segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Marighella

Muitas vezes despertamos, tomamos banho, aproveitamos nosso café da manhã em família (ou numa correria só que mal dá para dar um beijo de despedida), e corremos para o ponto de ônibus, afim de não perder aquele que nos conduzirá para mais um dia de trabalho. E aí, meio que sorrateiramente, sempre vislumbramos uma mensagem, uma pichação, um letreiro, o desmiolado da rua, que nos chama atenção sabemos lá porquê! Eles são representações de algo que está escondido, que nos intriga, que nos inquieta, nem que seja pela mera curiosidade.

Minha experiência com o biografado de Mário Magalhães, na obra “Marighella- o guerrilheiro que incendiou o mundo” – Ed. Companhia das Letras – 2012 – 732 págs. começou deste modo. Próximo à Universidade Federal Fluminense persistia na minha retina a mensagem pichada num dos muros: “Marighella Vive!”. Me questionava quem teria sido ele, intuindo que fosse um ícone de esquerda, tal a preponderância dessa corrente no meio universitário, assim como pela força que a afirmação transparecia, típica de um grito de guerra.



Então, no final do ano passado o jornalista Mário Magalhães lança esta obra-reportagem, dissecando este personagem histórico. Porém, eu diria que além de ter como mérito apresentar a trajetória do ex-deputado baiano e líder guerrilheiro Carlos Marighella, Mário Magalhães teve como qualidade adicional indicar as idas e vindas, as contradições internas pelas quais o Partido Comunista Brasileiro (PCB) viveu, principalmente desde a Intentona em 1935 (1).

O PCB foi o berço a partir do qual Marighella criou sua teia filosófica, dando-lhe discurso para, introjetando um radicalismo renegado pelo próprio Partidão, incentivar a organização aleatória de grupos armados contra a ditadura militar. A biografia se presta, portanto, a apresentar o ponto de vista daqueles que transitaram pela opção armada, algo que, confesso, de livre e espontânea vontade, não buscaria. Mas eis que o acaso se fez presente e eu ganhei o dito livro de meus colegas de trabalho.

Assim sendo, fiel aos meus princípios que informação nunca é demais, e que cultura é uma riqueza da qual ninguém pode nos retirar, parti para a leitura deste lado, a meu ver, obscuro da humanidade – a alternativa em matar o próximo em nome de uma causa. Esclareço que minha crença particular é sempre pelo diálogo, mesmo que o “oponente” não o queira. Aderir à violência somente faz com que o outro lado chame a razão para si e para sua reação destemperada.

Em relação à qualidade da obra, não há dúvida de que foi resultado de uma pesquisa de fôlego, com todas as qualidades das minúcias e detalhes alcançados, após muitas entrevistas, no sentido de se confirmar a veracidade dos fatos ali relatados. Mesmo a crítica exposta na Revista Veja, em Novembro do ano passado, assinada por Augusto Nunes, na qual o tom era de minimizar a importância do personagem central, ressalta a qualidade do trabalho realizado. Nas palavras de Nunes “Magalhães desmonta versões fantasiosas, corrige equívocos, resgata documentos dados como perdidos, escava episódios desconhecidos – e reconstitui detalhadamente a trajetória [...]. Ao imprimir ritmo de thriller à narrativa, o autor torna possível completar, sem tantas pausas ofegantes, a extensa travessia do que prefere qualificar de reportagem” (2).

Mário Magalhães - um biógrafo e suas escolhas

Ora, se por um lado eu discordo da opção da guerrilha – e confesso que o papel de João Goulart, muitas vezes relegado em segundo plano por ter, em tese, aberto espaço sem luta para que a ditadura ocupasse espaço na história brasileira, me surpreendeu, pois foram inúmeras vezes em que este foi questionado se deveria dar um sinal positivo para o combate, ao que ele sempre repeliu em nome de que não poderia apoiar uma luta de brasileiros contra brasileiros, um verdadeiro fratricídio – por outro também não concordo com o raciocínio do crítico da Veja. Poucos são aqueles que, em função dos seus atos, conseguiram penetrar no imaginário do povo como uma representação de determinados ideais – mesmo que levados para o extremismo, do qual não sou partidário. E todos estes merecem, de algum modo, ter sua trajetória dissecada, até mesmo para que possamos aprender com os erros e acertos que a História nos propõe.

Che Guevara foi um mito deste tipo, com um determinado mote; Gandhi foi outro; o Dalai Lama tem uma outra abordagem; Ford para o capitalismo; e poderíamos seguir aqui com uma lista infindável de personagens. Decerto que estes que aqui relatei estão num nível de influência mundial, algo que talvez Marighella não tenha alcançado (3). Mas em âmbito nacional, pelo menos no nicho dito de esquerda, que influenciou uma série de formadores de opinião – somente para citar alguns, os jornalistas Franklin Martins (que veio a ocupar posição de destaque no Governo Lula); Juca Kfouri, repórter esportivo de largo histórico como militante de esquerda; e o especialista econômico George Vidor, de “O Globo”, todos perpetraram algum tipo de apoio ao ideário marighellista – ele não pode ser negligenciado como personagem.

Por último, com relação ao estilo da narrativa, Mário Magalhães preferiu adotar a construção por capítulos que ressaltavam momentos históricos relevantes e todo o seu entorno. Dessa forma, ele inicia com a prisão de Marighella no cinema em 1964, algo testemunhado por muitos e que ganhou grande visibilidade, sendo ele então deputado cassado, para depois retroagir, dando seqüência cronológica a partir de sua adolescência e juventude, passando pela adesão ao PCB, as primeiras prisões, às divergências com Prestes – figura que vagueia por toda a obra, tido às vezes como um líder ausente – a retomada de sua trajetória política, até a opção pela luta armada, finda em 1969, com sua morte nas mãos da polícia política.

