quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A Confissão da Leoa

Sempre que vemos o noticiário sobre a chegada de mais um período de secas no Nordeste Brasileiro e as mazelas geradas a partir daí nos perguntamos como o homem, a sociedade e o Governo enfim, ainda não encontraram uma solução para um mal que aflige uma região há tantos e tantos anos. A primeira explicação para esta repetida pergunta é a chamada “Economia da Seca”.

Este conceito descreve o fato de que alguns setores se beneficiam deste estado de coisas – principalmente os políticos da região, que podem vender benesses em momentos de crise em troca de votos. Além disso, toda uma cadeia produtiva é formada em torno das necessidades existentes – carros-pipa, obras de infraestrutura (que infelizmente descambam para desvios em termos de seu suporte financeiro), entre outros.

Agora, lhes pergunto: caso fechássemos os olhos e tentássemos imaginar uma outra região do mundo que sofresse algo semelhante, ou até mesmo pior, qual seria a primeira resposta que viria à cabeça? Tenho quase certeza que a maior parte de vocês terá imaginado África. Infelizmente, tal percepção é verdadeira. Estes problemas – e muitos outros mais graves, como guerras civis, por exemplo, atingem quase que um continente inteiro.

Porém, de igual maneira que o Nordeste Brasileiro, a África também é um celeiro de bons escritores, escritores estes que têm como um dos seus principais elementos motivadores demonstrar o que ocorre a sua gente, qual um clamor por mais justiça. No caso específico que analisaremos hoje estou falando de Mia Couto e sua obra “A Confissão da Leoa” – Ed. Companhia das Letras – São Paulo – 2012 – 251 págs.

O autor e sua obra

A primeira coisa que me chamou atenção nesta linha foi o aviso dado pela Editora logo na abertura do livro – “A editora manteve a grafia vigente em Moçambique, observando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990”. Ora, tal senão melhor para que possamos nos sentir ambientados em meio aos africanos de fala portuguesa, podendo, ao ler, quase que “ouvir” o seu sotaque. Como um exemplo somos recebidos com a palavra “receção”, que nada mais é do que a nossa “recepção” [e não recessão, como alguns podem ter imaginado].

A estória se passa numa aldeia, no interior de Moçambique, chamada Kulumani. Lá, os seus habitantes são assombrados por ataques de leões, que atacam principalmente as mulheres. Um caçador é chamado para resolver a questão, Arcanjo Baleiro é o seu nome e como protagonista da estória faz contraponto com a outra protagonista, uma mulher da localidade chamada Mariamar Mpepe.

O relato é estruturado da seguinte forma: os capítulos revezam-se, tendo ora o relato do caçador e ora de Mariamar. Desta forma temos dois olhares sobre o desenrolar da estória, repleta de fatos, infelizmente, próximos (ou piores) dos que nós colocamos acima. Temos assim o político interesseiro, o policial transgressor, o pai de família de péssima índole, as mulheres negligenciadas em seus direitos, além do forte elemento da religiosidade e da tradição afro influenciando o modo de pensar das pessoas, em alguns momentos com sabedoria – os capítulos são abertos com provérbios africanos (1) – algumas vezes com um impacto negativo, ao trazer relevo para credos geradores dos medos e neuroses impostos com o intuito único e exclusivo de manipular o povo.

Particularmente percebo um arquétipo presente na estrutura dual: a narrativa do caçador, em que pese suas digressões a respeito dos problemas familiares e em como isso influenciam seu modo de ser, tendem a ser mais objetivos, factuais, do que os capítulos conduzidos por Mariamar. Esta tem como principal elemento a força dos sentimentos a conduzir suas ações, passando a maior parte do tempo a conjecturar, a relembrar, ora com melancolia, ora com desprezo, sobre o seu passado, presente e futuro.

Desta forma temos assim formado o binômio “homem” – o caçador, o objetivo, o duro perante as crueldades da vida – e “mulher” – dependente, que não suporta o sofrimento imposto (2), a sentimental – etc. Porém, o mais engraçado é que, numa leitura ampla, em verdade, em que pese esta característica estereotipada dos narradores, os principais elementos que fazem com que a história se desenvolva são os personagens femininos, tendo os masculinos apenas que acompanhar a corrente do rio – no caso da estória, o Lideia – como meros coadjuvantes.

Enfim, as mulheres são o fio condutor, a mola mestra de todas as ações, tal qual numa família de leões, em que a leoa é a caçadora, a líder do grupo. Muito próximo, eu diria, da situação presente na atual sociedade em que vivemos. Os homens ainda se iludem sobre sua importância exagerada. As leoas estão no comando, nós somente temos que seguir o rumo dos rios de nossas vidas, ditados por elas. Homens fracos, mulheres fortes, esta talvez seja a principal mensagem que o autor extrai da realidade de sua África, reproduzida a partir de uma pequena aldeia do interior de Moçambique.

(1)   O que eu mais gosto é: “Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é começares a correr” – pág. 79.
(2)   Deve-se ressaltar que os homens, caso passassem pelas vicissitudes enfrentadas pelas mulheres africanas em suas aldeias afastadas, não tenho dúvida, fraquejariam.

3 comentários:

  1. Este Mia Couto deu uma entrevista recente naquele programa Roda Viva, da TV E ou Cultura. Gostei muito. Me deu vontade de ler alguma coisa dele. E agora, minha curiosidade aumentou.

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  2. Ainda acredito num mundo onde homens e mulheres trabalhem juntos e tenham direitos iguais, em especial o direito de viver suas diferenças com tranquilidade.

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    1. Therezinha, concordo contigo. O bom senso diz isso. Na verdade você fez uma análise estrutural de um aspecto que eu salientei - talvez não tenha ficado claro, admito - em termos conjunturais. Minha análise é conjuntural, pois se remete a uma realidade numa determinada região geográfica - África (ou duas, se formos incluir o Nordeste Brasileiro) - e temporal - é inegável o avanço feminino alcançado nos últimos anos, tanto em assumir o comando de suas famílias, quanto inúmeros outros ganhos. Seria como uma aceleração de conquistas para compensar um atraso histórico, enquanto os homens patinam. Torço que isto seja apenas uma etapa rumo ao maior equilíbrio de forças, que trará não somente o surgimento de famílias + felizes e "sustentáveis", como também, por ser a célula-mater, contribuirá para sociedades mais estáveis.

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