Minhas
lembranças do movimento denominado Democracia Corintiana se restringem a cenas
das finais do Campeonato Paulista de 82 e 83 – naquela época a Globo já
influenciava, fazendo com que não coincidissem com as datas das finais do
Carioca; a eliminação do Flamengo no Brasileiro de 84 (após uma vitória de 2 x
0 no Maracanã, o rubro-negro foi goleado pelo Corinthians no Morumbi por 4 x 1
no jogo da volta); e a participação de Casagrande e Sócrates no comício pelas
Diretas Já.
Na
década de 80 o noticiário esportivo era muito mais segmentado, com os
telespectadores e ouvintes cariocas sendo servidos com um grande volume de informações
somente dos clubes do Rio. No que diz respeito ao que acontecia em São Paulo
tínhamos as reportagens, mas elas não eram aprofundadas o suficiente para
termos ideia do impacto e do modo de gerir interno de um clube da capital
paulista. Passados alguns anos, e devido ao impacto daquele movimento, acabamos
por tomar conhecimento de sua singularidade.
É
neste entorno que surge a forte amizade entre Sócrates e Casagrande, um
verdadeiro caso de amor entre almas gêmeas, objeto do livro que leva o nome dos
dois jogadores – ia escrever craques, mas somente Sócrates mereceria
verdadeiramente tal alcunha – de autoria dividida entre o ex-centroavante e
atual comentarista da Globo e o repórter Gilvan Ribeiro – a mesma dupla que
escreveu a biografia “Casagrande e seus Demônios”. O livro, editado pela Globo
Livros no ano passado, possui 376 páginas, e acaba se transformando num volume
2 das memórias de Casagrande, tal o entrelaçamento das histórias.
Sócrates e Gilvan, acompanhados de uma pequena representação de Sócrates |
O
movimento Democracia Corintiana consistia na possibilidade de todos os membros
do departamento de futebol poderem participar das decisões que se referiam ao
time. Desde o diretor, Adílson Batista Monteiro, até o roupeiro, todos tinham
voz e voto, de maneira igualitária. Isso chegou ao ponto de decidirem sobre
questões insólitas, como, por exemplo, a possibilidade de Casagrande retornar
no meio de uma excursão ao Japão por ter saudades da namorada de então, algo
talvez inimaginável nos tempos atuais de extremo profissionalismo.
E
aí está o centro de uma questão que têm dois aspectos: a chamada Democracia
Corintiana, a meu ver, prevaleceu naquele momento por duas razões – a primeira
é que era um movimento representativo de um anseio geral da população pelo
retorno do regime democrático no país, e que acabou encontrando eco em algumas
das cabeças pensantes do clube paulista, como Sócrates e Vladimir, líderes da
equipe, e do próprio Adílson Batista, sociólogo por formação. A segunda é que
ainda naquela época ainda podemos considerar um tempo de amadorismo prevalecente
nas relações internas dos chamados clubes profissionais de futebol. Não
amadorismo no sentido de que os jogadores não recebessem para jogar, mas sim em
termos de relações humanas.
Se
existe um questionamento em relação ao jogador de futebol é de que ele é um ser
mimado. E isso é verdade. Tanto quanto um grande astro do rock ou das artes em
geral, o jogador de futebol que alcança o estrelato tem uma série de
facilidades e assessores que resolvem tudo para ele. Isso faz parte da
estrutura que a indústria do entretenimento oferece para os seus expoentes.
Isto porque, caso vocês não tenham percebido, o futebol profissional faz parte
desta indústria. Isso justifica os salários estratosféricos dos grandes
jogadores.
Mas
este entorno político acaba sendo apenas o pano de fundo para a história entre
Casagrande e Sócrates. Muitos outros aspectos são abordados no livro, traçando
linhas paralelas entre as suas carreiras – desde o momento de explosão no
Corinthians; ida para a Itália; experiência na Seleção Brasileira; o término da
carreira, quando ambos coincidentemente passaram pelo Flamengo, em épocas
distintas; a convivência dos protagonistas com suas famílias e filhos; a paixão
pela música (em seus diferentes estilos), etc. Mas se fosse para eleger uma
diretriz central para o livro foi justamente a fase final da vida de Sócrates.
