 592 páginas em sua 1ª edição, publicada em 2022 – traça a reta “final”
deste fenômeno histórico relatando os fatos ocorridos desde a independência do
Brasil, em 1822, até a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Além
disso, os anos imediatamente seguintes são descritos nos últimos capítulos, de
modo a que nós leitores tenhamos a exata noção do não compromisso pelo Governo Brasileiro
com a inserção daquele grupo de seres humanos que se viu, de repente, sob nova
condição ao olhar do outro. Tal postura contribuiu, e muito, para o estado de coisas
que permanece até hoje.
Mas
estamos aqui para fazer uma análise não sobre o tema em si, o qual o autor
discorreu longamente durante tantas páginas distribuídas pelos três livros por
nós abordados. Mas sim sobre o mérito e a forma de apresentação literária
realizada pelo mesmo. Nas resenhas realizadas sobre os dois volumes anteriores
já havíamos identificado que, tanto como riqueza como fraqueza, poderia ser
entendido a exposição de um quantitativo enorme de dados. Não imaginamos que Laurentino
tenha empreendido tarefa de tal envergadura para gerar livros somente para
consulta, mas também para que pudessem ser objeto de leitura e reflexão.
Em
que pese o lado da fraqueza ter sido muito por mim ressaltado quando do último
post, com a resenha realizada na metade deste ano, imaginávamos que talvez algo
de diferente pudéssemos ter quando da conclusão. Isso não foi de todo alcançado
no Volume III. A prosa utilizada muitas vezes ainda se “perde” num grande cabedal
de informações. Porém também existem momentos nos quais nos vemos enredados por
temas que nos entusiasmam. Algo similar ao que dissemos sobre a exposição da
história de Chica da Silva, no volume II, salvo engano.
Chamou-nos atenção, por exemplo, que o autor traçou, logo no início do Volume III, uma linha clara de transparência quanto ao seu entendimento explícito de que seu trabalho vinha a expor um genocídio, e não menos do que isso, e que os leitores, por mais românticas que fossem as palavras que se seguiriam, não deveríamos nunca nos esquecer disso. Na página 36, já na Introdução, ele se utiliza de duas definições retiradas de dicionários, um de língua inglesa – Webster’s Third New International Dictionary of the English Language – e um em português – Dicionário Escolar do Professor (Francisco da Silveira Bueno, 1963). Na primeira coloca-se o genocídio como sendo “O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento), calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, religião ou a cultura de um grupo”. Na segunda tal ato é categorizado como “Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos”.
Dito isto, destacamos então alguns personagens por ele ressaltados como sendo símbolos de uma época. No capítulo 2 deste volume ele descortinou aquele que teria sido o Comendador Joaquim José de Sousa Breves. “Conhecido como o ‘Rei do Café’, Sousa Breves foi também o maior senhor de escravos do Brasil em todos os tempos. Suas senzalas chegaram a concentrar 6 mil homens, mulheres e crianças em regime de cativeiro. Dono de navios negreiros, envolveu-se no tráfico ilegal de africanos, desembarcados clandestinamente em praias e portos do litoral fluminense sob o olhar cúmplice das autoridades locais. (...) Em resumo, Sousa Breves caberia por inteiro na moldura de um retrato da aristocracia rural escravocrata brasileira no século XIX. Fazendeiros, senhores de engenho, pecuaristas e produtores de café, donos de latifúndio que se estendiam pelas profundezas do Brasil, foram o alicerce da monarquia brasileira. (...) Sousa Breves sintetizou essa trajetória como ninguém, mas não chegou a ver a mudança de regime. Morreu em 30 de setembro de 1889, seis semanas antes da Proclamação da República, desgostoso com o fim da escravidão e com os rumos do próprio Império, os dois pilares da brasilidade que ajudara a sustentar ao longo daquele século. Feita a Abolição, suas fazendas entraram em ruína” (págs. 62-63).
Esses trechos acima são apenas parte de um capítulo inteiro dedicado a esse personagem, algo do que sentimos falta para melhor ilustrar o impacto do que estava sendo exposto ao leitor. Tal abordagem, durante este terceiro volume, somente voltaria a ser utilizada já perto do seu final, nos últimos 4 capítulos. Naquele denominado “Maré Branca” são narradas as trajetórias dos norte-americanos, confederados do Sul dos EUA, derrotados na Guerra Civil ocorrida naquele país justamente por conta do embate com o Norte que defendia o fim da escravidão, que viriam a aportar aqui no Brasil, numa tentativa de colonizar novas terras, muitas vezes sob o beneplácito de governos locais. Desta iniciativa restaram hoje cidades como Americana e Santa Bárbara D’Oeste, no interior de São Paulo (páginas 463-478).
Já os três capítulos seguintes, não por coincidência os 3 últimos da obra, narram os momentos imediatamente anteriores à Abolição no Brasil – “Pânico” (479-490) é o título do antepenúltimo – quanto o momento em si, no penúltimo capítulo denominado “Isabel”, aí focando na figura da Princesa Isabel (491-514) e sua relação com Pedro II, seu pai, aparentemente um monarca que se submeteu aos escravocratas, apesar de ser favorável ao término da escravidão; e por último, o após o advento da Lei Áurea, “O Dia Seguinte” (515-534), com o impacto gerado sobre a estrutura vigente à época, e em como isso acabou se revertendo em benefício da classe dominante que emergiria após o surgimento da República.
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Luiz Gama |
Diria então para vocês que, mesmo tendo minhas ressalvas na dinâmica proposta por Laurentino para seu trabalho, dado que os muitos dados acabam soterrando o espaço dado a figuras como as citadas acima, que por si só valeriam obras dedicadas exclusivamente aos mesmos, pelo menos a trilogia nos serve como um alerta, grandiloquente, do ponto a que o ser humano pode chegar para subjugar seu semelhante. Que nós não possamos nunca deixar isso acontecer, sabedores que somos que, infelizmente, tal praga ainda persiste em alguns lugares do mundo. Aqui no Brasil mesmo, práticas abusivas de trabalho no interior do País, podem ser classificadas dessa forma. Minha sugestão é que tenham acesso e leiam os três livros, mas como alternativa busquem ter uma leitura em paralelo para melhor dar andamento ao seu gosto pela literatura, talvez uma ficção mais leve ou algo que uma abordagem diferenciada, mais direta, que auxilie o entendimento da obra.