É certo que por vezes, em meio ao texto, adota um recurso que não me agrada de todo – retroage para ter uma melhor percepção do que outros personagens tenham tido sobre a mesma cena, perdendo assim o ritmo que o leitor teria então alcançado – mas nada que impeça com que a leitura progrida. Mas não vou iludi-los: são quase 600 páginas de puro texto, restante outra centena para as referências. Há que ser muito curioso, como de fato eu sou, para enfrentá-las. Boa sorte para aqueles que tomarem essa decisão. Porém, minha visão de mundo permanece inalterada, em que pese, não posso negar, me sentir mais enriquecido culturalmente com sua leitura.

(1)   “A Intentona Comunista também conhecida como Revolta Vermelha de 35 ou Levante Comunista, foi uma tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas. Foi liderada pelo Partido Comunista Brasileiro em nome da Aliança Nacional Libertadora, ocorreu em novembro de 1935, e foi rapidamente combatida pelas Forças de Segurança Nacional”. Fonte: http://www.sohistoria.com.br/ef2/eravargas/p2.php - acessada em 04 de Fevereiro de 2013.
(2)   “Muita ação, poucas idéias – Marighella é quase irretocável como biografia. Mas nem que fosse perfeito o livro poderia elucidar o porquê de dedicar tanto trabalho, e tantas páginas, a esse personagem” – Revista Veja – Ed. Abril – Ano 45 – nº 48 – 28 de Novembro de 2012- Edição nº 2297- págs. 194-195;
(3)   Mais uma vez, nas palavras de Nunes “O guerrilheiro que incendiou o mundo – um título que nem os admiradores de Che Guevara ousaram reivindicar – só existiu no título do livro” – Veja – pág. 195.

10 comentários:

  1. Assino, sem tirar nem por, tudo o que escreveu. Senti-me estimulado a ler o livro, ainda que, partidário como você dos que não acreditam na opção da luta armada, ache que também não vá modificar minha visão política. Mas a cultura, como você coloca, é sempre enriquecedora. Fiquei curioso sobre um aspecto: o autor aborda qual era o projeto político de Marighella para o país. Após a derrubada dos militares, o que ele desejava? Abs.

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    1. Carlos Mauricio, Marighella pregava a ideologia comunista, sem a praxis stalinista - quando foi dsmascarada foi uma grande desilusao nao somente p/ ele como p/ todos os seus correligionatios. Porem, entendia q para alcancar este fim necessitava de uma revolucao armada, via guerrilha rural, pois queria evitar o embate direto c/ os quarteis no perimetro urbano, onde os militares teriam vantagem logistica. Seu jargao era - "Tranformaremos o Brasil num grande Vietna". Em resumo: ele nao tinha necessariamente um projeto administrativo, a meu ver, mas somente um ideal politico. Alias, essa tb foi uma das crihticas feitas por Augusto Nunes, a de q ele nao completava seus projetos. E fracassava em todos eles.... Um exemplo de sua filosofia estava no lema de q um "guerrilheiro nao precisa de autorizacao p/ praticar un ato revolucionahrio". Ou seja, abria mao do planejamento em favor da acao. De certa forma isso personifica a mentalidade do fazer p/ ver depois como eh q fica. Nao acredito q esta seja uma postura salutar p/ alguem q pretende ser o lider de uma nacao.

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    2. Estou de acordo com você Leopoldo. E ações não precisam (aliás, não devem) ser violentas, do meu ponto de vista, principalmente quando atingem pessoas inocentes no caminho, por mais legítima que a causa política e/ou social(aparentemente) seja.

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  2. Uma pequena curiosidade: meu bisavô, capitão do exército na época da Intentona Comunista, servia na Praia Vermelha e, por sorte, não estava lá no dia em que ocorreu a tentativa do Prestes. Amigos dele foram mortos de madrugada, sufocados enquanto estavam dormindo. Uma forma de matar abjeta, covarde e odiosa (embora todas sejam). Enfim, ainda há quem chame o sujeito de "Cavaleiro da Esperança". Mas a memória histórica está preservada e o monumento erguido ao lado da estação de subida do bondinho para o Morro da Urca não permite esquecer esse momento triste.

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  3. Que Marighella tenha influenciado Frankin Martins, isto significa um ponto negativo (ou mais um ponto negativo) em sua biografia. Sua (dele, Franklin Martins) defesa da censura à imprensa o torna odiado por 11 entre dez jornalistas. E sobretudo por aqueles que prezam pela liberdade de opinião

    Afonso Camargo

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  4. Afonso Camargo, nada surpreendente, partindo de quem parte, essa tentativa de cercear a imprensa. A CK faz o mesmo na Argentina e Chavez na Venezuela. Enfim....

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  5. É como diz aquela música do Caetano; "Até quando faremos senão confirmar, a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos"

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  6. Algum comentário foi retirado???? Censura e autocensura são sinônimos?

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  7. Não, Lúcia, aqui no blog não. Mas existem comentários adicionais no post do FB tão pesados quanto, que seguiram na linha acima apontada pelo Afonso. Como o assunto descambou para algo distinto do tema central do Post, preferi preservar os locais de debate originais. Mas nada que impeça que você teça seu comentário por aqui, caso seja o seu desejo.

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  8. Quero registrar que fiquei super-curioso sobre o livro e vou procurá-lo para lê-lo.

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