Sócrates conversa com Caio Ribieiro, ex-jogador e comentarista da Globo e Casagrande, em encontro ocorrido já próximo ao falecimento do grande jogador. |
Sócrates
veio a falecer por complicações de uma cirrose hepática gerada a partir do seu
vício em álcool, algo que esteve presente em toda sua carreira. Mesmo no final
da vida ele jamais admitiu ser um viciado, o que muito entristeceu Casagrande,
ele um lutador constante contra o uso das drogas ilícitas, dada a sua
experiência pessoal. O gatilho para a narrativa exposta é justamente a retomada
da amizade dos dois às portas da morte de Sócrates. Ele e Casagrande haviam se
afastado por conta de uma observação mordaz do craque corintiano quando o
ex-centroavante passou a trabalhar para a Globo e não teria se esforçado para
obter uma posição equivalente para Sócrates naquela emissora. Fato que passou
mais como um grande mal-entendido entre dois homens que se recusaram a crescer
e agiam como dois adolescentes birrentos, com questões internas mal resolvidas.
O
livro, desta forma, fecha um ciclo no que se refere aos grandes dilemas de
Casagrande. Pode até ser que se englobarmos a experiência pessoal de Sócrates,
essa trajetória poderia até ter um terceiro volume, desta vez centrada na vida
do Doutor, como costumava ser chamado, dada sua formação em medicina, a partir
das notas autobiográficas escritas antes de sua morte – e que serviram também
de fonte para esta obra. Mas no que diz respeito à Casagrande me parece que
agora, definitivamente, todos os seus demônios foram expurgados. Para o bem e
para o mal, Sócrates participou de sua formação de caráter enquanto ser humano.
Não que seu vício em drogas tivesse sido formatado a partir daí. Quando ele
conheceu Sócrates já tinha iniciado essa roda-viva, infelizmente, a partir do
estereótipo de jovem rebelde, amante do rock. Mas não há como negar que o ser
político e humano no qual Casagrande se transformou teria sido completamente
diferente caso não tivesse conhecido o Magrão, outra das alcunhas de Sócrates.
Uma obra, enfim, não somente sobre futebol, mas sobre a relação de forte
amizade entre dois homens, transcendendo épocas e diferenças, e como ela pode
ser um alento numa vida tão atribulada como temos hoje em dia.
Li sua resenha . Muito boa, como sempre . E me dei conta do seguinte: salvo engano, nós não tivemos , no futebol carioca, jogadores com a dimensão política e comportamental e vanguardismo de um Sócrates ou Casagrande .
ResponderExcluirPuxando bem pelo memória , lembro do Afonsinho, que foi do Botafogo, no início dos anos 70 (acho eu ) . Ele brigava pelo direito de ser cabeludo (o que era revolucionário para época ) e foi o primeiro atleta no Brasil a conquistar , na Justiça , o direito ao passe livre.
Gilberto Gil lhe dedicou uma canção : Prezado amigo Afonsinho. Alguém aí lembra dele? Ou já ouviu falar?
Ihhh! Pesquisei agora (eu sempre pesquiso depois que escrevo e acaba dando nisso) . Afonsinho jogou tb no Flamengo em 75.
Mas seu auge mesmo foi no Botafogo , de 1966 a 1970. From WhatsApp.
Muito boa resenha, daquelas que dá vontade de pegar logo o livro para ler. Lembro bem desse time e dessa época e de como o meu Flu contribuiu para o seu ocaso nas semi-finais do Brasileiro de 1984. Tempos bons em que os jogadores eram cabeças pensantes, dentro e fora de campo, sem se comportarem de forma autômata, como os de hoje, com todos os paparicos a que se referiu. No entanto, mesmo para época, Sócrates já era um jogador "romântico e antiquado". Sim, um cracaço de bola, mas pouco competitivo, prova é que não se deu bem no futebol italiano. Curiosamente, o Casagrande teve uma carreira internacional mais longa, apesar das loucuras. Nesses últimos dias, ouvi uma mesa-redonda na Fox que fazia paralelos interessantes entre o Sócrates e o Ganso (não em termos de nível de futebol mas de postura), outro que não está se dando bem por lá, pela falta de comprometimento e vitalidade.
ResponderExcluir